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Quem ama, corrige!

São Bento, fundador de uma civilização, desejou que o alicerce de sua Ordem Religiosa fosse o amor. Por isso preceituou a correção fraterna entre seus filhos: os Capítulos. O que vem a ser essa via de perfeição encetada por São Bento?

Frédéric Lix Réunion du chapitre chez les Trappistes dOelenberg

Redação (11/07/2020 15:13, Gaudium Press) Ao abrirmos as páginas iniciais da Sagrada Escritura nos deparamos com uma pergunta que, à primeira vista, poderia surpreender o homem moderno, se não fosse ela feita pelo próprio Deus: “Por que fizeste isso?” (Gn 3,13). Com efeito, Adão e Eva haviam desobedecido à voz de Deus, cometendo o primeiro pecado da história humana. Ora, o Senhor em sua infinita bondade, não poderia deixá-los à mercê de si mesmos, por isso lhes faz essa pergunta, a fim de repreendê-los e para que eles percebessem a infidelidade e o estado em que estavam. Contudo… oh tristeza! Ao invés de reconhecerem a falta e ali mesmo pedirem perdão a Deus, que estava ansioso em perdoar-lhes, não o fizeram, e ainda por cima, um colocou a culpa no outro.[1]

Prosseguindo na leitura sagrada, aparece, aos nossos olhos, a figura de Caim, que por inveja matou seu irmão Abel. Deus lhe dirige uma indagação semelhante, a fim de repreendê-lo: “Que fizeste?” (Gn 4, 10).

Assim, ao longo de toda a Bíblia, encontramos fatos em que observamos o próprio Deus corrigindo o homem que se transviou. Tomemos outro exemplo: Davi. Quão agraciado foi este rei pelo Senhor! Contudo, cometeu o pecado de adultério, e como se não bastasse, acrescentou a este o de homicídio. Deus envia-lhe, então, o profeta Natã que repreende a Davi e o faz reconhecer o mal que havia feito (Cf. 2Sm 12, 1-15).

Após essas considerações, percebemos que Deus corrige o homem de duas maneiras: ora diretamente, como no caso de Adão e Eva; ora por intermédio de outros, como no caso do profeta Natã. Mas qual é a causa da correção?

Por que a correção?

“Meu filho, não desprezes a correção do Senhor, nem te espantes de que ele te repreenda, porque o Senhor castiga aquele a quem ama, e pune o filho a quem muito estima” (Pr 3, 11-12)

Por mais surpreendente que possa parecer, quando Deus corrige o faz por amor! Aqui está a origem e o modo de toda correção. Quando somos repreendidos, é uma prova de que somos amados por Deus! Mas não nos esqueçamos: o Senhor também se utiliza de outras pessoas para a nossa admoestação!

Com efeito, este é o fundamento de uma instituição criada ao longo dos séculos pelas Ordens Religiosas: o Capítulo.

O que vem a ser um “Capítulo”?

Desejosos de seguir o conselho dado pelo Divino Mestre ao moço rico “se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me!” (Mt 19, 21). Por isso, os religiosos entendem que, para ser perfeito, é necessário estar disposto a tudo sofrer por amor a Nosso Senhor Jesus Cristo. Além disso, precisam se purificar de todas as faltas, pois do contrário nunca alcançarão a perfeição querida por Cristo: “Sede perfeitos, como vosso Pai Celeste é perfeito” (Mt 5, 48).

Outra forma de cumprir este mandato de Jesus é abandonar a tudo aquilo que possa fazer com que a pessoa se afaste d’Ele, sobretudo, as faltas.

Entretanto, a natureza humana após o pecado original, tende a fazer o mesmo que Adão no Paraíso: não reconhecer as próprias dificuldades e pecados. E é exatamente por isso que foram criados os Capítulos nas Ordens Religiosas. A pessoa é corrigida pelos irmãos da comunidade que convivem com ela dia e noite e podem lhe ajudar a ver e superar as falhas que possam existir. É o que ficou conhecido como a correção fraterna.

De fato, o próprio São Bento assim escreve em sua Regra: “Se houver algum irmão teimoso ou desobediente, soberbo ou murmurador, ou, em algum modo, contrário à santa Regra e desprezador dos preceitos dos seus superiores, seja ele admoestado, conforme o preceito de nosso Senhor, a primeira e a segunda vez em particular, pelos seus superiores. Se não se emendar, seja repreendido publicamente, diante de todos” (Regra de São Bento, capítulo 23, 3).

O Santo Patriarca se refere nesta passagem às palavras de Nosso Senhor no seguinte trecho de São Mateus: “Se teu irmão pecar contra ti, vai corrigi-lo, tu e ele a sós! Se ele te ouvir, terás ganho o teu irmão. Se ele não te ouvir, toma contigo mais uma ou duas pessoas, de modo que toda questão seja decidida sob a palavra de duas ou três testemunhas. Se ele não vos der ouvido, dize-o à igreja” (Mt 18, 15-17).

Ora, numa comunidade religiosa, o que significa afirmar “dize-o à igreja”, senão à toda comunidade?

Quando a correção de um superior não é ouvida, recorre-se ao Capítulo para que também a comunidade inteira manifeste o seu parecer. “Na vocação à santidade em comum, necessito do irmão, ‘ministro’ de Deus, para que me obsequie com sua correção fraterna”.[2] Também Hernán Cardona e Fidel Oñoro corroboram esta afirmação: “Segundo a passagem, (Mt 18, 12-14), a comunidade é ‘a boa pastora’ de cada um de seus membros. […] Toda comunidade é responsável por cada um dos seus irmãos”.[3] “Somente o acontecimento de Jesus encarnado pode iluminar-nos nessa dura realidade sobre a obediência religiosa: precisamos uns dos outros para descobrirmos o querer do Pai”.[4]

Dessa forma, vemos que o Capítulo não é algo novo, mas é uma instituição que já vem desde séculos.

Correção: caminho que conduz para a vida eterna

Assim, cientes de que “a correção e a disciplina são o caminho da vida” (Pr 6, 20), a Tradição das Ordens Religiosas sempre procurou assimilar a instituição do “Capítulo”, fundamental para sua perseverança e crescimento.

É necessário dizer que, opostamente do que se poderia pensar, após um Capítulo, a pessoa não sai humilhada nem triste, muito pelo contrário, manifesta uma alegria interior e uma enorme vontade de melhorar. Cria também um laço cordial muito maior com os irmãos da mesma comunidade, além de uma enorme gratidão em relação a todos os que a ajudaram: “Quem corrige alguém, encontra no fim mais gratidão do que lisonjas” (Pr 28, 23).

Acrescente-se, também, que as faltas levantadas nos Capítulos nunca se referem a matérias graves ou pecados, unicamente a faltas leves – a razão de chegar atrasado aos horários da casa, descuidos no trato com os irmãos, etc. Cabe ressaltar ainda que, por tratar-se de algo muito pessoal, os Capítulos nunca devem ser filmados ou mesmo fotografados – São Bento certamente o incrementaria em suas regras, se vivesse nestes “tempos virtuais” como os nossos. Inclusive, após o Capítulo, os participantes comprometem-se a abster-se de quaisquer comentários sobre tudo quanto ali foi declinado pelos circunstantes, mesmo para aqueles que não estiveram presentes.

Portanto, a correção fraterna é uma prova de amor de uns pelos outros; pois “Deus quer que todos os homens se salvem” (1 Tm 2, 4), e ao prescrever a correção, Ele deseja que o homem reconheça sua imperfeição e se emende de suas faltas. “E como muitas vezes o erro vai se infiltrando através da ignorância, preceitua a correção para que se possa evitar a obstinação ou se consiga emendar a falta”.[5] “Por minha vida – oráculo do Senhor – não me comprazo com a morte do pecador, mas antes com a sua conversão, de modo que tenha a vida” (Ez 33, 11).

Por Bonifácio Silvestre


[1] Considere-se que Deus nada pergunta à serpente, pois o demônio não é passível de arrependimento.

[2] MARÍA, Fray José. El esplendor de la vida consagrada. Madrid: BAC, 2005, p. 221. En la vocación común a la santidad, necesito del hermano, ‘ministro’ de Dios, para que me obsequie […] con su corrección fraterna. Tradução nossa.

[3] RAMÍREZ, Hernán Cardona, SDB; CONSUEGRA, Fidel Oñoro, CJM. Jesús de Nazareth en el Evangelio de San Mateo. Medellín: UPB, 2011, p. 274. “Según el pasaje, (Mt 18, 12-14), la comunidad es ‘buena pastora’ de cada uno de sus miembros. […] toda comunidad es responsable de cada uno de sus hermanos”. Tradução nossa.

[4] KEARNS, Lourenço. Pe. Teologia da obediência religiosa. Aparecida: Santuário, 2002, p. 64.

[5] AMBRÓSIO. Exposión sobre el Ev. de Lucas, 8, 21-22. In: RODRIGUÉS, Marcelo Merino. La Biblia Comentada por los padres de la Iglesia. Nuevo Testamento, 3. Madrid: Ciudad Nueva, 2006, p. 363. “Y como muchas veces el error se va infiltrando a través de la ignorancia, prescribe la corrección para que se pueda evitar la obstinación o se consiga enmendar la falta”. Tradução nossa.

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