O Precursor e a virtude da restituição
Ao ver Jesus vir a ele no Jordão, João era já pregador de grande prestígio, profeta como nunca houvera em Israel. Entretanto, longe de sentir inveja, o Batista reagiu com heroica humildade e ilimitada servidão, testemunhando ser aquele Homem o Filho de Deus.
Redação (15/01/2023 09:57, Gaudium Press) “O semelhante se alegra com seu semelhante”, diz um antigo provérbio latino, e, de fato, é esse um princípio intrínseco a todos os seres com vida, na medida em que sejam passíveis de felicidade. Deus nos criou e fez uns dependerem dos outros, aperfeiçoando-nos com o mais entranhado dos instintos, o de sociabilidade.
Se para um pássaro constitui motivo de gáudio o encontrar-se com outro da mesma espécie, para nós, esse fenômeno é mais intenso. Ora, se grande é o júbilo de duas crianças afins ao se encontrarem pela primeira vez no colégio, qual não terá sido a reação dos dois maiores homens de todos os tempos, ao se contemplarem face a face? Assim se realizou um dos mais belos encontros da História, João Batista diante de Jesus.
Como ocorreu este encontro?
São João Batista e a virtude da restituição
A ambição é uma paixão tão universal quanto o é a vida humana. Quase se poderia dizer que ela se instala na alma antes mesmo do uso da razão, sendo discernível com facilidade no modo de a criança agarrar seu brinquedo ou na ânsia de ser protegida.
Quantos de nós não nos lançamos nos abismos da ambição, da inveja e da cobiça já nos primeiros anos de nossa infância? Essas provavelmente foram as raízes dos ressentimentos que tenhamos tido a propósito da glória dos outros. Sim, pelo fato de desejarmos a estima de todos, por nos crermos no direito à glória e ao louvor dos nossos circunstantes, constitui para nós uma ofensa o sucesso dos outros.
Por isso São Tomás define a inveja como sendo a tristeza sentida porque “o bem do outro é considerado um mal pessoal na medida em que diminui nossa glória e nossa excelência”.[1]
Entretanto, São João Batista não teve a desgraça de nutrir esse defeito. Pois, mesmo antes de abrir os olhos para contemplar a luz do dia, brilhou sobre ele, durante seis meses, o resplendor das virtudes de Maria Santíssima. Assim, quando Maria, ao ser elogiada por Santa Isabel, proclamou: “A minha alma glorifica o Senhor; e o meu espírito exulta de alegria em Deus meu Salvador porque olhou para a humildade de sua serva” (Lc 1,46-48), aprendeu o Precursor o verdadeiro valor da humildade e da restituição.
Despretensão heroica do Precursor
Naquele tempo: João viu Jesus aproximar-Se dele e disse: “Eis o Cordeiro de Deus, que tira o pecado do mundo”. (Jo 1,29)
Qual foi a atitude de João, profeta como igual nunca houve em Israel, quando viu Jesus e deslumbrou o inevitável eclipse que a sua missão sofreria? Se ele tivesse apego à honra de que fora objeto, era esse o momento do ressentimento, da ambição ferida e talvez até da inveja.
Pelo contrário, educado na escola da verdadeira humildade, João não hesita em proclamar alto a divindade de Cristo, dando-Lhe, despretensiosamente, todo o louvor e adoração devidos.
Assim como hoje nossa fé se robustece em méritos ao contemplar uma Hóstia consagrada e crer na Presença Real de Jesus Eucarístico, também naqueles dias era indispensável, para benefício de todos, o Redentor apresentar-Se sob os véus de nossa natureza. Jesus, desde o nascimento até essa ocasião, era um Homem comum e corrente em todas as suas aparências. Tornava-se necessário ir descerrando pouco a pouco esses véus, a fim de introduzir o povo na verdadeira perspectiva pela qual fosse possível prestar-Lhe um culto de latria.
Excelente meio escolheu o Salvador: suscitou um varão que havia comovido Israel por sua figura constituída de mistério, profetismo e santidade, saído de dentro de uma vida feita de ascese e penitência, o Precursor.
Era chegado o momento de os judeus ouvirem, de lábios dignos da máxima credibilidade, a proclamação da grandeza do Messias ali presente. A preparação dos corações estava concluída, o caminho do Senhor já se encontrava endireitado, a voz ecoara pelo deserto, o Filho de Deus precisava ser conhecido e, para tal, era indispensável muita clareza na comunicação: “Eis o Cordeiro de Deus”.
Filhos de Maria, filhos da humildade
O que nos ensina São João Batista nesta liturgia? A excelência da virtude da humildade. Sua atitude – tão oposta àquelas almas que estão transbordantes de inveja e ambição – nos aponta a autêntica felicidade, paz e doçura que têm as almas que são despretensiosas, reconhecedoras dos bens e das qualidades alheias, restituidoras a Deus dos dons por Ele concedidos.
O castigo de Deus à ambição e à inveja se faz presente não só na eternidade, como também nesta vida. Quem se deixa arrastar por esses vícios perde a noção do verdadeiro repouso e passa a viver todo o tempo na preocupação, na inquietude e na ansiedade. Sempre estará atormentado pelo pavor de ficar à margem, de ser esquecido, igualado ou superado. Sua existência será um inferno antecipado e essas paixões se constituirão em seus próprios carrascos.
Desse modo, entremos na escola de Maria, e d’Ela aprendamos a restituir a Deus nosso ser, nossa família e todos os nossos haveres. Ela nos ensinará a glorificar ao Senhor por ter contemplado o nosso nada e, como resultado, nosso espírito exultará de alegria (cf. Lc 1,47), a exemplo de seu primeiro discípulo, São João Batista.
Por Jerome Siqueira
Extraído, com adaptações, de: CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O inédito sobre os Evangelhos: comentários aos Evangelhos dominicais. Città del Vaticano-São Paulo: LEV-Instituto Lumen Sapientiæ, 2013, v. 2, p. 15-25.
[1] TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q. 36, a. 1.
Deixe seu comentário