A Ceia e a Cruz, um mesmo mistério
Transcorridos dois milênios do “primeiro Tríduo Pascal” da história, nós católicos professamos invariavelmente que o banquete sagrado que chamamos de Missa ou Eucaristia é memorial e atualização do sacrifício do Calvário.
Redação (01/04/2022 15:33, Gaudium Press) Hoje em dia, a atenção de todos está voltada para certos assuntos imediatos graves e preocupantes. Entretanto, se descuidam das coisas transcendentais e de valor permanente que não agridem como uma pandemia ou uma guerra, mas que são portadoras de vida. Tratemos de uma delas, própria ao tempo quaresmal.
Há uma grande afinidade, mais ainda, uma equivalência, entre o que aconteceu na quinta e na sexta-feira que chamamos de “dias santos”, véspera e consumação da Santa Paixão de Nosso Senhor. O que aconteceu no Cenáculo e no Gólgota é um mesmo mistério maravilhoso.
Esta verdade, ao identificar dois eventos culminantes dos últimos dias do Salvador na terra, concorre para valorizar a Eucaristia. E se é verdade que a Cruz é o símbolo por excelência do cristianismo, não é de todo inapropriado que um emblema eucarístico – por exemplo, um cálice sobre o qual fulgura uma hóstia – possa ser também, com justiça, um ícone de nossa Fé.
Discorramos sobre algumas analogias existentes entre os dois magnos acontecimentos do dom de Cristo, um sem efusão de sangue na Última Ceia; e outro no dia seguinte, barbaramente cruento, quando o Senhor padeceu e morreu na Cruz. Vejamos uma rápida relação não exaustiva:
– No Calvário, Jesus é despido de suas vestes para ser crucificado. Antes da Ceia, Ele se despoja delas e se cinge com uma toalha para o lava pés.
– No Cenáculo, o Salvador se humilha ajoelhando-se diante de seus Apóstolos para lavar-lhes os pés, ofício que era reservado aos escravos. Na Cruz, seu aniquilamento chegará ao extremo, imolando-se por todos.
– Na Ceia, São João conhece os segredos do Sagrado Coração ao deitar em seu peito. Aos pés da Cruz, lhe são revelados ao receber o precioso legado de Maria como Mãe.
– No Cenáculo, Jesus institui a Eucaristia dando-se em alimento. Na Cruz, do seu lado trespassado pela lança, brota sangue e água, sinais dos sacramentos que nutrem a vida da alma.
– Na Ceia, ao consagrar o pão e o vinho, Jesus se refere ao seu Corpo “entregue” e seu Sangue “derramado”, separadamente, significando a morte violenta que se deu na Cruz, deixando seu Corpo completamente sem sangue.
– No Cenáculo, deu seu Corpo como alimento a caminho do Céu. No Gólgota, ele o sacrificou para nos dar a vida eterna.
– Na Ceia, junto aos amigos do Senhor, o traidor estava presente. No Calvário, encontramos a inocência e a penitência – Maria sua Mãe e a Madalena – e o ladrão impenitente.
– No Cenáculo, a mesa é um altar onde se transubstanciam as espécies do pão e do vinho. No Calvário, a Cruz é o altar sobre o qual Cristo imolou o seu Corpo derramando todo o seu Sangue.
– A prova foi atroz na Cruz: “Meu Pai, por que me abandonaste?” O constrangimento também ocorre na Ceia: “Um de vós irá me entregar”.
– Junto à Cruz, vemos a sua Mãe e outras santas e heroicas mulheres. Na sala contígua ao Cenáculo estavam também Maria e outras mulheres fiéis.
– No Gólgota cumpriu-se o que Jesus havia dito: “Quando eu for elevado, atrairei todos a Mim”. Na ceia, o Messias reza em sua Oração Sacerdotal: “Agora foi glorificado o Filho do Homem”.
– Na Cruz se ostenta o INRI, “Jesus de Nazaré, Rei dos Judeus”. No Cenáculo, o Mestre explica sua realeza: “os reis da terra são dominadores, entre vós não deve ser assim; o que manda seja como o que serve”.
– Na Cruz se dirige ao bom ladrão “hoje estarás comigo no Paraíso”. No Cenáculo, assinala aos seus discípulos: “Para onde eu vou, não podereis ir agora, mas virão depois”.
– Na Cruz declara: “Tenho sede”. Ao entrar no Cenáculo, diz o mesmo, com outras palavras: “Quanto desejei celebrar esta Páscoa!”
– No Cenáculo expressa: “Rogo por eles e por aquilo que devem crer”: Na Cruz dirige-se ao Pai: “Pai, perdoai-lhes porque não sabem o que fazem”.
– No Cenáculo, pela força de suas palavras, seu corpo permanece como cativo das espécies consagradas. No Calvário, esse mesmo corpo permaneceu preso no madeiro por três cravos impiedosos.
– Na Última Ceia, levanta os olhos para o céu antes de instituir a Eucaristia, e na Cruz os eleva para dirigir-se ao Pai: “Eli, Eli…”
– No Cenáculo, Cristo sentencia: “Chegou a hora”. Na Cruz exclama triunfante: “Tudo está consumado”.
Além da equivalência Cenáculo-Calvário, há outra consideração que nos diz como o sacrifício incruento e a morte da Vítima também se integram e se reivindicam mutuamente entre si: Jesus sofreu e morreu na Cruz por todos os homens, sendo que a participação deles nessa oblação foi meramente passiva. Para que o sacrifício da Cruz fosse ativo, pessoal e eficaz nos redimidos, Ele instituiu previamente a Eucaristia, cuja finalidade é cumprir o objetivo da obra redentora que é transformar os fiéis em outro Cristo.
Tenha-se em conta de algo importante: os sofrimentos morais são mais agudos que os físicos e, no caso em questão, mais meritórios. Uma aproximação superficial do que estamos tratando supõe que a Ceia foi apenas uma celebração fraterna no marco ritual da Páscoa; e que a dor só era sofrida na flagelação, na via sacra e no madeiro. Mas não é assim. Já no Horto das Oliveiras, antes de ser preso, Jesus padeceu uma agonia atroz.
Transcorridos dois milênios do “primeiro Tríduo Pascal” da história, nós católicos professamos invariavelmente que o banquete sagrado que chamamos de Missa ou Eucaristia é memorial e atualização do sacrifício do Calvário.
Concluamos esta reflexão com floreios de ouro citando o Catecismo da Igreja Católica, que em seu número 1336 diz: o primeiro anúncio da Eucaristia dividiu os discípulos, assim como o anúncio da Paixão os escandalizou. “Este modo de falar é duro, quem pode ouvi-lo?” (Jo, 6, 60). A Eucaristia e a Cruz são pedras de tropeço. É o mesmo mistério que nunca deixa de ser motivo de divisão “Também vós quereis ir embora?” (Jo 6, 67). Esta pergunta do Senhor ressoa através dos séculos como convite do seu amor a descobrir que só Ele tem “palavras de vida eterna” (Jo 6, 68) e que acolher na Fé o dom da sua Eucaristia é acolher a Ele mesmo.
Mairiporã, São Paulo, abril de 2022
Por Padre Rafael Ibarguren EP – Assistente Eclesiástico das Obras Eucarísticas da Igreja.
Traduzido por Emílio Portugal Coutinho.
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