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Última chamada para os otimistas

Sem pretensões em ser profeta, todos podemos fazer previsões fundadas na realidade dos fatos. Os últimos acontecimentos mundiais terão despertado a Opinião Pública? Ou o otimismo já passou a ser religião, proclamando sua fé por cima das evidências?

Romano

 Redação (31/07/2020 08:08, Gaudium Press) Se você gosta de poluição, de barulho, fumaça de escapamento, sujeira, asfalto, gritaria, aglomeração, orquestração de buzinas nos engarrafamentos encimados por aviões e hélices de helicóptero, berros propagandísticos ampliados por alto falantes à porta das lojas ou na mão de mercadores apressados, sirenes enervantes em alta velocidade, cheiro de esgoto misturando-se à gordura dos restaurantes e lanchonetes, de corre-corre, tensão, insegurança e torcida, não leia este artigo.

Outro dia, tendo que ir fazer algumas compras na cidade, compras indispensáveis e segundo todas as medidas de segurança da quarentena, varou os meus ouvidos esta afirmação, feita por uma comerciante: “Mas que dias vivemos… tudo parado, quem poderia imaginar? Aquele paraíso que era São Paulo…”.

Golpeado pela asserção, perguntei logo se se referia à rua Paraíso, ou se entendi mal.

“Não, São Paulo – respondeu – era um paraíso antes desta epidemia do Coronavírus”.

Neguei-me rotundamente a reformar os meus conceitos sobre o Paraíso e defendi interiormente os meus sonhos infantis, a descrição bíblica do Gênesis, e mesmo passei a simpatizar com as descrições idílicas dos poetas mais exagerados, mesmo não sendo nada tendente ao romantismo.

Diz um provérbio francês que “pour le crapaud, il n’y a rien de plus beau que sa crapaude”.[1] Em outras palavras, o otimismo é um fenômeno muito evidente e muito incompreensível.

As transformações pelas quais o mundo tem passado desde o início desta epidemia – já não se fala mais de medidas de segurança, quarentena, mas sim de transformação ou de “nova normalidade” – tornaram patente o quanto a opinião pública mundial estava escarrapachada na poltrona do otimismo, de forma tão arraigada que as aparências e as evidências mais alarmantes não puderam dissolver este vício anestesiante.

“É tão ruim que não pode ser verdade”. Eis o último argumento que sobrevive no fundo das consciências entorpecidas pelas esperanças no limbo moderno.

Quantas pessoas há hoje que estão diante do stablishment como os romanos pagãos diante do Hermensur, o carvalho divino, que diziam estender suas raízes até o centro da Terra? Estes alimentavam suas religiosas convicções até o dia em que Carlos Magno deitou o machado sobre o mito e o lançou por terra.

Assim, antes da epidemia era muito difícil provar para um habitante das megalópoles, aos adoradores do novo Hermensur, que este mundo do progresso supersônico, da técnica e de seus sortilégios, da medicina e de seus milagres, pode rachar de um momento para o outro. Para o otimista era mais fácil acreditar que a ordem das constelações tivesse se alterado, ou que o globo começasse a girar ao contrário.

Os últimos acontecimentos provam o quanto a ordem social está constantemente ameaçada como um gigante de pés de barros, como um elefante diante do rato que lhe entra pelos ouvidos; como a engrenagem das máquinas diante da pedrinha capaz de arrebentar seu compasso titânico; como o homem diante de um vírus microscópico, ou como a China embaixo d’água. Não para os otimistas para os quais nunca haverá provas contundentes, pois sua fé “limbolátrica” é escrupulosamente religiosa.

A cura de um otimismo com tantas metástases só se efetuará com a evidência da morte. O que os espera é a decepção, a vergonha e a confusão. Houve muitos colossos “indestrutíveis” na história da humanidade. As dinastias egípcias, os domínios de Alexandre, o Império Romano, o trono de baionetas de Napoleão, etc.

Mas o colosso do século XXI, cada vez mais globalizado, não pode fazer ruir tudo de uma só vez? Com desabamentos sucessivos que levem tudo abaixo, como um grande dominó das potências mundiais?

Não, o mundo não precisa de um “novo Contrato Social”. Precisa do remédio, não de uma magna eutanásia, onde supostamente desaparecerão todos as “desigualdades estruturais” e as desigualdades das “instituições globais”, como afirmou António Guterres, secretário geral da ONU, em discurso para a Fundação Nelson Mandela da África do Sul, no dia 18 de julho. As expressões não poderiam ser mais cinzentas, indefiníveis, se não soubéssemos o que está por detrás de um sistema filosófico e político baseado na negação incondicional de toda desigualdade, como se esta fosse má por natureza.

No momento em que o stablishment se suicida, é preciso lançar um apelo a tudo quanto ainda não esteja apodrecido, ou seja, a todos aqueles que, diante do fim de um mundo, não consentirão em inaugurar a vida selvagem de Rousseau, de Strauss, de Freud, como uma solução para gozar como animais os últimos instantes antes da derrocada total.

Enfim, não somos profetas ou visionários, não sabemos o que virá. Mas basta estar um pouco menos aturdido pelo gás do otimismo para ponderar que, talvez, o Titanic realizou, no fundo dos mares, uma tragédia profética.

Por Arthur Paz


[1] Tradução: para o sapo, nada há de mais belo que a sua ‘sapa’.

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