São Tomé: Incrédulo e nada mais?
“Dídimo” passou para História por sua falta de fé na Ressurreição de Jesus. Mas é só isso que a Igreja tem a dizer sobre este Apóstolo, o primeiro a proclamar a Divindade de Cristo?
Redação (03/07/2020 09:00, Gaudium Press) É corrente a afirmação de que medíocres não marcam a História. E é verdade; sempre que alguém o faz é porque se distingue por extremos de bondade ou de maldade, para os quais incontáveis “zeros à esquerda” de todas as épocas nunca se arriscam.
A imagem de alguém importante virá, portanto, necessariamente acompanhada da lembrança de uma ou mais de suas qualidades – se foi bom ou considerado como tal –, ou defeitos – se foi o oposto. Não é sem razão o fato de muitos nomes célebres serem sucedidos por epítetos: Eduardo, o Confessor; Teresa, a Grande; Afonso, o Batalhador; Luís, o Piedoso; Juliano, o Apóstata…, que buscam sintetizar a mencionada personalidade.
Ora, isso também se dá ao considerarmos o Colégio Apostólico: todos sabem a quem se referem os títulos: “Apóstolo Virgem”, “Homem sem falsidade”, “Irmão do Senhor”, “Príncipe dos Apóstolos” …, e “O Incrédulo”.
E por que São Tomé é conhecido como “O Incrédulo” e tão somente isso? Não pode ser que uma das doze colunas da Igreja Católica seja sintetizada por tão vil defeito. Ou simplesmente admitimos ter esse pecado superado a fidelidade na alma deste Santo Apóstolo, ou errados estamos nós em gratuitamente alcunhá-lo “O Incrédulo”.
A primeira proposição é inaceitável. Errados, portanto, estamos nós; e certamente por que não o conhecemos de fato.
Os contrastes de um espírito positivo
Tudo indica ter sido São Tomé um homem de espírito rebarbativo e convicto das próprias opiniões, e ao mesmo tempo muito positivo e categórico. Quando Nosso Senhor decidiu retornar à Judeia, a fim de atender a Lázaro que estava doente, os Apóstolos protestaram, cientes do risco ao qual se expunha o Mestre, por aproximar-se de Jerusalém. E foi São Tomé quem afirmou: “Vamos também nós, para morrermos com Ele!” (Jo 11, 16)
Em outras circunstâncias Tomé se mostrara cauto e objetivo, querendo conhecer as provas. Por exemplo, ao Jesus anunciar que “depois de ir e vos preparar um lugar, voltarei e tomar-vos-ei comigo, para que, onde Eu estou, também vós estejais. E vós conheceis o caminho para ir aonde vou” (Jo 14, 3-4), ele logo perguntou: “Senhor, não sabemos para onde vais. Como podemos conhecer o caminho?” (Jo 14, 5). Ora, estas reações são úteis, pois se não houvesse pessoas que, como Tomé, tivessem falta de intuição e precisassem apelar principalmente ao discurso da razão, muitos princípios ficariam sem explicitação. Se, naquela ocasião, Tomé não levantasse o problema, o Divino Mestre talvez não houvesse afirmado tão sublime verdade: “Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida; ninguém vem ao Pai senão por Mim” (Jo 14, 6). Desta vez, teve ele um papel importantíssimo no Colégio Apostólico, pedindo uma explicação racional daquilo que só se admite pela fé. Com isso contribuía para estabelecer as bases sobre as quais se ergueria mais tarde o edifício da Teologia.
Sem provas, Tomé não acredita
Ausente do Cenáculo, Tomé não assistiu à primeira aparição de Jesus aos discípulos. Sem dúvida, estes tentaram persuadi-lo da veracidade do ocorrido. Em vão. Depois de terem fugido e deixado o Divino Redentor a sós, seu testemunho, aos olhos de Tomé, não se revestia de suficiente autoridade, e ele permanecia cético – como, aliás, estavam os outros Apóstolos antes de tocarem em Nosso Senhor –, exigindo como condição para acreditar as mesmas provas que a eles foram dadas. Tomé passou para a História como incrédulo, mas, na realidade, os demais também o foram.
Tomé: Testemunha qualificada da Ressurreição
Após oito dias, Jesus “pôs-Se no meio deles” pela segunda vez e mandou Tomé colocar a mão nas suas chagas, dizendo-lhe que não fosse “incrédulo, mas fiel”. É interessante notar que Nosso Senhor não o acusa de ser incrédulo e, sim, o adverte para não vir a se tornar-se tal, a partir desta hora em que lhe oferecia o argumento concreto e a demonstração cabal de sua Ressurreição. Para ser fiel era indispensável ter fé, e Cristo o convidava a crescer nessa virtude. Bem-aventurado Tomé, porque para possuir essa fé acabou recebendo a insigne graça de tocar no lado do Salvador! Como comenta São Gregório Magno, “isto não aconteceu por acaso, mas por disposição da Providência; pois a divina Misericórdia agiu de modo tão admirável para que, tocando o discípulo as feridas de seu Mestre, curasse em nós a chaga de nossa incredulidade. De maneira que a incredulidade de Tomé foi mais proveitosa para nossa fé do que a fé dos discípulos que acreditaram, porque, decidindo aquele apalpar para crer, nossa alma se afirma na fé, descartando toda dúvida”. Quanto foi útil este seu gesto para nossa alma apoucada, pois serviu de sinal autêntico da Ressurreição do Senhor!
Entrega completa de Tomé, reação da alma reta
A correspondência a esta graça é certificada pelo fato de Tomé reconhecer a divindade de Jesus como nenhum outro Apóstolo. Todos tiveram a mesma comprovação, mas a reação dele foi mais enérgica, ousada e radical. Ao anunciarem a Ressurreição a Tomé, os Apóstolos não atestaram: “Jesus é realmente Deus”. São Tomé, sim, o declarou.
Se é verdade que ele não confiou no testemunho discípulos, é patente que quando Nosso Senhor o instou a pôr o dedo nas marcas dos pregos, ele acreditou e atribuiu a Jesus Cristo Homem, o qual Se mostrava a ele ressuscitado, o título devido apenas ao Criador, no Antigo Testamento: Deus e Senhor! Ele creu, portanto, na divindade de Cristo, embora tocasse somente na humanidade. Ao mesmo tempo, ao proclamar, “Meu Senhor”, ele se entregava como escravo, abandonando-se todo nas mãos de Jesus. De sua fé robusta brotou, naquele instante, este ato de amor. Era uma alma reta, inocente e disposta a dar-se por inteiro. “Oh maravilhosa perspicácia a deste homem! Toca num homem e o denomina Deus: tocou numa coisa e acreditou noutra. Se tivesse escrito mil códices, não teria sido de tanto proveito para a Igreja. Com que clareza, com que precisão, com que candura ele chama Cristo com o nome de Deus!” , exclama São Tomás de Villanueva.
Tomé na Índia, reflexo da intransigência divina
Segundo narra uma antiga tradição, o Santo Apóstolo foi enviado por Nosso Senhor, já ressurrecto, a evangelizar as remotas terras indianas. Recolhe-se de Santo Agostinho, em sua obra Contra Fausto, o relato de um episódio que teria ocorrido com Tomé em seus primeiros meses de apostolado no longínquo país dos marajás. Embora o Doutor da Igreja não admita a veracidade de história como incontestável, a sua leitura não deixa de nos oferecer elementos para maior compreensão da forte personalidade de São Tomé, moldada por sua autêntica santidade:
“O apóstolo Tomé estava incógnito, como peregrino, numa festa de casamento e foi agredido por um criado contra o qual teria exprimido imediatamente o desejo de uma cruel vingança. Tendo esse homem saído para buscar água para os convidados numa fonte, teria sido morto por um leão que o atacou, e a mão que havia esbofeteado levemente o rosto do apóstolo foi arrancada do corpo segundo seu voto e suas imprecações, e levada por um cão à mesa do apóstolo. Poderia haver coisa mais cruel? Ora, se não me engano, o mesmo relato diz que o apóstolo pediu que o criado recebesse perdão para a vida futura. Ou seja, a aparente crueldade do gesto escondia benefícios maiores, pois o apóstolo, querido e honrado por Deus, através do medo que despertara tornou-se respeitado por aqueles que não o conheciam, e os presentes ao banquete puderam entender que por detrás dos fatos terrenos pode encontrar-se a vida eterna”.
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Breves traços de uma história pouco conhecida poderão desfazer muitos preconceitos a respeito da venerável figura de São Tomé. Com efeito, se sua incredulidade durou apenas um momento, sua fidelidade e amor a Jesus Cristo – de quem foi ele o primeiro a proclamar a Divindade – permanece como exemplo a todos os fiéis católicos e apostólicos, e símbolo do que pode Deus operar nas almas dos que se deixam guiar por Ele.
Por João Paulo Bueno Neto
1 – SÃO GREGÓRIO MAGNO. Homiliæ in Evangelia. L. II, hom. 6 [XXVI], n. 7. In: Obras. Madrid: BAC, 1958, p. 665.
2 – Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. II-II, q. 1, a. 4, ad 1.
3 – SÃO TOMÁS DE VILLANUEVA. Concio 169. Dominica in Octava Paschæ, n. 1. In: Obras Completas. Madrid: BAC, 2012, v. IV, p. 175.
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