São Francisco Xavier em Malaca, última escala antes da China
“Não podereis acreditar quanto fui perseguido em Malaca. Vou para as ilhas de Cantão, no império da China, desamparado de todo humano favor”.
Redação (03/12/2020 11:00, Gaudium Press) A população católica de Malaca manteve-se fiel à semente do Evangelho lançada pelos portugueses graças à evangelização de São Francisco Xavier. De 1545 a 1552, Malaca foi para o Apóstolo do Oriente uma espécie de quartel-general, de onde ele partia em missão para os vários países da Ásia.
A última estadia do Santo nessa cidade ocorreu, por assim dizer, quando numa de suas igrejas foi sepultado provisoriamente seu cadáver incorrupto, que vinha sendo conduzido da China para a Índia.
As crônicas registram numerosos episódios edificantes, inclusive vários milagres, ocorridos durante sua permanência nessas terras. Em sua obra “A Voz das Ruínas” – publicada em Macau, em 1988 – o sacerdote português Pe. Manuel Pintado transcreve alguns deles.
Penitência severa e salutar
Durante certo tempo, um português chamado João de Eiro foi servidor do Pe. Francisco Xavier, acompanhando-o sempre em suas visitas. Contudo, sua vida espiritual não era muito sólida, pois demonstrava grande avidez por dinheiro.
Numa ocasião, recebeu uma avultada quantia destinada às atividades apostólicas do grande missionário e tentou apropriar-se dela. Mas este tomou conhecimento do péssimo ato e – embora fosse normalmente muito indulgente com todos – julgou de seu dever aplicar ao culpado uma penitência exemplar pela grave falta. Mandou Eiro para a ilhota de Pulau Java, que ficava praticamente coberta de água durante a maré alta. Ali o servidor desonesto passou muitos dias, num abrigo por ele mesmo construído, alimentando-se do que conseguia pescar.
Certa noite, sem saber se estava sonhando ou tendo uma visão, viu-se numa bela igreja em cujo presbitério se encontrava a Santíssima Virgem sentada num trono, com o Menino Jesus ao colo. De modo afável mas firme, Ela censurou-lhe seus numerosos pecados. Eiro ouviu, de joelhos, as palavras da divina Acusadora e reconheceu quanto andara mal. Por fim, a Virgem ordenou-lhe que se levantasse e ele deixou a igreja… Quando voltou a si, na dura realidade da vida na ilhota, estava impressionadíssimo.
Na manhã seguinte, o Pe. Francisco chamou-o de volta a Malaca, aconselhando-o a confessar-se. Ele assim o fez, mas nada disse acerca do sonho ou visão.
No entanto, o missionário indagou sobre o assunto. Surpreso e perturbado, Eiro tentou encobrir o fato. O confessor insistiu, mas ele inexplicavelmente continuava a negar tudo. O Pe. Francisco narrou-lhe, então, detalhadamente, todo o sonho ou visão que seu penitente procurava ocultar na confissão. À vista disto, Eiro acabou por reconhecer mais esta falta, convencido de que o missionário era realmente um homem de Deus.
Mais tarde, ele fez uma declaração pública sob juramento, a propósito deste assunto.
Um mês depois, dócil e arrependido, João de Eiro viajou para a Índia, onde se tornou frade franciscano e, em avançada idade, faleceu em odor de santidade.
Caranguejos de São Francisco
É comum encontrarem-se no Estreito de Malaca caranguejos marcados por uma cruz na carapaça, conhecidos como “caranguejos de São Francisco Xavier”. A tradição popular relaciona-os com um milagroso episódio ali ocorrido.
Numa de suas viagens, o grande missionário foi surpreendido por uma terrível tempestade nas proximidades de Malaca. Enquanto rezava, implorando a Deus a bonança, caiu ao mar seu crucifixo. Isto causou-lhe grande tristeza.
Um soldado português, Fausto Ferreira, narra como ele foi reencontrado:
“No dia seguinte, ao desembarcarmos na ilha de Baramurah, caminhávamos pela praia, quando vimos um caranguejo fora d’água transportando um crucifixo! O animal deslocou-se na direção do Pe. Francisco, que caiu de joelhos, tendo o caranguejo permanecido quieto. Em seguida, largou o crucifixo e desapareceu no mar. Depois de beijar repetidamente o seu tesouro reencontrado, permaneceu em oração durante meia hora, no que o acompanhei com alegria, para agradecer a Deus Nosso Senhor este portentoso milagre”.
A inveja inutiliza um grandioso plano
Em maio de 1552, o Pe. Francisco chegou a Malaca procedente de Goa, empenhado nos preparativos finais para sua viagem à China. Nessa época, era proibida a entrada de mercadores estrangeiros e de missionários no então chamado Império do Meio. Qualquer transgressor da lei corria risco de prisão imediata.
Assim, decidiu o Santo lá chegar por vias diplomáticas. Para isto, dispôs as coisas de modo a entrar no séquito do embaixador do Rei de Portugal, cargo para o qual foi credenciado Diogo Pereira, seu íntimo amigo. Este gastou toda a sua fortuna fretando um navio, carregando-o com esplêndidos presentes para o imperador da China e adquirindo magníficos paramentos de seda e de damasco, e todo tipo de ricos ornamentos para celebrar a Santa Missa com toda a pompa, de modo a dar aos chineses noção da grandeza da verdadeira religião que lhes seria anunciada.
Quando tudo estava pronto para a partida, surgiu um obstáculo inesperado. Movido por inveja, o governador da fortaleza de Famosa, Álvaro de Ataíde, impediu a continuação da viagem, alegando que só a ele caberia o comando de uma expedição à China…
De nada adiantaram as ponderações do Pe. Francisco, nem a intervenção de altas personalidades. O governador da fortaleza detinha o controle das entradas e saídas de embarcações, e só autorizou a partida da caravela sob a condição de que nela não embarcasse Diogo Pereira.
Foi um dia muito triste para o Pe. Francisco, pois significava o fim de suas esperanças de entrar por vias diplomáticas na China. Em carta escrita a seu amigo após a partida de Malaca, o missionário lamenta: “Sou responsável pela perda desse dinheiro e agora pela perda do seu barco e de toda a sua fortuna. Por favor, não me venha visitar, porque ao vê-lo o meu coração fica despedaçado”. A carta traz como fecho: “O seu triste e desolado amigo, Francisco”.
Conhecendo embora os riscos que corria, o intrépido apóstolo de Cristo tentou conseguir ajuda de mercadores chineses para chegar a Pequim. Com esse objetivo, permaneceu na ilha de Sanchuão, a 80 quilômetros de Macau, onde os navios europeus costumavam aportar para comerciar com os chineses.
Acompanhado de apenas dois auxiliares, um indiano e um chinês, ficou na Ilha de Sanchuão à espera do retorno do comerciante chinês que se comprometera a transportá-lo.
Celebrava diariamente ali o Santo Sacrifício do Altar, olhando sem cessar para o continente pelo qual com tanto ardor suspirava. Mas os dias e as semanas se passaram, e em vão aguardou Francisco a volta do chinês: este infelizmente nunca retornou.
Após alguns meses de esforços infrutíferos, as forças físicas do ardoroso missionário chegaram então ao termo. Uma altíssima febre o obrigou a recolher- se em sua improvisada cabana, onde, desamparado dos homens e padecendo frio, fome e toda classe de privações, deveria passar os últimos dias de sua heroica existência nesta terra de exílio.
Alguns dias antes de falecer, entrou em delírio, revelando então a magnitude do holocausto que a Providência lhe pedia: falava continuamente da China, de seu ardoroso desejo de converter esse império e da glória que adviria para Deus se esse povo fosse atraído para a Santa Igreja Católica…
E nas primeiras horas da madrugada de 3 de dezembro de 1552, Francisco Xavier expirou docemente no Senhor, sem uma queixa ou reclamação, divisando ao longe aquela China que não conseguira conquistar e que tanto havia desejado depositar aos pés de seu Rei, Nosso Senhor Jesus Cristo.
Seu corpo foi sepultado numa urna com bastante cal, a fim de que, consumidas as carnes, os ossos pudessem depois ser transportados facilmente para o jazigo de alguma igreja.
Três meses e meio após sua morte, Jorge Álvares, capitão de uma nau prestes a partir de Sanchuão, mandou exumar o corpo. Para surpresa geral, este não só estava incorrupto, mas exalava um agradável perfume.
Chegando a Malaca, todos os seus habitantes, cristãos e não-cristãos, acorreram com lágrimas nos olhos para receber solenemente e prestar honras ao corpo do Santo missionário. Formou-se uma grande procissão do porto até a Igreja de São Paulo, onde ele foi sepultado por um ano, antes de ser transferido para Goa.
À primeira vista, a vida de São Francisco Xavier parece, em certo sentido, frustrada. Quantas almas não se teriam salvado se império chinês houvesse sido evangelizado por este apóstolo de fogo! Entretanto, quando se encontrava ele, finalmente, às portas desta nação, o chamado de Deus se fez ouvir: “Francisco, meu filho, cessa tua luta e vem a Mim!”
De Francisco, Deus não queria a China… mas queria Francisco.
Texto extraído, com adaptações, das Revistas Arautos do Evangelho n.21 e 47 .
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