Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém
Tatuagem é como uma porta aberta: quem faz uma, acaba fazendo várias e, quem faz várias, infalivelmente, mais cedo ou mais tarde, acabará tatuando dragões, caveiras e demônios. Tatuagem é algo do bem?
Redação (10/03/2023 10:54, Gaudium Press) Em sua primeira carta aos Coríntios, o Apóstolo Paulo afirma: “Tudo me é permitido, mas nem tudo me convém. Tudo é permitido, mas nem tudo edifica.” (I Cor 10, 23-25). Estas palavras são muito significativas porque viver uma vida de proibições não é, necessariamente, viver uma vida verdadeiramente cristã. Tomemos como exemplo o vinho. Há diversas passagens nos Evangelhos em que Jesus menciona o vinho, ou, presumivelmente, está bebendo vinho, mas não há nenhuma menção de que alguma vez Ele tivesse se embriagado.
Da mesma forma, Ele passou alguns dias na companhia dos samaritanos, mas não aderiu aos costumes deles. Foi amigo pessoal de uma mulher de má vida e da família dela (Maria Madalena, Marta e Lázaro), no entanto, trouxe essa mulher para a luz, sem ser afetado pelas trevas que nela habitavam.
Há muitas pessoas que se dizem cristãs, católicas praticantes, mas que são da patrulha do “não pode”, sobretudo, para corrigir aos outros, quando, em seu íntimo, carregam uma vontade enorme de provar daquilo que não pode. A isso, Jesus também previu, e deu um claríssimo exemplo ao tratar a cobiça do olhar como adultério; ou seja, dependendo da maneira como a pessoa pensa no mal, já praticou aquele mal em seu coração.
Reformadores do mundo
Essas pessoas, quase sempre, se transformam em reformadores do mundo e vivem um cristianismo de aparências. Infelizmente, acabam sendo as primeiras a fazer pequenas concessões a si mesmas. Estão sempre agasalhadas com o manto da hipocrisia, dispostas a corrigir a Deus e ao mundo, sendo condescendentes com suas próprias falhas de caráter.
E quando uso a expressão popular “a Deus e ao mundo”, estou tomando-a em seu sentido literal, porque essa classe de pessoas costuma guardar, em seu íntimo, um secreto ressentimento contra Deus por Ele ter proibido tantas coisas e por ter tornado tão difícil seguir a estrada da retidão. Não há dúvidas de que, se pudessem, modificariam a Deus ou, ao menos, o atualizariam.
No entanto, se Deus fosse proibir tudo o que precisa ser proibido, bibliotecas inteiras seriam insuficientes para comportar os livros sagrados com essas proibições. Conhecendo nossos corações, Ele resumiu tudo em dez regrinhas simples, as quais pouca gente sabe de cor e menos gente ainda consegue cumprir integralmente. Por isso, Ele mesmo, na pessoa de Cristo, reduziu ainda mais essa lista para apenas dois mandamentos: “Amar a Deus sobre todas as coisas e ao próximo como a si mesmo”, ensinamento tão simples e tão difícil de compreender e de praticar.
Um exemplo dirigido às mulheres
Pode ser que eu não esteja sendo muito claro, vou tentar explicar um pouco melhor, exemplificando. Antes, porém, de dar um exemplo, gostaria de frisar que, quando um cristão imita, ainda que de maneira sutil, o mau proceder de pessoas mundanas, ele faz um mal imenso, não apenas a si mesmo, mas principalmente àqueles aos quais imita, porque, sendo uma pessoa em aparência íntegra, faz parecer certo um comportamento mau e até mesmo muitos pecados.
Vou dar um exemplo que afeta às mulheres, correndo o risco de ser mal interpretado por algumas senhoras piedosas. As mulheres verdadeiramente católicas costumam se vestir de uma forma mais recatada e usar adornos com moderação, e isto é admirável, pois o seu recato e os seus modos servem de exemplo a outras mulheres que não procedem da mesma forma. E, mesmo quando uma ou outra ri ou debocha do jeito de uma mulher séria se vestir, o faz mais porque a seriedade dela expõe o seu despudor e atinge a sua consciência.
No entanto, de uns tempos para cá, tornou-se moda um determinado procedimento estético nas sobrancelhas e, ao que parece, mais da metade das mulheres do mundo passaram a ter as sobrancelhas iguais. Isso é pecado? Aparentemente não, mas, se olharmos mais a fundo, essa sobrancelha desenhada é uma tatuagem e, nas Sagradas Escrituras, em Levítico, há uma proibição de que se façam tatuagens sobre o corpo. E, como ensina o Apóstolo Paulo, devemos cuidar de nossos corpos porque somos templos do Espírito Santo.
É necessário que a mulher católica faça essas tatuagens sobre os seus olhos? Esse e alguns outros hábitos sutis não denotam um intrínseco desejo de se vestir de qualquer forma e de se parecer com as outras mulheres, o que ela apenas não faz porque “não pode”?
Os amigos dele têm…
E já que falamos em tatuagens, não é incomum que pais católicos não tenham autoridade suficiente sobre seus filhos para impedir que eles façam tatuagens sobre seus corpos – estas, obviamente mais ostensivas que uma simples sobrancelha aumentada e escurecida.
E tatuagem é como uma porta aberta: quem faz uma, acaba fazendo várias e, quem faz várias, infalivelmente, mais cedo ou mais tarde, acabará tatuando dragões, caveiras e demônios. Então, tatuagem é algo do bem? É algo inocente? Todavia, os pais alegam que não conseguem convencer os filhos – não raro, filhos menores de idade – de que essa não é uma prática boa, e justificam: “Ah, mas todos os amigos dele têm…”
E o mesmo se dá com a música. Há certa espécie de música de baixíssimo padrão, com letras péssimas, que evocam o pior tipo de sensualidade. Mas muitos católicos acabam frequentando lugares que tocam essas músicas ou até mesmo ouvindo-as em suas casas e em seus carros, e justificam que não têm como fugir, porque elas tocam em todos os lugares.
Hipocrisia que Jesus previu
A música é um exemplo. Exceder-se na comida e na bebida em reuniões sociais e festas é outro; fumar ocasionalmente – “Nasceu meu filho, posso fumar um charuto!” “Nasceu o filho do meu amigo, vou fumar um charuto com ele”. “Charutos até que são interessantes, não devem fazer tão mal assim…”
É a mesma coisa que dizer: “Peco um pouquinho, mas os outros pecam muito mais do que eu!” Este tipo de hipocrisia Jesus previu também. Nós aprendemos que aquele que peca na ignorância será tratado com menos rigor do que aquele que, tendo consciência, não evita o pecado.
Todos nós estamos sujeitos ao pecado, mas, quando começamos a transformar o pecado venial em “pecadinho”, em “não tão pecado assim”, em “coisa normal, que todo mundo faz” ou em algo que não se pode, mas queremos muito fazer – e, às vezes, até fazemos às escondidas–, estamos sendo condescendentes e descendo ladeira abaixo.
Sabemos que, numa subida, quando cansados ou diante de obstáculos difíceis, temos a prerrogativa de nos sentar e respirar um pouco, rever os planos e retomar a jornada. Mas, quando se despenca ladeira abaixo, é quase impossível conseguir parar antes de atingir o fundo do precipício.
Então, em vez de me tornar uma sentinela do “não pode” e passar a fiscalizar o meu próximo para ver se ele não está cometendo aquilo que eu não posso, mas que, se pudesse, faria, é melhor tomar a sério as palavras do Apóstolo Paulo e pensar: “Poder, eu até posso, mas não devo, porque, embora tudo me seja permitido, nem tudo me convém.”
Esta é a única escolha possível que nos permitirá trilhar o caminho mais difícil e atravessar a porta estreita, porque “larga é a porta e espaçoso o caminho que conduz à perdição” (Mt 7, 13-14).
Por Afonso Pessoa
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