Fogo purificador e a renovação da face da Terra
Anunciando o momento em que a face da Terra será renovada pelo incêndio do amor divino, Nosso Senhor revela a extraordinária força que nasce de seu sacrifício e manifesta o ardente desejo de consumá-lo.
Redação (14/08/2022 16:09, Gaudium Press) Comoventes e admiráveis são as manifestações de misericórdia de nosso Senhor Jesus Cristo no decorrer de sua vida pública. Sem jamais recusar benefício algum aos infelizes que d’Ele se aproximavam necessitando de auxílio, realizava curas corpóreas e espirituais nunca antes testemunhadas.
Certa vez, enquanto caminhava pela estrada que conduzia à cidade de Naim, deparou-se com o funeral de um jovem que falecera deixando a mãe, uma pobre viúva, desamparada e sozinha. Compadecido da triste sorte que a aguardava, Jesus fez o jovem voltar à vida e o restituiu à sua progenitora em excelentes condições físicas, certamente melhores que as anteriores.
Incessantes eram os milagres e incomensurável o alcance de seus favores. Por isso, São Lucas sintetizou tais obras afirmando que Ele “pertransivit benefaciendo” ― passou fazendo o bem (At 10,38).
Como ouvimos com frequência palavras cheias de comiseração saídas dos próprios lábios divinos, o ensinamento do Evangelho deste 20º Domingo do Tempo Comum pode causar-nos certa perplexidade por não se coadunar, à primeira vista, com o modo de proceder de nosso Senhor consignado em outras passagens. Haveria, portanto, uma contradição no ministério de Jesus? Ou suas palavras sobre o fogo, a divisão e o rompimento dos laços familiares contêm uma profundidade que exige uma análise mais acurada?
O fogo do amor divino
Naquele tempo disse Jesus aos seus discípulos: “Eu vim para lançar fogo sobre a Terra, e como gostaria que já estivesse aceso!”
Ousada é a afirmação desse versículo, no qual nosso Senhor declara ter assumido a Encarnação com a finalidade de propagar um fogo, sendo tão veemente o seu desejo de vê-lo arder que aguarda com ansiedade a chegada de tal momento.
Sabemos que a figura do fogo aparece na Escritura com diversos significados, na maioria das vezes, com uma conotação punitiva. No episódio em que uma labareda saída de junto do Senhor devorou os duzentos e cinquenta que tinham se revoltado contra Moisés, tão eficaz foi o efeito produzido que não restaram sequer indícios dos difamadores (cf. Eclo 45,22-24; Num 16,35).
Com um propósito semelhante Elias fez descer fogo do Céu sobre dois capitães, cada qual em companhia de cinquenta soldados, todos imediatamente incinerados (cf. 2Re 1,9-12). Além disso, as menções às penas infernais sempre são acompanhadas pela imagem de um incêndio peculiar, criado por Deus para este fim, cuja energia é Ele próprio, um fogo inteligente que não se apaga.[1] Ora, o contexto deste Evangelho denota que o Salvador não alude às passagens antigas já conhecidas pelo público ao qual pregava, nem se refere às chamas do inferno. Suas palavras, envoltas em ar de mistério, versam sobre um fogo novo.
Incendiar a Terra pela redenção
Através da união da natureza humana com a divina em uma só Pessoa, e pelos méritos infinitos da Encarnação, Paixão, Morte e Ressurreição de nosso Senhor Jesus Cristo, desceu à Terra um fogo capaz de purificar o pântano no qual os homens estavam atolados por causa dos efeitos da falta de nossos primeiros pais: “Jesus veio do Céu à Terra para pôr fogo nas almas a fim de depurá-las, queimar suas escórias e torná-las pura prata e ouro diante de Deus: é o fogo da santidade, da caridade; é todo o sistema de santificação que Jesus trouxe ao mundo”.[2]
Com a Redenção, fomos elevados a um patamar espiritual inimaginável, pois foi-nos aberta a possibilidade de sermos agradáveis a Deus e partícipes de sua própria divindade. Conclamados a assumir a mesma perfeição do Pai Celeste (cf. Mt 5,48), recebemos para isso a efusão do amor de Cristo que acrisola nosso próprio amor, torna-o meritório e fecundo, além de nos oferecer a possibilidade de vencermos o pecado, que embora ainda lance seu aguilhão já não impera mais.
À medida que os homens se deixam penetrar pelo fogo da caridade, os obstáculos aos ditames da graça vão sendo transpostos, porque nada pode deter a marcha daqueles que amam.
Quem se entrega por inteiro ao amor sobrenatural torna-se capaz de realizar prodígios, tal como fizeram os grandes heróis da Fé. A história dos santos está repleta de exemplos magníficos nesse sentido. Movidos por esse fogo abrasador, devotaram-se a uma causa superexcelente, enfrentaram com determinação sobre-humana as maiores adversidades e mudaram os rumos da História.
Essas foram almas que possuíram a plenitude da caridade, para cuja representação nosso Senhor não encontrou melhor símbolo que o fogo, pois a chama é atraente, bela, eleva seu brilho para o céu e ilumina. Ao mesmo tempo, contudo, queima, e diante desse poder de combustão não há quem cometa a temeridade de julgá-lo inócuo.
Amemos Aquele que nos amou tanto
“Devo receber um batismo, e como estou ansioso até que isto se cumpra!”
É esse fogo de amor de faz com que nosso Salvador se sinta tão ansioso de cumprir sua missão e receber esse “batismo” que era a sua dolorosa paixão. Qual seria a razão de estar Ele tão desejoso para que isto se cumprisse?
O resgate do gênero humano a ser operado através dessa entrega, pois seu amor infinito pelas almas O impelia a querer purificá-las quanto antes e fazer com que esse fogo começasse a consumir as misérias humanas, transformando os homens em perfeitos filhos de Deus. O fogo da caridade não comporta delongas, pois estas significam um esmorecimento de fervor; assim, Jesus, movendo-Se apenas por amor ao Pai e a nós, caminha ávido para o tormento.
Diante de tamanha mostra de bondade o que nos cabe fazer? Lembremos “o amor com amor se paga”. Se recebemos de Jesus uma tal efusão de amor, é o nosso dever amá-Lo acima de todas as coisas e colocá-Lo como eixo de nossa existência. Dessa maneira, estaremos retribuindo, tanto quanto a nossas limitações de criaturas humanas permitem, essa caridade infinita de Deus para conosco.
Extraído, com adaptações, de CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O inédito sobre os Evangelhos: Comentários aos Evangelhos dominicais. Città del Vaticano: Libreria Editrice Vaticana, 2012, v.6. p. 286-301.
[1] Cf. GARRIGOU-LAGRANGE, Réginald. O homem e a eternidade. Lisboa: Aster, 1959, p.153. Ver também: SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Suppl., q.97, a.5, ad 3; a.6, ad 2.
[2] GOMÁ Y TOMÁS, Isidro. El Evangelio explicado. Años primero y segundo de la vida pública de Jesús. Barcelona: Acervo, 1967, v.II, p.195.
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