São Francisco de Borja
A morte da Imperatriz e depois a de sua própria esposa lhe mostraram o vazio de todas as coisas da Terra. “Nunca mais servirei um senhor que possa vir a morrer!”
Redação (03/10/2023 08:13, Gaudium Press) Francisco de Borja y Aragón-Gurrea nasceu em 28 de outubro de 1510, no palácio que a família possuía em Gandia, a uns 60 km de Valência. Era filho primogênito do terceiro Duque de Gandia e estava aparentado por linha materna com o Rei Católico, Fernando I de Aragão. Ainda menino perdeu a progenitora e conviveu muito pouco com o pai, homem intensamente dedicado aos assuntos do Estado.
Após ter recebido a mais completa educação que o século de ouro espanhol podia oferecer, foi enviado a servir como pajem na corte, onde desempenhou brilhante papel. Não tardou o imperador Carlos em perceber o valor desse jovem, no qual estavam reunidas todas as qualidades que se poderia esperar de alguém de sua linhagem, sustentadas e sublimadas por notável humildade.
Aos 18 anos, por conselho da imperatriz, Francisco contraíra núpcias com uma das mais nobres e virtuosas damas da corte: Dona Leonor de Castro Melo e Menezes. Com ela teve oito filhos, todos educados segundo seu exemplo de justiça e piedade.
Por ocasião desse casamento, Carlos V outorgou-lhe o título de Marquês de Lombay e nomeou-o Cavalariço-Mor da imperatriz.
Resolução
No entanto, a Imperatriz Isabel faleceu, após breve doença, no auge do poder e de sua extraordinária beleza. Só cabia sepultá-la junto a seus avós Fernando e Isabel, os Reis Católicos. O imperador confiou os cuidados do traslado a Francisco, homem de sua máxima confiança. Partiu, pois, para Granada um faustoso préstito conduzindo seus restos mortais.
Ao chegar a Granada, precisava o marquês testemunhar perante os notários ser realmente aquele o corpo da soberana. Mas ao abrir-se o caixão, espalhou-se no mesmo instante por todo o recinto o pior dos odores e constatou-se ser impossível reconhecer naquele cadáver, já putrefato, os traços daquela cuja beleza fora objeto da admiração geral.
Ali mesmo, depois de cumprir sua dolorosa obrigação, Francisco de Borja consumou com uma resolução concreta as inspirações vindas da graça. Uma famosa sentença, tantas vezes repetida pelos seus biógrafos, teria selado essa decisão: “Nunca mais servirei um senhor que possa vir a morrer!”.
E, pouco depois da morte da soberana, foi-lhe confiado o encargo extremamente árduo e delicado de Vice- Rei da Catalunha. Não eram poucas nem de pouca monta as obrigações que o espinhoso cargo lhe impunha. Porém, em meio a todas elas, o Marquês mantinha-se assíduo na oração e cultivava o costume da Comunhão diária, séculos antes de este se tornar comum entre os fiéis.
“O Duque Santo”
Com o falecimento de seu pai, em 1543, Francisco de Borja tornou-se o novo Duque de Gandia, título que trazia anexa a dignidade de Grande de Espanha, da qual desfrutavam apenas os 25 principais nobres do reino. Logo perceberam seus súditos como eram beneficiados em todos os sentidos pelo invulgar governante e passaram a chamá-lo de “o Duque Santo”. Transparecia nele a bondade de sua alma “harmoniosa, serena, digna e delicada”, qualidades para as quais contribuíam “sua nobre educação, sua fervorosa, implacável e constante ascese”.
Mas o anseio de abandonar o mundo falava em seu coração mais forte do que todas as grandezas terrenas. E a morte da esposa em 1546, quando ele contava apenas 36 anos, veio possibilitar a realização de seus desejos de entregar-se por inteiro à vida de perfeição.
Admitido em segredo na Companhia
Nessa época, outro espanhol de nobre estirpe, que tudo abandonara para dedicar-se exclusivamente ao serviço de Deus, consolidava em Roma a sua providencial fundação, alicerçando com sabedoria uma obra iniciada com audácia: era Inácio de Loyola expandindo a Companhia de Jesus.
Francisco de Borja admirava essa nova família espiritual, então nos seus primeiros anos de existência. Certo dia de 1541, na qualidade de Vice-Rei da Catalunha, escreveu a Inácio uma carta. Tendo-a em mãos, o santo fundador proferiu um surpreendente vaticínio: “Quem acreditaria que, com o tempo, este senhor entrará na Companhia e virá governá-la em Roma?”.
Cerca de sete anos depois, o Duque de Gandia – já viúvo e ignorando essa previsão procurava saber em qual Ordem religiosa Deus o queria. Na dúvida, consultou seu confessor, o franciscano Frei João Texeda, o qual lhe respondeu: “Vossa Senhoria deve entrar na Companhia de Jesus”.
O conselho realmente vinha de encontro às suas aspirações interiores, fato que o levou a escrever a Santo Inácio, e este o admitiu logo na Ordem Jesuíta. Recomendou-lhe, porém, manter por enquanto tudo em segredo até que estivesse livre das obrigações inerentes ao ducado de Gandia e à sua família.
Assim, ele fez a profissão em fevereiro de 1548, dando mostras de impressionante compenetração, mas continuou a exercer suas importantes funções públicas.
Encontro com Santo Inácio
Gozando agora da plena liberdade dos filhos de Deus, Francisco dirigiu-se a Roma, a fim de conhecer Inácio de Loyola. Partiu com sobrenatural sofreguidão por chegar logo, mas não pôde esquivar-se de uma ilustre comitiva de clérigos e nobres. Em fins de outubro, chegava à porta da Casa Professa dos Jesuítas, onde o esperava Santo Inácio, à frente de toda a Comunidade. Os dois santos prostraram-se de joelhos um diante do outro, e Francisco osculou repetidas vezes as mãos de seu fundador.
Certamente quis Deus compensar os dissabores sofridos por Santo Inácio nos primeiros anos da Ordem recém-fundada, ao mandar-lhe este filho de ouro. Todos em Roma mostravam-se assombrados com sua despretensão. Esta o levava, por exemplo, a servir a mesa e a lavar as vasilhas com a mesma naturalidade com a qual pouco antes governava a Catalunha. E nada podia encantar mais os circunstantes do que ouvi-lo falar sobre Nossa Senhora, pois, quando o fazia, tinha o dom de aumentar a devoção dos ouvintes.
Intensos e fecundos foram os meses passados junto ao fundador. Como São Francisco Xavier, foi este outro Francisco um daqueles que mais profundamente conheceu seu coração e de modo mais integral soube espelhá-lo no próprio.
Francisco de Borja foi confidente e, mais tarde, executor dos grandes anseios do fundador, pois sabe-se que neste período inicial, “os dois santos se comunicaram longamente seus projetos”. Ao longo de algum tempo de convívio, pôde ele receber o carisma inaciano em sua pureza e plenitude.
Grande também na hora da dor
De volta à Espanha, o Duque de Gandia renunciou perante tabelião público a todos os seus Estados, títulos e bens, revestiu-se do traje jesuíta e foi ordenado sacerdote em 23 de maio de 1551.
Celebrou sua primeira Missa pública no mês seguinte, perante uma assistência de dez mil fiéis, e todos os que comungaram quiseram receber a Sagrada Eucaristia das suas mãos. Peregrinou ao Castelo de Loyola, em cujo oratório celebrou uma Missa, e por fim se estabeleceu em Onhate, no País Basco, bem longe da corte e dos seus familiares.
Apesar de seus anelos, não conseguiu passar despercebido naquelas paragens, inclusive porque seu apostolado arrastava multidões. Mas o êxito inicial não impediu a chegada de indizíveis sofrimentos que se entrelaçaram num quadro dramático.
Uns advinham da hostilidade do rei Felipe II, que tinha queixas contra a família Borja, outros decorriam de problemas internos da Companhia, aos quais vieram somar-se uma longa série de enfermidades. Provando-o assim, a Providência manifestava, por um prisma mais elevado, a predestinação de Francisco, que foi grande em tudo, especialmente na dor.
Sucessor de Santo Inácio
Após a morte de Santo Inácio, em 1556, o padre Diego Laynez governou a Companhia por nove anos, dois como Vigário Geral e sete como Superior Geral, vindo a falecer em 1565. Em seu leito de morte, fitou longamente o padre Francisco de Borja, numa premonição do futuro que o aguardava. As eleições realizadas nesse mesmo ano confirmaram seu mudo presságio, pois foi ele o escolhido. A unanimidade com que todos se voltaram para o Santo constitui uma prova de estarem convictos do quanto este representava o espírito da Instituição.
Deste período de sua vida chegaram até nós preciosos documentos, como seu diário e cartas. As missivas por ele redigidas enquanto Geral revelam o perfil do santo e do homem de governo: em linguagem clara e direta, oferecem diretrizes dadas por quem conhece tanto as agruras dos caminhos quanto a fragilidade do homem que os trilha.
Aos superiores locais, por demais severos com os subalternos, exigia maior brandura e afabilidade. Já aos missionários tentados de desânimo pelas fadigas do apostolado, não escondia o quanto seu coração de pai era sensível à bravura de que vinham dando mostras: “Animem-se ainda pensando na consolação que nós, na Europa, sentimos, louvando o Senhor pela coragem que Ele dá aos que lá longe lutam por seu amor”, escreveu em 1568 ao padre Gregório Serrano, em missão no Brasil recém descoberto.
Entretanto, diante de religiosos empedernidos sabia valer-se da autoridade facultada por seu cargo e não admitia contemporizações. Em caso de necessidade, comenta um de seus biógrafos, “era enérgico, dizendo que Santo Inácio preferia ver sair da Companhia um sujeito mau a ver entrar nela um bom”.
Partida para a glória eterna
Por sete anos governou a Companhia de Jesus. Neles coube-lhe a grave responsabilidade de formar a primeira geração de religiosos que não conheceu o fundador, tarefa desempenhada com exímia fidelidade. Sob seu generalato, a Ordem adquiriu estabilidade, abriu numerosos colégios e consolidou-se nas missões. Em tão curto período, 66 jesuítas foram martirizados, entre os quais Inácio de Azevedo e seus 39 companheiros.
O falecimento de São Francisco de Borja, ocorrido em Roma, na madrugada de 1º de outubro de 1572, foi uma partida cheia de alegria para a Pátria Eterna, própria de quem deu tudo por Deus e estava prestes a receber d’Ele incomparavelmente mais.
Roguemos que, do Céu, São Francisco de Borja nos conduza às mais ousadas e corajosas iniciativas evangelizadoras que a maior glória de Deus tanto merece.
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho, Set/2011. n. 117.
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