Até onde deve chegar nossa fé
A barca com os Apóstolos é sacudida pela tempestade; bem poderia ser a imagem da Igreja em luta nos mares deste mundo, em plena noite, visando desembarcar nas margens do Reino Eterno.
Redação (13/08/2023 13:32, Gaudium Press) São João é o único Evangelista a narrar a forte impressão produzida pela multiplicação dos pães e dos peixes na multidão que dela se beneficiou, cujo relato, pela pena de São Mateus (cf. Mt 14,13-21), pudemos contemplar no domingo anterior.
Neste 19º Domingo do Tempo Comum, contemplamos a continuação deste fato milagroso.
Jesus manda que seus discípulos entrem na barca e prossigam para o outro lado do mar, enquanto Ele despedia as multidões que se maravilham com sua presença e seus sinais. Tendo-as despedido, recolhe-Se no alto de um monte em oração.
Porém, enquanto Jesus desaparecia em meio à noite, imerso em suas orações no alto da montanha, a barca se encontrava no meio do mar. A atmosfera estava agitada e o vento oeste transformava-se em terrível tempestade. Ondas enormes, além do vento contrário, tornavam inúteis os esforços empreendidos sobre os remos. É sabido que o Mar de Tiberíades tem esses repentes imprevisíveis, que deixam os remadores sem forças e desanimados. Mas Jesus, mesmo estando à distância, humanamente falando, por seu poder divino os acompanhava a cada instante. Via-os na grande dificuldade em que se encontravam.
“Pelas três da manhã, Jesus veio até os discípulos, andando sobre o mar. Quando os discípulos o avistaram, andando sobre o mar, ficaram apavorados, e disseram: ‘É um fantasma’. E gritaram de medo. Jesus, porém, logo lhes disse: ‘Coragem! Sou eu. Não tenhais medo!’” (Mt 14,25-27)
Terá Ele assumido nessa hora a agilidade característica do corpo glorioso ou terá feito um milagre? O certo é que Ele transpôs a distância que ia entre o alto do morro e o meio do lago com toda facilidade.
Segundo observa Lagrange,[1] Marcos afirma que Jesus os via ao longe, se bem que Mateus nada diga a respeito. De sua parte, Maldonado, com base em São Cirilo de Alexandria e Leôncio, tece considerações muito interessantes sobre a oportunidade escolhida pelo Mestre: “Jesus Cristo esperou uma tríplice circunstância para operar o milagre: que os discípulos estivessem em alto mar, onde não podiam esperar auxílio de parte alguma; que o vento lhes fosse contrário e a barca se visse investida pelas grandes ondas; e que chegasse a última vigília da noite, para que os navegantes provassem sua fé e paciência, e sentissem a necessidade de um milagre”.[2]
Manter a calma na tempestade
“Então Pedro Lhe disse: ‘Senhor, se és Tu, manda-me ir ao teu encontro, caminhando sobre a água’. E Jesus respondeu: ‘Vem!’ Pedro desceu da barca e começou a andar sobre a água, em direção a Jesus. Mas, quando sentiu o vento, ficou com medo e, começando a afundar, gritou: ‘Senhor, salva-me!’. Jesus logo estendeu a mão, segurou Pedro, e lhe disse: ‘Homem fraco na fé, por que duvidaste?’” (Mt 14,28-31)
São João Crisóstomo, mais uma vez, se destaca de outros comentaristas ao focalizar este versículo com as seguintes palavras: “Por que o Senhor não mandou que os ventos se acalmassem, mas estendendo sua mão segurou Pedro? Porque era necessário que ele tivesse fé. Quando falta a nossa cooperação, cessa também a ajuda de Deus. E para manifestar-lhe que não era o furor do vento, e sim a pouca fé do discípulo que produzia o perigo, disse-lhe: ‘Homem de pouca fé, por que duvidaste?’”.[3]
“Assim que subiram no barco, o vento se acalmou. Os que estavam no barco, prostraram-se diante d’Ele, dizendo: ‘Verdadeiramente, Tu és o Filho de Deus!’” (Mt 14,32-33)
Deste acontecimento podemos extrair uma boa lição para as fases de provação e tentação, pelas quais frequentemente passamos. Na hora da tempestade, vem-nos a ideia de que estamos próximos a perecer. Tanto mais que muitas vezes nem sequer chegamos a prever a borrasca na qual, de repente, somos introduzidos. Foi, aliás, o que aconteceu com os próprios Apóstolos. Qual deles poderia ter imaginado que, embarcando por ordem expressa de Jesus, iriam encontrar um mar tão tempestuoso e bravio?
Deparamo-nos com ventos contrários e impetuosos? Saibamos manter a calma. Ainda que de forma imperceptível, Jesus está sempre presente e, de um momento para outro, Se fará ver por nós.
Percebemos, também, por esse episódio, o quanto o pensamento de Deus não só é infinitamente superior ao nosso, mas também distinto. Se víssemos nós o terrível esforço dos discípulos, remando contra as ondas, em meio à aflição e ao perigo, e a inutilidade do seu empenho, procuraríamos socorrê-los de imediato. No entanto, Deus aparentou estar ausente, para fazer brilhar seu poder e glória, fortificar a fé deles, conceder-lhes mais méritos e premiá-los, por fim, com consolações inenarráveis.
Assim é, também, conduzida a Igreja pelo seu Divino Fundador: exposta a toda espécie de perseguições e dramas, de cada uma dessas situações resulta sempre uma vitória e, não poucas vezes, o triunfo.
Extraído, com adaptações, de:
CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O inédito sobre os Evangelhos: comentários aos Evangelhos dominicais. Città del Vaticano-São Paulo: LEV-Instituto Lumen Sapientiæ, 2012, v. 2, p. 261-267.
[1] Cf. LAGRANGE, Marie-Joseph. Évangile selon Saint Matthieu. 7 ed. Paris: J. Gabalda, 1948, p. 294.
[2] MALDONADO, Juan de. Comentarios a los Cuatro Evangelios. Evangelio de San Mateo. Madrid: BAC, 1950, v. I, p. 538.
[3] JOÃO CRISÓSTOMO. Homilía L, n. 2. In: Obras. Homilías sobre el Evangelio de San Mateo (46-90). 2. ed. Madrid: BAC, 2007, v. II, p. 76.
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