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Gozo da vida e perda do senso da transcendência

O ideal do homem renascentista era ter saúde de ferro, compleição corporal esplêndida, ser ótimo caçador, saltar do cavalo, encontrar uma dama, fazer uma reverência e cantar um madrigal.

Foto: Wikipedia

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Redação (04/06/2024 09:44, Gaudium Press) A concepção naturalista de vida que o homem renascentista possuía não se restringia ao espírito. Também fisicamente ele julgava que deveria ser perfeito. Seu ideal era ter saúde de ferro, compleição corporal esplêndida, ser ótimo caçador, abater javalis como quem mata formigas, saltar do cavalo, encontrar uma dama, fazer uma reverência e cantar um madrigal.

Depois de banquetear-se abundantemente, ir dançar como se nada tivesse comido. E, à noite, dormir um sono tranquilo. Eis o tipo clássico do renascentista.

Quase todos os monarcas da França daquele tempo eram grandes caçadores, guerreiros exímios, esplêndidos bailarinos, ótimos conhecedores de toda espécie de literatura e, em suas horas vagas, reis também.

Ademais, deviam ser falsos, dominadores e severos, mas, paradoxalmente, indulgentes para com certos vícios. Essa era a figura do rei perfeito.

Versão feminina do monarca, havia a rainha perfeita: majestosa, bela, distinta, inteligente, faceira e vaidosa. Não se exigia dela que cuidasse dos pobres, como o fazia Santa Isabel da Hungria, nem que fosse boa dona de casa, o que era ofício da criadagem. Bastava que se tornasse um excelente bibelô de salão.

O mesmo deveria dar-se, a seu modo, em todos os degraus da estrutura social.

Vida festiva, alegre e lampeira

Em suma, o renascentista é um tipo brilhante, inteligente, conversador, que tem uma obrigação de riso permanente.

Há diferentes modos de rir e poder-se-ia, mesmo, fazer a história através do riso: o riso discreto, o vulgar, a gargalhada boçal… O do homem da Renascença deveria ser um riso olímpico, prateado, cheio de orgulho e de condescendência, que sai dos lábios como uma música e repercute agradavelmente pelos lustres e pelos espelhos, sem cair até o chão.

Disto estão repletos os quadros que a Renascença nos legou: uma atitude superior, sobranceira, desdenhosa e otimista em relação à vida.

Como reflexo desse culto ao brilho pessoal, os salões tomam cada vez mais aspectos festivos, que atingirão o seu paroxismo no rococó, surgido no século XVIII.

Aqueles homens não podiam compreender uma superfície lisa. Cada milímetro tinha de ser aproveitado: anjinhos, cupidos, flores, frutos, cornucópias. Não se conhecem mais as linhas retas; as curvas imperam.

Por seu lado, as cores são cada vez mais delicadas, e, no rococó, surgem os cor-de-rosa muito delicados, os azuis quase brancos, os verdes cor de água.

A par disso, a atitude do homem é, em relação à vida, sempre mais festiva, alegre e lampeira. Nisto nota-se o que há de mais característico na alma renascentista.

Desaparece a noção de santidade

Naturalmente, em meio a tudo isto, vai deixando de existir a noção de santidade. Todos os homens, porém, têm coisas que eles reputam como ideais.

E os tipos representativos da sociedade, em lugar de serem santos, passam a ser pessoas dotadas daquilo que o renascentista chamava de “virtude”, e que o homem dos séculos XVII e XVIII veio a designar de “honestidade”.

A “virtude”, como eles a entendiam, não se encontra mais na pessoa boa que caminha para a sua verdadeira finalidade, mas naquela capaz de ganhar as grandes corridas da vida.

Esse modo de ser tem uma repercussão política curiosa. Ao se tomar como princípio que o homem completo é o possante e dominador, todo soberano, para ser perfeito, necessariamente deve pôr sua glória na guerra, que se apresenta, para o renascentista, não como um desastre, mas um modo de realizar este ideal.

Portanto, o conflito armado não será mais um ato que pode envolver pecado (a guerra injusta o é), mas uma brilhante aventura e quase um ato social onde, levado pelo otimismo, está-se mais ou menos certo que não se morrerá.

O rei não seria digno do cargo se não caminhasse para a batalha certo da vitória. Por isso, ele vai à guerra levando a corte, as senhoras, baixelas de ouro, prataria, toalhas de seda e rendas, e até orquestra.

Quando ele realiza um grande cerco, todas as senhoras, esposas e noivas dos oficiais vão apreciar, de uma certa distância, os belos feitos.

Os confrontos tomam o aspecto de uma bonita cavalgada, em que o rei se mostra olímpico. Se vencer merecerá a honra. Se perder, a desonra. Entretanto, não se cogita é se a guerra é justa, pois só o feito brilhante interessa. Nasceu, então, o militarismo e o nacionalismo. A ideia da autêntica fraternidade entre as nações cristãs desaparece.

Absolutismo e nacionalismo exacerbado

Em termos de política interna, esse mesmo espírito tem outras manifestações. Nesse tempo de admiração do homem olímpico, não se concebe respeito nem admiração pelos mais fracos. O rei olímpico não se sente obrigado a defender os direitos dos súditos. Pelo contrário, o próprio dele é ser o homem que consegue esmagar todos os outros.

Se há grandes senhores no seu reino, precisa achatá-los para provar que é poderoso. Se existem cidades ou corporações autônomas, deve reduzi-las à escravidão para provar que é um triunfador. Se há restos de liberdade, ele os extinguirá para mostrar que seu poder é colossal. E, enquanto ele domina, todos o admiram.

Deste estado de espírito olímpico, devia brotar necessariamente o absolutismo e originar-se o ocaso da sociedade orgânica medieval.

Olimpismo, naturalismo, complacência para consigo mesmo, no campo pessoal; no plano político, totalitarismo, nacionalismo exacerbado e espírito beligerante: eis algumas características marcantes do espírito da Renascença.

A partir dela, outras épocas históricas foram se sucedendo, com suas características específicas, até os nossos dias. As manifestações do espírito peculiar a cada uma dessas fases históricas, entretanto, têm um denominador comum: a volúpia pelo gozo da vida, e a perda do senso da transcendência que fez a glória da Idade Média.[1]

O verdadeiro católico deve se compenetrar de que não nasceu para o prazer, mas para o heroísmo. Diz a Sagrada Escritura que “a vida do homem sobre a terra é uma luta” (Jó 7, 1).

De fato, o homem é criado para conhecer, amar, servir a Deus e, assim, salvar sua alma. Para alcançar esse supremo fim, precisa batalhar continuamente contra suas más inclinações e os inimigos declarados ou velados de Deus e de sua Santa Igreja.

Peçamos a Nossa Senhora que nos obtenha as graças necessárias para enfrentarmos essa guerra com ânimo forte e confiança inabalável.

Por Paulo Francisco Martos

Noções de História da Igreja


[1] Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Na Renascença, domínio do natural e do terreno. Dr. Plinio, São Paulo. Ano III, n. 23, fev. 2000, p.16-18.

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