Natal do Senhor: o princípio de uma Eternidade feliz
É uma lei da História Deus sempre encontrar uma solução superior aos Seus planos anteriores, ao se verem estes planos frustrados pela falta de correspondência dos homens.
Redação (25/12/2022 18:58, Gaudium Press) As autênticas obras de arte levam seus autores a se encantarem com elas logo após o último retoque. O grande Michelangelo foi um exemplo pitoresco, ao contemplar seu famoso Moisés: a escultura se apresentou diante de seus olhos com tanta realidade humana que arrancou de seu coração a célebre exclamação: “Parla! Perché non parli?”. Sim, só faltava falar aquela bela figura lavrada em mármore. Mas, para tal, era preciso uma arte ainda mais requintada, a de poder transmitir-lhe a própria vida.
Esse episódio nos faz recordar outro, semelhante e mais antigo: o insuperável e perfeitíssimo boneco de barro plasmado por Deus. Modelado com precisão absoluta, seu Autor Se encantou ao contemplá-lo e, sendo infinitamente mais capaz do que Michelangelo, com um simples sopro infundiu-lhe a vida humana: “O Senhor formou, pois, o homem do barro da terra, e inspirou-lhe nas narinas um sopro de vida e o homem se tornou um ser vivente” (Gn 2,7). E se isso não bastasse, para consagrar a onipotência de Deus, determinou Ele também a criação de Eva: “Então o Senhor Deus mandou ao homem um profundo sono; e enquanto ele dormia, tomou-lhe uma costela e fechou com carne o seu lugar. E da costela que tinha tomado do homem, o Senhor Deus fez uma mulher, e levou-a para junto do homem” (Gn 2,21-22).
Entretanto, os nossos primeiros pais pecaram, e, por isso, foram expulsos do paraíso e condenados a retornar ao pó, de onde vieram. À primeira vista, pareceria estar irreversivelmente frustrado o plano de Deus, sua obra marcada pela feiura. Contudo, onde abundou o pecado, superabundou a graça (Rm 5,20). Por isso, Deus escolheu uma divina solução que ultrapassou, desmedidamente, toda a mácula do pecado: a Encarnação do Seu Próprio Filho.
Deu início à era da graça
Mas, a todos os que A receberam, deu-lhes capacidade de se tornarem filhos de Deus, isto é, aos que acreditam em seu nome. (Jo 1,12)
Não há no vocabulário humano palavras para exaltar suficientemente as incontáveis e preciosas maravilhas a nós concedidas naquela Noite Feliz. Naquele momento sacrossanto, o Divino Menino nos abriu não somente os seus bracinhos, mas sobretudo a possibilidade de termos uma participação em sua divina natureza.
Chamamos alguém de filho quando esse tem a mesma natureza do pai. Destarte, os filhos dos coelhos chamam-se coelhos, e os dos homens são homens. Assim sendo, os filhos de Deus devem ser deuses como Ele o é.
Com que poderíamos comparar essa realidade tão alta, e essa dádiva tão imensa?
Alguns autores se basearam em exemplos oriundos do reino vegetal para nos tornar acessível uma certa ideia, se bem que claudicante, sobre esse tão rico fenômeno sobrenatural. Enxertando-se um ramo de laranjeira num pé de romã, as laranjas nascerão com todas as suas características próprias e, ademais, terão a coloração e o sabor da romã. Também Deus, por meio de um insuperável enxerto da graça em nós, eleva-nos a participar de sua natureza divina.
Esse inefável milagre se inicia no Presépio, em Belém. É o mistério da Redenção: nossos pecados podem ser perdoados e, isentos de toda culpa, somos reintegrados à ordem sobrenatural.
Homem de nosso sangue e nossa raça
E a Palavra Se fez carne e habitou entre nós (Jo 1,14a).
O amor infinito que Deus tem por nós foi levado a tal extremo, que Ele quis por livre vontade encarnar-Se. Contudo, a Encarnação foi apenas o primeiro passo em sua via de dileção por nós. Ele Se fez nosso companheiro de todos os dias, o amigo de nossa existência. Esse amor, sendo pertinaz, não se satisfez e desejou elevar-nos à categoria de sermos seus irmãos.
E que fez Ele para tal?
Deus não moldou outro boneco de barro para nele tomar carne. Se assim tivesse procedido, Ele não teria o nosso sangue, não pertenceria à nossa família, não seria nosso irmão. Ele foi concebido por uma Mulher, e d’Ela nasceu. Mulher bem-aventurada entre todas, Santa e Imaculada, única e cheia de graça, Virgem e Mãe, mas, enfim, filha de Adão. Por isso Jesus, além de verdadeiro Filho de Deus, é também Filho do Homem, de nosso sangue e de nossa raça.
Deus Se torna acessível e imitável
Ensina-nos a filosofia nada existir em nossa inteligência que não tenha antes passado pelos sentidos. Daí uma grande dificuldade em conhecermos a Deus. As próprias parábolas do Divino Mestre procuram involucrar as doutrinas em figuras e imagens, para tornar acessível ao espírito humano a assimilação de um universo de princípios éticos, morais e religiosos. O homem necessita do conhecimento concreto para compreender o espiritual. A Epístola da segunda leitura (Hb 1,1-16) de hoje nos revela o grande milagre realizado pela Providência, naquela Noite Feliz:
“Muitas vezes e de muitos modos Deus falou outrora aos nossos pais, pelos profetas; nestes dias que são os últimos, Ele nos falou por meio de seu Filho” (Hb 1, 1-2).
Assim sendo, todas as dádivas inumeráveis com as quais Deus regalaria à humanidade começaram seu curso na Gruta de Belém, trazidas pelo Menino Deus, coberto, não só pelo estrelado manto da noite, como também por um véu de mistério. Ele padece frio, chora e, entretanto, é supremamente feliz. Frágil e quase um indigente, porém, está redimindo o mundo inteiro. Não está ainda na plenitude do uso de seus sentidos, e regala-Se no gozo da visão beatífica. Tudo isso porque
“de tal modo Deus amou o mundo, que lhe deu seu Filho único, para que tudo o que n’Ele crer não pereça, mas tenha a vida eterna” (Jo 3, 16).
Com os olhos postos no Menino Jesus, e pela intercessão de Maria e José, agradeçamos os incontáveis benefícios descidos e infundidos sobre nós a partir daquela Beata Nox, e imploremos a graça da santidade. Assim, livres de todo pecado, passemos não só uma noite, mas uma eternidade feliz.
Por Jerome Siqueira
Extraído, com adaptações, de: CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O inédito sobre os Evangelhos: comentários aos Evangelhos dominicais. Città del Vaticano-São Paulo: LEV-Instituto Lumen Sapientiæ, 2013, v. 1, p. 112-123.
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