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São John Houghton

A Igreja lembra hoje, dia 4 de maio, a memória de São João Houghton, executado por sua fidelidade à Santa Igreja, sob o reinado de Henrique VIII da Inglaterra.

São João Houghton - Abadia de Belmont, Hereford (Inglaterra) Foto: Dario Iallorenzi

São João Houghton – Abadia de Belmont, Hereford (Inglaterra) Foto: Dario Iallorenzi

Redação (04/05/2025 10:27, Gaudium Press) Olha, Margaret!” De uma janela gradeada na Torre de Londres, Sir Thomas More chamava a filha para contemplar a cena: cinco sacerdotes – John Haile, um pároco secular, Richard Reynolds, monge brigidino e renomado teólogo, e três priores cartuxos, John Houghton, Robert Lawrence e Augustine Webster, trajando o alvo hábito de sua Ordem – estavam sendo levados para o Tyburn, infame cadafalso a alguns quilômetros de distância e derradeiro destino daqueles que ousavam desafiar a vontade real.

Naquele 4 de maio de 1535, por recusar a jurar o chamado Ato de supremacia pelo qual o monarca reinante, Henrique VIII, usurpava o poder do Papa a fim de se proclamar cabeça da Igreja da Inglaterra – novidade cismática promulgada em todo o reino –, estes varões, submetidos a uma farsa de julgamento e condenados por alta traição, seriam enforcados e esquartejados.

Contudo, não era para assistir a um espetáculo mórbido que Thomas More chamava Margaret. Naquele momento o ex-chanceler da Inglaterra, preso também por se recusar a separar-se da unidade da Santa Igreja, enfrentava os argumentos da filha que buscava persuadi-lo a jurar o Ato de supremacia. Com efeito, a maioria dos membros das classes proeminentes haviam feito vistas grossas à heresia para salvar a própria pele.

Mas ele bem sabia que não seriam seus raciocínios de advogado ou de apologista que convenceriam a filha ante a perspectiva do golpe do machado do verdugo que logo os separaria, e sim o testemunho vivo de um amor mais forte do que a morte: “Olha! Não vês que aqueles abençoados padres vão tão alegres para a morte, quais noivos às suas bodas?”

Com efeito, aqueles confessores da Fé, avançando com passo firme e semblante luminoso para iniciarem sua paixão, proclamavam que a Igreja é imortal e indefectível e que a vitória está com aqueles que a defendem.

O líder incontestável do conjunto – à maneira de um pai – era Dom John Houghton, de quarenta e oito anos, prior da Cartuxa da Saudação da Santíssima Mãe de Deus, erigida perto de Londres.

Ele seria o primeiro desse conjunto a sofrer o suplício e, mais ainda, o primeiro desde os tempos pagãos a morrer na Inglaterra por ser católico, tornando-se o protomártir da Revolução Protestante no país e digno protótipo de centenas – senão milhares – de pessoas que entregaram suas vidas entre os anos de 1534 e 1680 em oposição às forças satânicas que fecharam todos os mosteiros, profanaram suas instituições mais sagradas e os consagraram à heresia pela força da lei.

Um Santo surgido do anonimato

Diz um velho ditado: “Cartusia sanctos facit, sed non patefaci – A Cartuxa faz Santos, mas não os torna conhecidos”. Quando em 1084, sob inspiração divina, São Bruno fundou La Grande Chartreuse nos picos nevados perto de Grenoble, França, ele assinalou aos seus seguidores que o serviço prestado pela Ordem à Santa Igreja e à sociedade se realizaria na solidão e no anonimato. Assim, Houghton poderia ter passado quase despercebido para a posteridade se os protagonistas daquilo que os historiadores não hesitam em chamar de “devastação da Inglaterra” não tivessem batido à sua porta.

Nascido em Essex, da pequena nobreza, ele cursou Direito em Cambridge. Por volta dos vinte e quatro anos foi ordenado sacerdote secular, mas, antes de atingir os trinta, a busca de uma entrega mais radical levou-o à Cartuxa de Londres. Quando nossa história começa, além de seu prior, era visitador da província inglesa de sua Ordem, ou seja, a cabeça de nove pujantes mosteiros.

Houghton costumava dizer que tinha sob seu encargo anjos em vez de homens, muitos dos quais eram jovens e de nobre estirpe. Neles ainda vibrava a convicção de que sua terra natal constituía especial propriedade da Santíssima Virgem, o “dote de Maria – dos Mariæ”, título que remonta à consagração da nação feita pelo Rei Ricardo II em 1381.

Em Houghton eles contemplavam outro Bruno: zeloso quanto aos ofícios litúrgicos, exemplo na ascese, perito formador, sábio, amante dos livros. Ele personificava a dignidade de seu cargo, mas, se um religioso se encontrava abatido, procurava-o como amigo e irmão, dizendo-lhe que tinha deixado o priorado na sua cela. Um monge do mosteiro assim o descreve: “Era de baixa estatura e de porte elegante, de recatado olhar e maneiras modestas, doce no falar, casto no corpo, humilde de coração, amável e querido por todos”.

“O negócio urgente do rei”

À sua maneira, os chamados “comissários reais” – Thomas Cromwell e comparsas – também o queriam. O malvado soberano se encontrava numa enrascada, eufemisticamente chamada de “negócio urgente do rei”. Ele procurava de Roma o anulamento de seu casamento com Catarina de Aragão – que não lhe havia dado um herdeiro homem – para se casar com a escandalosa Ana Bolena. Entretanto, sendo válido o matrimônio, nem o Papa poderia desfazê-lo.

Havia mais. O povo amava a virtuosa princesa que deixara a Espanha para fazer da Inglaterra seu porvir: fiel católica, protetora do povo, patrona das universidades, aplaudida sempre que saía às ruas e especialmente benquista então por sua constância no infortúnio. Aquela, como quase todas, não era uma revolta surgida da plebe.

Incitado pelo orgulho e pela sensualidade, o rei pôs-se a derrubar obstáculos. “Ninguém poderia prever, quando Henrique VIII encontrou Ana Bolena pela primeira vez em 1522, que o rumo seguido pelo mundo durante séculos estava em jogo. Por mil anos ou mais houve reis que defendiam o Cristianismo apenas com os lábios, quebrando os votos matrimoniais, e alguns morreram em seus pecados; no entanto, nunca antes um rei esteve disposto a rasgar a túnica inconsútil da Igreja para fazer de uma mulher dessa espécie uma rainha”.

O monarca eliminava assim o precioso legado do Papa São Gregório Magno que, no ano de 596, enviara quarenta monges para cristianizar a ilha-nação. Nomeando o herege Thomas Cranmer como novo Arcebispo de Canterbury, dava início a uma metódica pilhagem do país, com as receitas, naturalmente, indo parar nos cofres reais. Contudo, mais do que um saque material, houve uma rapinagem da própria alma da nação. Ao proclamar-se chefe da Igreja da Inglaterra, Henrique seguiu impondo seus ultimatos heréticos, deixando um rastro de sangue e destruição onde encontrava resistência.

A vida monástica havia fincado profundas raízes ali. Em meados do século XVI, de cada cinquenta homens adultos um havia ingressado na vida religiosa, nos cerca de novecentos mosteiros disseminados pela verdejante paisagem inglesa. O objetivo dos comissários reais consistia em oficializar no âmbito clerical o reconhecimento do novo status do rei, que acabara de depor o Papa.

O convento de solitários, na periferia da cidade, era o elo entre a sociedade e o Céu, foco de influência e de irradiação sobrenatural. Pela sua importância, eles queriam fisgá-lo para o cisma.

Celestial anúncio

Não foi de boca em boca que chegou à casa dos cartuxos a notícia de que uma tempestade estava para desabar, como relatado nos anais do mosteiro: “Aconteceu no ano do Senhor de 1533, precedente àquela procela, que um cometa foi visto no ar, estendendo seus raios clara e manifestamente até a nossa casa. […] Fato inédito, nunca antes visto. No mesmo ano, o nosso venerável padre prior [Houghton] saiu da igreja depois do Segundo Noturno e, entrando no cemitério, viu no ar um globo como que de sangue, de grande tamanho, e, apavorado com a visão, caiu por terra”. Ele não esperaria muito para entender o sentido do celestial anúncio.

Na primavera de 1534 os comissários chegaram ao convento, convocando o prior a dar seu consentimento ao novo “casamento” do rei. Houghton declarou que não conseguia compreender como o matrimônio com a Rainha Catarina, celebrado de acordo com os ritos da Igreja, poderia ser anulado, resposta que resultou em um mês de prisão, juntamente com Dom Humphrey Middlemore, hoje Beato.

Grande foi a alegria no convento quando, após negociações, ambos foram libertados. Entretanto, como bom capitão, Houghton pôs-se a preparar seus subalternos. Passados alguns meses, tendo duas vezes voltado ao rei com as mãos vazias, os comissários retornaram ao mosteiro com redobradas exigências. A questão agora não era apenas a “sucessão”, mas a “supremacia”, isto é, a rejeição da autoridade papal.

Houghton temia pelos seus mais do que por si. Se fossem dispersos, perseverariam? Sob coerção, resistiriam? Aprisionados e torturados, seriam fiéis até o sangue? Reunindo-os, propôs-lhes um tríduo: o primeiro dia seria dedicado à Confissão sacramental; o segundo, à reconciliação mútua; no terceiro seria celebrada uma Missa ao Espírito Santo.

No segundo dia, o prior disse-lhes: “Meus caríssimos padres e irmãos: o que vós me virdes fazer, rogo-vos que façais também”. Então se levantou e, dirigindo-se ao mais velho da casa, de joelhos implorou perdão por todas as faltas que em algum momento tivesse cometido contra ele. Reciprocamente, o ancião pediu-lhe seu perdão. Entre lágrimas, o prior fez o mesmo com os demais religiosos, até o último irmão leigo. Assim descreve a cena uma testemunha ocular: “Todos o seguiram, sucessivamente, cada qual implorando perdão ao outro. Oh, que dor, que profusão de lágrimas! […] A partir desse dia, quem olhasse para o semblante de nosso santo pai – que nunca antes, em circunstância alguma, havia mostrado sinais de mudança – perceberia o quanto ele sofria”.

Era angústia pelo estado cataclísmico da Santa Igreja em sua amada terra, a perspectiva da morte iminente e a incógnita de como todos a enfrentariam. Nesse pungente transe foi-lhe concedida uma graça insigne.

O Espírito Santo, o Consolador

No final do tríduo, durante a Missa em honra do Espírito Santo, “um rumor como que de uma brisa leve, suave para os sentidos externos, mas muito operante internamente, foi observado e ouvido por muitos com seus ouvidos corporais, e sentido e haurido por todos com os ouvidos do coração. Nessa doce modulação o venerável prior, tomado pela plenitude da iluminação divina e desfeito em lágrimas, foi incapaz por muito tempo de prosseguir com a Missa. O convento também ficou atônito, ouvindo a voz e sentindo sua maravilhosa e doce operação no coração”.

O fato lembrava a promessa de Nosso Senhor Jesus Cristo antes da Paixão: “Eu pedirei ao Pai, e Ele vos dará um outro Defensor” (Jo 14, 16). Eles estavam preparados para a tempestade que em breve se desencadearia.

Martírios dos cartuxos da Inglaterra – Cartuxa de Valldemossa (Espanha) Foto: Francisco Lecaros

Martírios dos cartuxos da Inglaterra – Cartuxa de Valldemossa (Espanha) Foto: Francisco Lecaros

Uma esplêndida coroa de glória

Os sequazes do rei, após impor durante meses ao mosteiro um regime de cárcere, de cruel vigilância e de nefastas proposições, constataram que não conquistariam aqueles homens. Seria necessário eliminá-los. Foi então que, no dia 4 de maio de 1535, o futuro mártir Thomas More avistou da janela da prisão a cena que o comoveu: varões que, embora amarrados, eram verdadeiramente livres.

Atados a tábuas de madeira e cruelmente arrastados por cavalos pelas ruas lamacentas de Londres, o santo prior e seus companheiros chegaram em Tyburn com os corpos machucados, mas com seus princípios intactos. Houghton dirigiu-se à multidão, entre a qual misturavam-se membros da corte real ávidos por vê-lo renegar: “Nossa Santa Mãe, a Igreja, decretou o contrário do que o rei e o Parlamento decretaram e, portanto, em vez de desobedecer à Igreja, estou pronto a sofrer”.

Num gesto de perdão cristão, ele abraçou seu algoz e pediu licença para terminar sua oração, o Salmo 31, que canta: “In te, Domine, speravi, non confundar in æternum”. Em seguida foi enforcado e deixado cair ainda vivo. Abriram-lhe então o abdômen com um punhal e arrancaram suas entranhas, lançando-as ao fogo. Enquanto o carrasco se preparava para lhe tirar o coração, exclamou com suavidade: “Bom Jesus, o que farás com meu coração?”

Naquele mesmo dia, os lacaios de Cromwell regressaram ao mosteiro de Houghton para instar à capitulação os monges, os quais encontravam-se calmos como se o prior ainda estivesse em seu meio. Pregaram um dos braços do mártir na porta do convento, preciosa relíquia que os religiosos se apressaram em recolher. Nos meses dramáticos que se seguiram, mais quinze cartuxos do mesmo cenóbio suportaram interrogatórios, prisão, tortura e martírio.

Nesse período, um monge que morrera de causas naturais apareceu a um outro e lhe disse: “Estou bem, estou na glória celestial, […] mas numa glória muito menor e inferior à dos nossos padres que sofreram, pois eles gozam de grande glória, coroados com a palma do martírio. E nosso padre prior tem uma coroa mais esplêndida que os demais”.

Uma futura ressurreição para a Fé?

Afirma um historiador: “O assassinato de Houghton foi de natureza singularmente atroz. Sua história é a demonstração viva dos extremos a que Henrique e Cromwell estavam preparados a chegar, e das profundidades às quais estavam dispostos a descer, para quebrar a vontade da Inglaterra”.

Apesar de seu atual desfiguramento, ainda paira sobre a Inglaterra “um perfume de Anjos que por ali passaram,” segundo afirmou Dr. Plinio Corrêa de Oliveira. O sacrifício de uma multidão de homens e mulheres de todos os estados de vida, que derramaram seu sangue pela Fé durante a Revolução Protestante, permanece como “oferta de aroma agradável” (Gn 8, 21).

Hoje, junto ao local do antigo patíbulo de Tyburn, existe um convento de contemplativas beneditinas, cuja vida de perpétua Adoração Eucarística está dedicada a honrar esses mártires e impetrar a conversão do país. Não faltam palavras de Santos anunciando que isso se realizará, como as relatadas pelo Arcebispo de Birmingham, William Bernard Ullathorne, a propósito de sua visita a São João Maria Vianney em 1854. Após ouvir atentamente o prelado relatar as dificuldades sofridas pelos católicos na nação anglicana, o Cura d’Ars disse “com uma voz tão firme e confiante como se estivesse fazendo um ato de fé: ‘Mais, monseigneur, je crois que l’Église d’Angleterre retournera à son ancien splendeur – Mas, monsenhor, acredito que a Igreja da Inglaterra retornará ao seu antigo esplendor’”.

Tal reviravolta ocorrerá de acordo com a livre misericórdia de Deus e de Maria Santíssima, mas, por vontade divina, pesa a cooperação dos justos. Há almas chamadas a sofrer de maneira especial para obter as graças necessárias para o cumprimento do desígnio de Deus para a humanidade. E São John Houghton revelou ser pertencente a esse filão de almas sofredoras e confiantes na vitória final da Santa Igreja, ao subir serenamente o cadafalso e abraçar seu verdugo.

Texto extraído da Revista Arautos do Evangelho n. 281, maio 2025. Por Ir. Elizabeth Veronica MacDonald, EP.

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