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Carta aberta ao núncio Dom Giambattista Diquattro sobre os sacerdotes autorizados a exercer cargos públicos

            A lei canônica é claríssima: “Proíbe-se aos clérigos aceitar cargos que implicam a participação no exercício da potestade civil”.

Sacerdote

Redação (03/05/2022 15:37, Gaudium Press) Estamos em ano eleitoral! Desta feita, sugiro a V. Exª. Rev.ma. auscultar certos bispos sobre o porquê da autorização por eles concedida a alguns presbíteros para a atuação em cargos públicos.

A lei canônica é claríssima: “Proíbe-se aos clérigos aceitar cargos que implicam a participação no exercício da potestade civil” (tradução do cânon 285, §3.º). O cânon 287, §2.º, espanca quaisquer dúvidas. Leiamos sua tradução: “Não tenham [os clérigos] parte ativa nos partidos políticos e na direção de associações sindicais, a não ser que, a juízo da autoridade eclesiástica competente, o exijam a defesa dos direitos da Igreja ou a promoção do bem comum.” Tais misteres têm de ser desempenhados pelos leigos! Ninguém olvida – porque televisionado – o antológico reproche que são João Paulo II assacou em face do Pe. Ernesto Cardenal, que exercia o ofício de Ministro de Estado na Nicarágua.

Salvo melhor juízo, a intervenção do núncio in casu tem cabida! Vossa Exª. Rev.ma. é custos legis, guardião da lei. Não se trata de interferência em assuntos pastorais, mas anela-se, isto sim, zelar e velar por normativa de ordem pública, que não admite derrogação unilateral. Despiciendo asseverar que parece caber ao representante do pontífice romano abroquelar o código canônico, expressão do desiderato do supremo legislador, prestando ajuda e conselho aos bispos (cânon 364, 2.º).

Estatui a constituição dogmática Lumen Gentium: “É, porém, específico dos leigos, por sua própria vocação, procurar o reino de Deus, exercendo funções temporais e ordenando-as segundo Deus” (n. 31b). A secularidade dos leigos, caríssima aos integrantes do concílio, é juridicamente confirmada pelo código canônico. Leia-se a tradução do cânon 225, § 2.º: “Têm [os leigos] também o dever especial, cada um segundo a própria condição, de animar e aperfeiçoar com o espírito evangélico a ordem das realidades temporais e, assim, dar testemunho de Cristo, especialmente na gestão dessas realidades [como deputado, senador, vereador, prefeito, governador, presidente etc.] e no exercício das atividades seculares”.

O Catecismo da Igreja Católica perfilha a mesma concepção sobre o múnus do leigo: “A iniciativa dos cristãos leigos é particularmente necessária quando se trata de descobrir, de inventar meios para impregnar as realidades sociais, políticas e econômicas com as exigências da doutrina e da vida cristãs.” (n. 899). Na verdade, o aludido catecismo é contundente: “Não cabe aos pastores da Igreja intervir diretamente na construção política e na organização da vida social. Esta tarefa faz parte da vocação dos fiéis leigos, que agem por própria iniciativa com seus concidadãos.” (n.º 2442).

Hoje em dia, com tantos leigos bem-preparados, mas alguns infelizmente clericalizados, ao arrepio da vontade do Papa Francisco, haveria mesmo assim bastantes fiéis aptos a assumir postos nos parlamentos e noutros órgãos do Estado. Que o bispo estimule e auxilie os leigos vocacionados a serem deputados, prefeitos etc.! Só mesmo a calamidade social ou vicissitude semelhante abonaria a autorização que certos antístites deferem a clérigos incardinados nas Igrejas particulares para o exercício de cargo público. Outra não é a mens legislatoris: “(…) a não ser que, a juízo da autoridade eclesiástica competente, o exijam a defesa dos direitos da Igreja ou a promoção do bem comum” (cânon 287, §2.º). É necessário perguntar aos antístites concedentes da autorização de que modo os requisitos da lei se fazem presentes em cada caso concreto. Eis minha humilde sugestão!

Posto isto, sugiro que vossa Exª. Rev.ma. procure seus colegas sucessores dos apóstolos e os interpele cuidadosa e caridosamente acerca dos motivos que os levaram às indigitadas autorizações, tão excepcionais, conforme atesta o ordenamento jurídico-canônico, a fim de verificar se as mencionadas chancelas se coadunam com os ditames do código canônico em vigor. A meu ver, não se cuida de reprimenda, mas de nímio auxílio aos diletos pastores!

Por Edson Luiz Sampel

Advogado. Presidente da Comissão Especial de Direito Canônico da OAB-SP (116ª Subseção). Professor do Instituto Superior de Direito Canônico de Londrina. Membro da Sociedade Brasileira de Canonistas (SBC).

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