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São José de Anchieta e o poema à Virgem Maria

Por mais poética que seja a imagem do religioso escrevendo um poema nas areias de uma praia, ela remonta a uma difícil situação moral em que se encontrou o jovem Apóstolo do Brasil.

Benedito Calixto Poema a Virgem Maria 1901

Redação (20/03/2023 11:06, Gaudium Press) Nascido em Tenerife, nas ilhas Canárias, a 19 de março de 1534, José de Anchieta fez seus estudos de Letras e Filosofia em Coimbra. Ingressou na Companhia de Jesus em 1551, partindo como missionário para a Terra de Santa Cruz dois anos depois, quando contava 19 anos.

Possuidor de invulgar inteligência, em poucos meses aprendeu a fala indígena, sendo o autor da primeira gramática Tupi. Em 1563, junto com o Padre Manuel da Nóbrega, fez-se refém para negociar as pazes com os silvícolas e, durante sua prisão, escreveu um célebre poema dedicado à Virgem Maria. Para melhor compreender os motivos que o levaram a compor tão bela obra literária, importa ter presente certos antecedentes históricos.

Franceses no Rio de Janeiro

A fascinante e acolhedora baía de Guanabara fora o local escolhido por Nicolau Durand de Villegaignon para desembarcar suas tropas e estabelecer seu reduto. Enviado com a missão de fundar uma sólida colônia para os franceses protestantes, estava munido de embarcações e efetivo militar para qualquer sorte de empresa. Prontamente edificou um forte e expandiu sua gente pelo litoral.

Em pouco tempo, viu-se a costa fluminense dominada por uma chusma de bretões ansiosos por comerciar com os índios tamoios, trocando bugigangas pelos produtos da terra, em especial o valioso pau-brasil.

Conflito entre indígenas e colonos

A colonização abriu profundas chagas nos nativos, e como sempre havia quem as tocasse e remexesse, não cicatrizavam.

Foi assim que, tomados de rancor, em 1554, os tamoios descarregaram uma série de ataques às províncias de São Vicente e São Paulo, espalhando a morte e o terror.

Sabendo da situação, D. João III enviou ao Brasil seu terceiro governador geral, Mem de Sá, com a missão de aproximar o indígena do luso, “ao invés de afugentá-lo, como se vinha fazendo, num estorvo constante à obra dos jesuítas. Assim, decretou Mem de Sá leis humanitárias, mandando suspender a escravidão sem causa justificada, determinando o fim do canibalismo mesmo quando contra o inimigo aprisionado, formando repúblicas de povoações grandes, nas quais se erguessem igrejas, residissem sacerdotes e se ensinassem aos catecúmenos as doutrinas cristãs”.[1]

Como prova do êxito de sua missão, consta a fundação das aldeias de São Paulo, Santiago, São João e Espírito Santo, na Bahia.

Se por um lado a diplomacia conquistou um vasto terreno na capital da colônia, no Rio de Janeiro, as indisposições cresciam.

Expulsão dos calvinistas

Tendo conhecimento das desavenças entre nativos e colonos, os franceses souberam tirar proveito da situação e firmaram alianças com os tamoios. A partir de então, as investidas destes se tornaram quase incessantes, causando sérias preocupações.

Concluído seu labor na Bahia, Mem de Sá arregimentou seu exército e partiu para o Rio de Janeiro com ordens de expulsar os invasores protestantes. Devidamente munido com artilharia e homens de combate, o governador investiu contra as fortificações francesas. Dura foi a refrega e muitas as baixas de ambos os lados.

Vencidos, os sobreviventes bretões embrenharam-se na mata, refugiando-se junto aos seus aliados.

Insurreição geral dos tamoios

Instigados pelos franceses, os tamoios declararam uma rebelião geral. Confederados com os tupis do sertão, representavam uma terrível ameaça aos católicos.

Ante tal calamidade, o Padre Manuel da Nóbrega e o então irmão leigo José de Anchieta se apresentaram aos chefes militares portugueses como voluntários para tratar as pazes com as autoridades indígenas. Impressionados com a bravura dos religiosos, os comandantes deram seu consentimento à proposta.

Benedito Calixto Anchieta e Nobrega na cabana de Pindobucu

Missão pacificadora em Iperoig

Foi então que, a 4 de maio de 1563, os embaixadores da paz chegaram nas praias de Iperoig, atual Ubatuba, no litoral norte de São Paulo. Antes de desembarcarem, quase foram alvejados por flechas, não tivessem eles alguns conhecidos dentre os índios que os reconheceram e mandaram cessar o ataque.[2]

Pindobuçu, respeitado cacique que admirava muito os missionários, acolheu-os em sua taba, protegendo-os em diversas ocasiões das mãos daqueles que os queriam matar.

Muitas foram as tentativas de pacificação. Entretanto, representantes de determinadas tribos exigiam que fossem entregues alguns chefes das tribos de São Vicente (que já haviam sido convertidas ao cristianismo) para serem mortos e devorados. Os dois jesuítas tiveram muito que penar para convencer o cacique de que tais condições eram impensáveis para cristãos.

Como não chegaram a nenhum acordo praticável, ficou decidido que Nóbrega deveria acompanhar os chefes indígenas até São Vicente, para lá negociarem as condições de paz.

Era preciso que houvesse um refém, e Anchieta, sabendo de todos os riscos que corria, se prontificou para tal incumbência, sozinho.

Ele possuía um veemente desejo de ser martirizado, e, por vezes, quase o foi. Mas relatará posteriormente em seus escritos que seus desejos de martírio sofreram merecida repulsa, pois só a heróis compete tanta glória.[3] Essa aceitação da vontade de Deus e, portanto, de autêntica humildade, lhe valeu a vitória de batalhas muito mais cruéis, pois se os perigos de vida pouco lhe importavam, os perigos morais o obrigaram a dar-se mais do que nunca à penitência e à oração.

O Poema à Virgem

Os nativos não compreendiam como os religiosos rejeitavam as suas numerosas e insistentes propostas que feriam gravemente a virtude da castidade. Não conheciam ainda a assistência da graça divina, tampouco o ensinamento do Apóstolo: “Tudo posso naquele que me fortalece”(Fl 4,13).

Sem embargo, Anchieta não tinha mais ao seu lado um irmão de vocação em quem se apoiar. Isolado, confiou à Rainha dos Anjos a custódia de sua pureza, fazendo-lhe um voto de que, se ela protegesse sua integridade, escrever-lhe-ia um poema em sua honra e louvor após regressar do cativeiro.

Certo de que sua Mãe Celeste atenderia tão santo pedido, o jovem herói antecipou o cumprimento da promessa. Como não havia material para escrever, registrou na areia das praias de Iperoig os versos de sua poesia. Nela, Anchieta proclamou uma exaltação da virtude angélica, ao venerar a Imaculada Conceição de Maria. Dando largas à sua erudição literária, harmonizou a doutrina à arte, cheio de piedade.

Conquista da Paz

Seu trato atencioso e sua pureza de costumes abrandou a dureza daqueles rudes corações, conquistando finalmente a paz.

Após 4 meses de cativeiro, a 21 de setembro, o Canário de Tenerife regressou a São Vicente, não sem arrancar lágrimas dos índios que lhe suplicavam não os abandonasse.

Detentor de prodigiosa memória, passou ao papel os versos que, apesar de terem sido apagados pelas ondas do mar, haviam sido gravados com o fogo do amor em seu coração. Deu-se origem, então, à obra De Beata Virgine Dei Matre Maria, que conta com mais de 5.700 versos.

Segue abaixo um curto trecho que relata a luta que travou e o auxílio que da Virgem das virgens recebeu o Apóstolo do Brasil:

“E tu perverso monstro,

varrendo o solo com peito infeccionado,

acometerás de rojo seu calcanhar de neve,

para abrir sangrentamente em sua carne

essa chaga mortal

e injetar, com os venenosos dentes,

o veneno da alma.

Ela, porém, esmagando-te,

não será sequer bafejada pelo hálito sinistro,

nem roçada pelos dentes sanguinosos.

Com as plantas vitoriosas

te comprimirá cerviz altiva,

te esmagará e arrancará a cabeça.

Tremam os sombrios infernos!

A Virgem derrubará cavalo e cavaleiro:

Tremam os sombrios infernos!”[4]

Por Rodrigo Siqueira


[1] TOMÁS, Joaquim. Anchieta: o Apóstolo do Brasil. Rio Grande do Sul: Minha Biblioteca Católica, 2020, p. 55.

[2] SAINTE-FOY, Charles. Anchieta: o Santo do Brasil. São Paulo. Artpress, 1997, p. 58.

[3] ANCHIETA, José de. De Beata Virgine Dei Matre Maria. Trad. P. Armando Cardoso, p. 433.

[4] VIOTTI, Hélio Abranches. Anchieta: o Apóstolo do Brasil. São Paulo: Loyola, 1966, p. 110.

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