Santa Rafaela Maria do Sagrado Coração
No dia 6 de janeiro de 1925, após sofrimentos terríveis suportados com heroísmo, Santa Rafaela Maria do Sagrado Coração, fundadora das Escravas do Sagrado Coração de Jesus, expirou santamente da mesma forma como havia vivido: humilde na consolação e no abandono.
Redação (06/01/2023 09:53, Gaudium Press) Rafaela Maria Porras Ayllón nasceu em Pedro Abad, na província andaluza de Córdoba, na Espanha, a 1º de março de 1850. Seus pais, católicos fervorosos e de fortuna acomodada, a educaram com esmero no amor à virtude e na prática dos Mandamentos.
Aos quinze anos entregou seu coração a Deus para sempre, fazendo secretamente o voto de perpétua castidade, na Igreja de San Juan de los Caballeros. Era o dia 25 de março de 1865, festa da Encarnação do Verbo, na qual se comemora o “fiat” da Santíssima Virgem como “Escrava do Senhor” (cf. Lc 1, 38).
Descortina-se a vocação religiosa
Queria o Altíssimo que Rafaela seguisse a via do abandono em suas divinas mãos. Para isso, exigia-lhe a cada passo um completo desapego das coisas terrenas, como ela mesma comenta a respeito de um episódio ocorrido quando contava dezoito anos: “Alguns fatos de minha vida, em que vi a misericórdia e a providência de meu Deus patente: a morte de minha mãe, a quem fechei os olhos por encontrar-me sozinha com ela naquela hora. […] Segurando sua mão, prometi ao Senhor jamais pôr meu afeto em qualquer criatura terrena”.
Transcorridos os meses, a existência de Rafaela Maria, bem como a de sua irmã, transformou-se de modo radical. Passavam o tempo junto à cabeceira dos mais indigentes e repugnantes enfermos, rezando o Rosário ou distribuindo esmolas aos pobres. Não poucas objeções tiveram de enfrentar na própria família, segundo conta Dolores: “Inteiramente órfãs e sendo muito perseguidas por nossos parentes mais achegados, minha irmã e eu, depois de quatro anos de terrível luta, decidimos nos tornar religiosas”.
Em qual instituto religioso ingressariam? Muitas possibilidades se descortinavam para elas. Em 1874 transladaram-se para Córdoba, onde tinham pensado, a princípio, tornarem-se carmelitas. Não obstante, recolheram-se por certo tempo no convento das clarissas e, a instâncias de algumas autoridades diocesanas, acabaram por entrar em tratativas com as visitandinas, a fim de estabelecer na cidade um pensionato dirigido pela ordem da Visitação.
Foi então que conheceram o Pe. José Antonio Ortiz Urruela, sacerdote que as havia de orientar e acompanhar nos primeiros passos de sua vocação, e aconselhadas por ele uniram-se à Sociedade de Maria Reparadora. Tratava-se de um instituto de recente criação, não sujeito à rigorosa clausura monástica, que visava conjugar a devoção eucarística às tarefas de apostolado, a serviço da Igreja universal.
De noviça a fundadora
Em março de 1875, algumas religiosas desta congregação, provenientes de Sevilha, se transladaram a Córdoba para fundar um noviciado, aproveitando o espaçoso prédio que lhes era oferecido pela família Porras. As duas irmãs começaram ali o postulantado e, em curto tempo, outras jovens seguiram seu exemplo.
Segundo o costume da época, ao receberem o hábito, Rafaela e Dolores deveriam trocar de nome para significar a nova vida que levariam. Chamar-se-iam, respectivamente, Maria do Sagrado Coração e Maria do Pilar.
Em 1876, após uma série de desavenças com o novo Bispo, as reparadoras retornaram a Sevilha. Rafaela, porém, discernia que Deus a queria em Córdoba, ainda que isto implicasse na criação de um novo instituto. Mas a fim de não impor sua opinião às demais, permanecia em profundo silêncio.
Para as outras noviças a escolha era clara: fariam o que fizesse Rafaela. Seu exemplo lhes havia atraído à vida religiosa e era sob o mesmo impulso que desejavam continuar. Quando souberam que ela e Dolores permaneceriam na cidade, sob a direção do Pe. Antonio Ortiz, decidiram acompanhá-las. Apenas quatro noviças seguiriam as religiosas de Maria Reparadora a Sevilha.
Rafaela, para sua surpresa, foi nomeada superiora da nova instituição. Nunca lhe passara pela cabeça ter que mandar em alguém, sobretudo em sua própria irmã. Dolores era de um temperamento vivíssimo, intuitivo e brilhante, e diziam que possuía capacidade para governar um reino, se fosse necessário. Ela, no entanto, havia-se acostumado a obedecer e escutar.
Aceitando o encargo que lhe impunham, não fazia mais do que tinha feito a vida inteira: sujeitar-se ao que parecesse melhor aos outros. Desde então, ela era noviça e mestra de noviças ao mesmo tempo. A Dolores coube o encargo de administrar os bens temporais da comunidade, o que soube executar com perfeição. As duas irmãs se transformaram em fundadoras do novo instituto que nascia.
Primeiros obstáculos
Quando se aproximava a primeira emissão de votos, algo veio perturbá-las: o Bispo, Dom Zeferino González y Díaz Tuñón, OP, quis examinar as constituições e nelas introduzir diversas modificações, pois desejava dar ao novo instituto uma nota mais dominicana. Considerava excessivo exporem diariamente o Santíssimo Sacramento, queria submetê-las a um regime mais restrito de clausura e estabelecer mudanças no hábito. E concedia-lhes vinte e quatro horas para aceitar as alterações que propunha.
Deus, entretanto, havia inspirado no coração das fundadoras que adotassem as regras da Companhia de Jesus e, ao tomarem conhecimento daquelas imposições, as noviças exclamaram em uníssono: “Queremos as regras de Santo Inácio”.
Não houve outro remédio senão se mudarem para a vizinha cidade de Andújar, pertencente à Diocese de Jaén. Fizeram-no à noite, sem prévio aviso e de comum acordo entre si. Chegadas a seu destino, hospedaram-se em um hospital beneficente. Passados poucos dias, um agente da autoridade local se apresentou em busca das religiosas desaparecidas de Córdoba, sob a acusação de serem contrabandistas! A denúncia era tão ridícula que as religiosas caíram na gargalhada…
A vida da nova congregação
Após idas e vindas, as “fugitivas” acabaram por se estabelecer em Madri, onde o Arcebispo Primaz da Espanha, Cardeal Juan de la Cruz Ignacio Moreno y Maisanove, as acolheu. A nova congregação foi por ele aprovada com o nome de Instituto das Irmãs Reparadoras do Sagrado Coração de Jesus, que mais tarde o Vaticano mudaria para Escravas do Sagrado Coração de Jesus.
O entusiasmo invadia o apartamento em que se instalaram no centro da cidade, embora fosse paupérrimo. Era tão pobre que se alguém as quisesse visitar recomendavam-lhe levar a própria cadeira…
A Sagrada Eucaristia era a sua primeira, e logo pediram autorização para manter em sua capela a reserva do Santíssimo Sacramento. A licença, todavia, dependia de Roma. Rafaela não desanimou e, sem titubear, escreveu ao Papa.
De Roma todas as coisas tardam, diziam-lhe… Mas a Providência procurou atender de forma inusitada aos anseios das jovens devotas: terminada a Missa diária, o capelão deixava-lhes, sem querer, algumas partículas na patena ou na toalha do altar e as religiosas, exultantes, passavam horas adorando aqueles pequenos fragmentos de Jesus Sacramentado. O fato era inexplicável! “Quanto mais cuidado tenho ao limpar a patena, maiores são as partículas que restam”, comentava o piedoso sacerdote.
Enraizado no fervor eucarístico e na devoção ao Sagrado Coração de Jesus, o instituto se expandia. Em 1885 já contava com quase cem religiosas. A nova associação ia adquirindo a característica tão desejada por Santa Rafaela Maria: “universal como a Igreja”.
As virtudes na alma de Rafaela também se intensificavam e chegou a ser qualificada como “a humildade feita carne”. Às suas filhas espirituais incutia a necessidade de estarem unidas para enfrentarem as futuras provações.
Os vendavais da desunião
Não demorou, porém, para que os vendavais da desunião viessem atingir o edifício sagrado das Escravas do Sagrado Coração de Jesus. Críticas injustas, incompreensões e desconfianças, provenientes de religiosas que formavam o núcleo do governo do instituto, foram se avolumando em relação a Rafaela, a ponto de a relegarem ao total isolamento. Todos os que desde o princípio a haviam apoiado, agora a abandonavam e a culpavam pelos males que pudesse sofrer a congregação. Madre Maria do Sagrado Coração não teve outra saída senão renunciar ao generalato nas mãos de sua irmã Dolores.
Que explicação dar às religiosas acerca da renúncia de Rafaela, elas que a consideravam como a mais santa dentro do instituto? Começa a difundir-se por todos os ambientes que ela já não tinha capacidade mental para governar e a razão a estava deixando…
Encaminhada à casa de Roma, Rafaela Maria via os dias se passarem com uma quietude assustadora. Isolamento, incertezas, silêncio, inutilidade: seria este seu destino por mais de trinta anos. Até então sua vida havia sido empregada em trabalho contínuo, em ações apostólicas de toda sorte. De Roma assistiria ao desenvolvimento de sua obra, “adivinhando só por indícios, por pequenos sinais, seus problemas, suas dores e suas alegrias”.
A Cruz do abandono e do olvido
Sabendo Rafaela que “nenhum obediente foi condenado”, determinou-se a fazer, sem descanso, tudo o que estava em suas mãos. “Se chego a ser santa, farei mais pela congregação, pelas irmãs e pelo próximo do que se estivesse dedicada aos ofícios de maior eficácia”.
Já não teria Rafaela autoridade alguma sobre o instituto. As religiosas mais antigas a encobriram com o véu do silêncio, e delas Rafaela só receberia humilhações e ingratidão. Aquelas que desde a “fuga” de Córdoba a seguiram com tanto entusiasmo, tornavam-se agora os algozes de sua crucifixão.
Aceitando o amargo cálice do abandono que o Senhor lhe oferecia, Rafaela tornou-se uma desconhecida dentro da obra que fundara. “Sem que ninguém estranhasse, verão a madre, já anciã, ajudando uma postulante coadjutora recém-chegada a montar as mesas. […] Cada vez mais desconhecida, chega um momento em que nem mesmo as que vivem na congregação sabem que a fundadora é ela”.
Grandes tribulações atormentavam seu puro coração, como ela escreve: “Minha vida foi sempre de luta, mas de dois anos para cá são penas tão extraordinárias que só a onipotência de Deus, que me ampara milagrosamente a cada instante, impede que meu corpo caia por terra. […] Todo o meu ser está em contínua angústia e desamparo, e prevendo que isto vai durar muito, muito. Por isto penso que Deus me abandonou? Não”!
Humildade e serviço até o fim
Em meio a tantos sofrimentos, Rafaela se distinguia na comunidade por jamais deixar de estar disposta a ajudar às demais, salvando-as de qualquer apuro. Apesar da idade avançada, fez-se escrava de todas para que seu Senhor fosse plenamente servido. Qualquer pena lhe parecia um consolo, por saber que a glória vindoura ultrapassa qualquer infortúnio.
Não raras eram as horas que passava diante do Santíssimo Sacramento! Com o decorrer dos anos apreendeu a ficar constantemente em oração, transformando as tarefas mais servis na mais alta contemplação. Diante de Deus Infinito, centro de seu amor, depositava ela sua vida, suas angústias, seus sacrifícios. Ao oferecer-Lhe seus afazeres, todo trabalho era-lhe suave e toda dor agradável.
Devido às contínuas horas que ficava ajoelhada adorando a Sagrada Eucaristia, acabou contraindo uma enfermidade no joelho direito que, pouco a pouco, a levaria à morte. Embora tivesse dores agudíssimas, nunca fez da doença uma desculpa para deixar de servir a todas.
No dia 6 de janeiro de 1925, após sofrimentos terríveis suportados com heroísmo, expirou santamente da mesma forma como havia vivido: humilde na consolação e no abandono.
Apenas três pessoas assistiriam a seu enterro… Mas aquela alma enamorada de Deus atingira a plenitude das virtudes em meio ao silêncio, à dor e ao apagamento mais completos. Ela participaria, do Céu, do crescimento de sua obra, fruto do sacrifício de sua vida.
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