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O desapego da guerra e a guerra do desapego

É necessário prepararmo-nos para o desapego proporcionado pela situação de guerra.  

Migracao

Redação (02/03/2022 15:36, Gaudium Press) Estamos em guerra! Ah, mas a guerra não é aqui, é longe, é entre a Rússia e a Ucrânia; aquele povo sempre foi belicoso, violento etc, etc, etc. Ledo engano. A guerra é, sim, aqui. Não entendemos – e provavelmente nem entenderemos – tudo o que está no palco e, principalmente, nos bastidores desta guerra. Contudo, é bom pensarmos sobre o “efeito borboleta”, segundo o qual o bater de asas de uma borboleta no Brasil pode desencadear uma sequência de fenômenos meteorológicos que provocarão um tornado no Texas.

Esta alegoria – descrita pelo meteorologista Edward Lorenz, quando trabalhava em um sistema de equações diferenciais, com o objetivo de modelar evoluções climáticas – faz parte da “teoria do caos”, campo de estudo da Matemática com aplicações em várias ciências, como a Física, Engenharia, Economia, Biologia, Meteorologia. A teoria do caos trata de sistemas complexos e rigorosamente deterministas, mas que apresentam um fenômeno fundamental de instabilidade chamado sensibilidade às condições iniciais que os torna não previsíveis a longo prazo.

Parece complicado, mas não é. A teoria explica que pequenas diferenças nas condições iniciais, tais como as causadas por erros de arredondamento em computação numérica, produzem resultados futuros amplamente divergentes.

O efeito borboleta

Para facilitar, imaginemos que um contador precise somar os saldos de milhares de contas bancárias. Esses valores possuem centavos e, para facilitar e apressar a operação, ele resolve simplificar, desconsiderando os centavos. No final, haverá uma grande diferença que poderá afetar diversos sistemas dependentes dessa soma.

Ainda parece complicado? Então, simplesmente, imagine uma pedra sendo jogada em um rio e nos círculos concêntricos de pequenas ondas que se formam até as perdermos de vista. Por menor que seja a pedra, o equilíbrio daquela massa de água foi afetado.

O efeito borboleta se refere mais especificamente aos fenômenos meteorológicos, explicando que um pequeno fenômeno ocorrido num lado do mundo pode significar um resultado inesperado em outro lugar, pois o bater das asas da borboleta agitando o ar vai provocar ondas que vão se expandindo, expandindo e o resultado disso é imprevisível.

Assim, o bater de asas dos mísseis sobre a Ucrânia produzirão reverberações que atingirão o mundo todo; o que significa que, sim, a guerra é aqui também.

O desapego

No entanto, desde a invasão russa na madrugada do dia 24 de fevereiro, não se fala em outra coisa. São tantas informações que as pessoas já nem sabem para onde se voltar, em que acreditar. E, como em toda guerra ou disputa, todos acreditam que precisam escolher um lado, embora isso não precise ser necessariamente assim…

Por isso, não vou falar sobre a guerra de um modo geral, sobretudo porque não sou especialista em guerras. Aliás, se tivesse de ser especialista em alguma coisa, preferiria ser especialista em paz.

Tratarei aqui de um único aspecto: o desapego. De todas as imagens que temos visto e que, sem dúvida, têm nos assustado e nos comovido, chamou-me a atenção o forçado desapego a que os ucranianos estão precisando se submeter.

Como foi decretada a lei marcial que proíbe os indivíduos do sexo masculino, com idade entre 18 e 60 anos de deixar o país, estão se aproximando das fronteiras e atravessando-as, principalmente, mulheres, idosos, crianças e estrangeiros. Alguns tentam alcançar as fronteiras de carro, porém, uma grande quantidade de pessoas está fazendo isso a pé, caminhando muitos quilômetros. E ninguém consegue caminhar uma longa distância no frio, carregando grandes volumes de bagagem. Portanto, leva-se o que dá e, certamente, parte do que se está levando pode ser abandonada no meio do caminho, se o peso estiver além das forças de quem o carrega.

Este é o desapego da guerra: casas, móveis, plantas, objetos, fotografias, animais de estimação, computadores, tudo é deixado para trás. Pior, pessoas queridas são deixadas para trás. Para trás ficam também o conforto, o aconchego, a segurança, a comodidade, as certezas que se tinha, os sonhos, as esperanças, os projetos, o que se pretendia fazer amanhã.

A guerra do desapego

É duro, é dolorido, é comovente. No entanto, é o que temos de mais próximo da realidade da vida. Um dia, com guerra ou sem guerra, todos precisaremos atravessar uma grande fronteira e não poderemos levar nem mesmo a pequena mala carregada pelos refugiados. Não poderemos levar nosso cachorrinho, nosso gato ou nossa calopsita, como alguns têm conseguido fazer. Não poderemos levar nossas crianças, nem os nossos idosos ou os parentes que estão doentes e precisam de nossos cuidados.

Não poderemos levar nada além de nós mesmos. Até mesmo a roupa que será colocada em nosso corpo, para simbolizar a travessia, não será escolhida por nós. Então, fugir de um país em guerra é a imagem do desapego que todos devemos ter o tempo todo, todos os dias de nossas vidas.

Esta é a guerra do desapego. Uma guerra que cada um precisa travar consigo mesmo, com seu egoísmo, sua ganância, seu desejo de possuir, de acumular, de aumentar cada vez mais o seu patrimônio. Não haverá mísseis, não haverá canhões, não haverá bombas, tiros de metralhadora e tanques de guerra na frente de nossas casas, no estacionamento de nossos prédios. Ainda assim, haverá uma guerra. Na verdade, “haverá” não é o tempo de conjugação correto, porque esta guerra está em curso, está no presente, no minuto seguinte, na nossa próxima respiração.

Atravessar a fronteira

A guerra da Ucrânia também é nossa, porque seres humanos estão morrendo, porque meninos imberbes estão na frente de batalha, trocando os controle-remotos dos videogames pela operação de canhões e gatilhos de metralhadoras, e isso é muito triste, porque eles poderiam ser nossos filhos, nossos netos, nossos irmãos.

Aquela guerra também é nossa, porque trará aumento dos preços, escassez de produtos, desvalorização das bolsas, desaquecimento de alguns mercados e superaquecimento de outros. Aquela guerra também é nossa porque o risco da deflagração de uma Terceira Guerra Mundial é real.

Ela também é nossa porque hoje somos absolutamente dependentes da cibernética, e a internet pode ser uma das grandes perdas que afetará a todos numa proporção nunca vivida pela humanidade, pois tudo, absolutamente tudo está atrelado a ela, e a realidade do nosso mundo assim como o nosso tempo e a nossa atenção estão encarcerados no mundo virtual.

Assim, é necessário que nos preparemos para o desapego proporcionado pela situação de guerra e tenhamos claro em nossa mente o que está aonde e o que é possível e necessário levar num caso de emergência ou numa fuga repentina. Mas, prioritariamente, temos que travar, diariamente, as batalhas da guerra do desapego, porque nem mesmo o bater das asas de milhões de borboletas pode mudar essa realidade: atravessaremos a fronteira, porque somos mortais.

Por Afonso Pessoa

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