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“Amai aqueles que vos ofendem”

O Evangelho escolhido para o 7º Domingo do Tempo Comum trata de um tema que pode ser mal interpretado. No que consiste propriamente: “amar os vossos inimigos?”

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Redação (20/02/2022 10:39, Gaudium Press): “Amai os vossos inimigos”. Quão belas, mas quão duras são estas palavras de Nosso Senhor, recolhidas para o Evangelho deste domingo. Sobretudo nos momentos em que o nosso senso de justiça é agredido, sejam por palavras de insulto e pouco respeitosas para conosco, ou o desprezo, a inveja, a perseguição e a calúnia recebidas, sem culpa alguma de nossa parte. Entretanto, alguém poderá perguntar: “Então, é assim mesmo que devo agir? Cruzar os braços e amar aquele que vejo cometer um erro?” Analisemos a liturgia e teremos a resposta.

Amai os vossos inimigos

“Amais os vossos inimigos e fazei o bem aos que vos odeiam, bendizei os que vos amaldiçoam e rezai por aqueles que vos caluniam” (Lc 6,27-28).

Devemos compreender primeiramente as circunstâncias nas quais encontrou-se o Divino Mestre no período de sua trajetória terrena entre os homens. O povo hebreu havia sido formado segundo a ideia de que o amor ao próximo deveria ser prodigalizado somente aos de sua própria raça, pois segundo eles, a salvação não era destinada às demais nações, uma vez que não pertenciam à descendência de Abraão. Lembremo-nos de que o mero contato físico com estes povos tornava-os impuros, exigindo a realização de uma purificação para serem livrados desta contaminação.

Vê-se que, até mesmo entre os próprios judeus, as normas de conduta eram rígidas, pois se regiam pela pena de Talião: “Numa sociedade sem polícia e sem tribunais de justiça, o costume da vingança de sangue constituía um meio eficaz de conservar a ordem social e a segurança. Essa lei se manteve em Israel durante muito tempo. Porém, a legislação hebraica foi impondo, aos poucos, certas limitações, a fim de evitar os abusos nos quais podia degenerar uma justiça privada”,[1] como a introdução da dis­tinção entre homicídio voluntário e involuntário, ou a criação de cidades de refúgio para os homicidas ainda não declarados culpados.[2]

Por esta razão, os conceitos de caridade e de perdão para a mentalidade hebraica estavam bem distorcidos da autêntica realidade. Prova disto está contida na passagem do Evangelho em que São Pedro pergunta a Jesus: “Senhor, até quantas vezes devo perdoar o meu irmão?” Até sete vezes?” (Mt 18,21) – como quem julgasse demasiado ter de perdoar até sete vezes. Então, Jesus voltou-se para ele e respondeu: “Não te digo até sete vezes, mas setenta vezes sete” (Mt 18,22) – o equivalente a sempre.

Quis Jesus desta maneira apontar-lhes um ensinamento sobre aquilo que mais tarde compreenderíamos como caridade cristã – fruto do Preciosíssimo Sangue do Redentor –, até então desconhecida para eles: aquela caridade transbordante de amor a Deus e ao próximo, visando a sua santificação e a sua salvação eterna; e aquela inteiramente desprendida de si mesmo, como nos indica o Salvador:

“Se amais somente aqueles que v0s amam, que recompensa tereis? Até os pecadores amam aqueles que os amam” (Lc 6, 32).

E também no salmo responsorial, mostra-se o amor de Deus :

“O Senhor é indulgente, é favorável, é bondoso e compassivo. Não nos trata como exigem nossas faltas, nem nos pune em proporção às nossas culpas” (Sl 102(103), 8. 10).

Ora, deve-se entender que estes versículos se aplicam de modo particular aos nossos inimigos pessoais. Àqueles que, como dito inicialmente, nos dirigem palavras insultuosas, nos caluniam, nos invejam e nos perseguem. A estas pessoas é preciso haver de nossa parte um empenho em ajudá-los com orações e até, se possível, com boas obras, para que mudem de condutam e vivam somente para o Senhor e não para seus próprios egoísmos. É sobre este aspecto que se entende o amor aos nossos inimigos, o oferecer a outra face para receber uma nova bofetada (Cf. Lc 6,29).

Tolerar as injúrias feitas a Deus?

Contudo, de nenhum modo poderíamos compreender esta passagem do Evangelho como uma condenação do dever de proteger os direitos da religião, da moral e da lei quando estas são atacadas, ou até mesmo uma proibição da legítima defesa. Pois como ensina Santo Tomás de Aquino, tolerar as injúrias pessoais é conveniente ao bem do próximo e à nossa santificação; mas poderia consistir em erro e até em vício permitir as injúrias proferidas contra Deus: “Pois é louvável dar o que é seu, e não o que é dos outros. E muito menos não deve ser descurado o que é de Deus. Como diz Crisóstomo: ‘É demasiada impiedade dissimular as injúrias feitas a Deus’”.[3]

São Bernardo esclarece muito acerca de nossa atitude perante aquele que se proclama como inimigo de Deus: “Assim como não deves amar-te a ti mesmo senão porque amas a Deus, assim também deves amar como a ti mesmo todos os que amam a Deus, do mesmo modo como tu O amas. Pois bem, como nosso inimigo – que de si não é nada – não ama a Deus, nós, que amamos a Deus, não podemos amá-lo como a nós mesmos. Entretanto, devemos amá-lo, a fim de que ele ame (a Deus); e claro está que amá-lo porque ama, não é o mesmo que amá-lo para que ame (a Deus). Portanto, devemos amá-lo não pelo que é – dado que em si nada é – mas pelo que talvez venha a ser posteriormente (caso se converta)”.[4]

Por Guilherme Motta


[1] TUYA, OP, Manuel de; SALGUERO, OP, José. Introducción a la Biblia. Madrid: BAC, 1967, v. II, p. 334.

[2] Cf. Idem.

[3] SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q. 188, a. 3, ad 1.

[4] SÃO BERNARDO. Sermones sobre el Cantar de los Cantares. Sermón L. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 1955, v. II, p. 338.

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