2º Domingo da Quaresma: o Domingo das mentiras?
Aceitando as cruzes e sofrimentos enviados pela Providência Divina, o fiel batizado prepara sua alma para ver a Deus face-a-face.
Redação (05/03/2023 09:05, Gaudium Press) O segundo Domingo da Quaresma, outrora conhecido em nossa mãe-pátria como o “Domingo das verdades”, bem poderia ser chamado o “Domingo das mentiras”, segundo os dizeres do Pe. Antônio Vieira.[1]
Domingo das mentiras? A Liturgia desse dia nos convida à reflexão das verdades eternas, sobretudo de uma que é capital na vida de todo homem: fomos criados não para essa terra, mas sim para o Céu. Porém, em se tratando de verdades eternas, qual é o homem que possui palavras para descrevê-las?
O Pe. Antônio Vieira explica que São Tomás, fazendo referência a Aristóteles,[2] divide a mentira em duas espécies: por excesso e por defeito. A primeira, aumenta a verdade. A segunda, falta à verdade, porque diz menos. Conforme explica o insigne pregador, essa divisão fundamenta-se na oposição que a mentira tem com a verdade, pois a integridade da verdade consiste em dizer o que ela é, assim como é. Deste modo, dizer mais do que é, é mentira por excesso; e, ao dizer menos, o é por defeito.
Isto posto, o Pe. Vieira nos assegura que dessa segunda espécie de mentira (a qual não é moral), nem os profetas, nem os evangelistas podem se livrar quando falam da glória. Não porque não queiram dizer a verdade, e a digam do modo que podem, mas porque as verdades da glória são tão altas, tão sublimes, e tão superiores a toda a capacidade e linguagem humana que, por mais que digam o que é, sempre dizem menos.[3]
“Naqueles dias, o Senhor disse a Abrão: ‘Sai da tua terra, da tua família e da casa do teu pai e vai para a terra que eu te vou mostrar’” (Gn 12,1).
Qual é essa terra que o Senhor jurou dar a Abraão e a sua descendência? A terra prometida? Sem dúvida. Entretanto, percorrendo o Evangelho de São João, encontramos o trecho no qual dois dos que queriam ser discípulos de Jesus perguntam: “Mestre, onde moras?”. Ao que Ele respondeu: “Vinde e vede!” (Jo 1,38).
Segundo as palavras de São Beda: “Não disse o Senhor onde morava aos que o queriam saber, e somente lhes respondeu que viessem e vissem, porque a morada de Cristo é a glória, e o que é, e como é a glória, só se pode ver, mas não se pode dizer.[4] Lembremo-nos de que São Paulo, aquele que foi arrebatado ao terceiro céu, ao referir-se às realidades celestes, restringe-se suas palavras, indicando tratar-se de algo que “os olhos jamais viram, nem os ouvidos ouviram, nem coração algum jamais pressentiu” (1Cor 2,9).
Per Crucem, ad Lucem!
“Caríssimo, sofre comigo pelo Evangelho, fortificado pelo poder de Deus” (2Tm 1,8).
Contudo, como reza um antigo adágio latino, “per Crucem, ad Lucem”,[5] após o pecado original, a vida do homem nessa terra tornou-se uma constante luta (cf. Jó 7,1). E, para alcançar a glória prometida, é necessário antes que cada um carregue sua cruz com alegria, a exemplo d’Aquele que tudo sofreu por nós, e que não poupou uma gota de sangue sequer para nos redimir.
O sofrimento nessa vida é algo que nos acompanhará até a morte. Ora, se rejeitarmos ou fugirmos das cruzes que Deus nos envia a cada momento, é provável que tenhamos de aprender a carregá-las nas chamas do purgatório. O sofrimento, pois, forja nossas almas para a eterna visão de Deus, e purifica-a de qualquer defeito ou miséria.
Santa Bernadette Soubirous, uma das poucas almas favorecidas com a insigne graça de ver a Santíssima Virgem ainda nessa terra, passou a vida toda desprezada, sendo considerada como louca, além de ser posta de lado. Na terceira aparição, Nossa Senhora dirigiu-lhe a palavra pela primeira vez, prometendo-lhe: “Não prometo fazer-te feliz nessa terra, mas sim no céu”.[6]
Porém, Deus é nosso Pai, e de nenhum modo um tirano. Se essa vida fosse um constante sofrer, desfaleceríamos em breves dias. É, pois, tendo em vista nossa luta, que o Senhor nos envia consolações do Céu, a fim de que, “bebendo água corrente no caminho, sigamos de fronte erguida” rumo ao fim (cf. sl 110,7). Isso é o que constatamos no Evangelho:
“Naquele tempo, Jesus tomou consigo Pedro, Tiago e João, seu irmão, e os levou a um lugar à parte, sobre uma montanha. E foi transfigurado diante deles. […] Então Pedro tomou a palavra e disse: ‘Senhor, é bom ficarmos aqui. Se queres, vou fazer aqui três tendas’” (Mt 17,1-4).
Por qual razão Jesus terá concedido tamanha graça a esses três Apóstolos? Lembremo-nos de que eram as “colunas da Igreja” e, portanto, teriam de sustentar os demais na Fé no momento da Paixão de seu Mestre. Deste modo, era também preciso que recebessem graças proporcionais aos sofrimentos pelos quais deveriam passar, porque, do contrário, não suportariam ver a Nosso Senhor sendo entregue nas mãos do Sinédrio e padecer a crudelíssima morte de Cruz.
Em suma, a oração do dia nos imposta a vivermos corretamente:
Ó Deus, que nos mandastes ouvir vosso Filho amado, iluminai nosso espírito com a vossa Palavra, para que, purificado o olhar de nossa Fé, nos alegremos com a visão de vossa glória.
Por intermédio d’Aquela que esteve de pé junto à cruz de seu Amado Filho, Maria Santíssima, peçamos a Jesus transfigurado que, purificando o olhar de nossa fé, através da aceitação das cruzes e sofrimentos que a Providência Divina nos reserva até o fim de nossa peregrinação terrena, possamos um dia nos alegrar com a visão beatífica.
Por Guilherme Maia
[1] Cf. ANTÔNIO VIEIRA. Obra completa Padre Antônio Vieira. Tomo II: parenética, volume III: sermões da quaresma. São Paulo: Loyola, 2015, p. 31-54.
[2] S. Th. II-II, q. 110, a. 2, arg. 3.
[3] Cf. ANTÔNIO VIEIRA. Op cit., p. 36-37.
[4] Idem, p. 50.
[5] “Pela cruz alcança-se à Luz”.
[6] TROCHU, Francis. Bernadette Soubirous. Trad. Ricardo Tavares. 2. ed. São Paulo: Cultor de livros, 2021, p. 95.
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