Santa Paula: discípula de São Jerônimo
“Ainda que todos os membros de meu corpo se tornassem línguas e suas articulações falassem com voz humana, nem sequer assim poderia dizer nada digno das virtudes da santa e venerável Paula”. (São Jerônimo)
Redação (26/01/2024 09:47, Gaudium Press) Corre o ano de 379. O olhar observador de quem transita por aquelas ruas de Roma tão bem pavimentadas é atraído para um palácio, intensamente iluminado, cujos ruídos vindos do interior indicam encontrar-se lá grande quantidade de pessoas. A reunião apenas começou. Aos poucos vão chegando as matronas, revestidas de ricos tecidos, ornadas com valiosas joias e transportadas em confortáveis liteiras. Os primeiros acordes de uma música se fazem ouvir. Mais uma festa se inicia na alta sociedade romana.
Jovem ainda, dir-se-ia que Paula, a matriarca desse lar, fosse a pessoa mais feliz do mundo. As grandes glórias dos Cornélios, Cipiões, Emílios e Gracos resplandecem sobre seu berço. Possui também luzidia inteligência: além do latim, fala grego com perfeição. Ela se uniu em matrimônio a Toxócio, rebento do nobilíssimo sangue dos Júlios, família que ficou mundialmente célebre quando Júlio César assumiu o poder como cônsul e ditador. À nobreza, o casal unia uma imensa fortuna.
Uma dama dessa classe era obrigada a vestir-se com roupas de seda bordadas a ouro, calçar sapatos ornados com brilhantes, cingir-se com um cinto recamado de pedrarias, enfeitar-se com brincos e colares cujo custo equivalia a um patrimônio. Paula seguia à risca essas regras.
Despojada da felicidade mundana
Ditosos e desanuviados se sucederam os anos para o casal, em cujo seio nasceram cinco filhos: Blesila, Paulina, Eustóquia, Rufina e Toxócio, assim chamado em honra ao pai. A ilustre dama, porém, não podia imaginar a grande tormenta que a esperava com a morte de seu marido.
O súbito acontecimento toldou-lhe o horizonte de tristeza e a fez perder o rumo de sua existência. Sendo ainda jovem, tinha cerca de trinta e um anos, o seu futuro tornou-se-lhe incerto, sua família desprotegida e seu convívio social instável. Abalada pela dor, chorava noites inteiras sem que ninguém fosse capaz de confortá-la.
O abatimento de Paula chegou a tal auge, que muitos temiam por sua vida. Dizia-se cristã, mas não conseguia contemplar aquela tragédia com os olhos da fé. Contudo, o sofrimento acabou dando-lhe ensejo de, pela primeira vez, considerar as coisas à clara luz das realidades eternas, diante das quais a fantasia passageira do mundanismo jaz por terra.
De que lhe adiantava ser contada entre as primeiras fortunas do império? Qual a utilidade do seu nobilíssimo sangue? Mais ainda, que vantagem tirava do esforço em parecer bem à sociedade, de empregar horas a fio em trançar os cabelos e enfeitar-se a fim de ser tida por bela?
O corpo frio e inerte de seu marido era uma resposta contundente: o reconhecimento do mundo não o livrara da morte; o dinheiro e as homenagens jamais seriam capazes de fazê-lo mover mais uma vez nem um dedo sequer.
Essa perspectiva, inteiramente nova para Paula, talvez tenha feito sangrar sua alma ainda mais do que a perda daquele a quem ela amava. Diante dela abria-se uma encruzilhada: podia mergulhar ainda mais no mundo, dando rédeas soltas ao desespero e à fruição dos prazeres, ou podia estender a mão à Providência, que a convidava à seriedade. Qual dos dois caminhos escolheria?
Palavra e exemplo que transformam
Decerto não teria conseguido Paula superar tão crucial conjuntura se para ela não se tornasse realidade a passagem da Escritura: “Um amigo fiel é uma poderosa proteção: quem o achou, descobriu um tesouro” (Eclo 6, 14).
Marcela era uma patrícia de outra importante linhagem romana. Seus pais haviam-lhe arranjado um vantajoso matrimônio para garantir a continuidade da família, e ela, embora acalentasse o desejo de entregar-se a Deus por completo, atendeu aos anseios paternos. Porém, ficou viúva depois de apenas sete meses e, não tendo nunca amado o mundo, transformou seu palácio numa verdadeira comunidade religiosa.
Passaram-se alguns anos até que, em certo dia, uma jovem passou defronte àquela residência convertida em mosteiro e tomou contato com as que ali habitavam. Ainda coberta por trajes de luto e imersa na tempestade interior, a viúva de Toxócio admirou-se com o exemplo daquela que tivera, no seu breve matrimônio, uma sorte semelhante à sua.
Paula abriu sua alma à influência de Marcela e esta a ajudou a despojar-se das vaidades mundanas, introduzindo-a na intimidade divina.
Sabedoria de Deus… loucura para o mundo, diz São Paulo (cf. I Cor 1, 23-24). Quiçá, já naquele tempo, algum “sábio” definisse a conversão da jovem patrícia como fruto de um grave transtorno psicológico, provocado pela morte de seu marido… Mas, de fato, tratava-se da graça fazendo maravilhas no coração daquela distinta dama.
Contrariando a sociedade que antes frequentara, Paula avançou a passos largos no caminho da perfeição. Distribuiu grande parte de suas riquezas aos pobres, assistiu os necessitados com extrema bondade e, quando familiares a criticavam porque tirava dos filhos para dar aos demais, respondia-lhes que lhes deixava uma herança maior e mais valiosa que o ouro: a misericórdia de Cristo.
Reuniões com o Doutor das Escrituras
Paula estava ainda dando os primeiros passos de sua conversão quando uma presença ilustre e singular se fez sentir em Roma, despertando simpatia em alguns, e em outros antipatia.
Em meio ao luxo e aos prazeres de então, era um varão que “parecia um retrato de Elias, do Batista ou de Antão. Na fala, na compostura, nos gestos, dava a impressão de ermitão asperíssimo, de monge cheio de perfeição e de homem verdadeiramente crucificado para o mundo e transformado em Jesus Cristo”.
Era o Bispo Jerônimo, que chegara à Cidade Eterna para secretariar o Papa São Dâmaso e servir-lhe, também, de valioso assessor bíblico. Ocupava, segundo alguns hagiógrafos, um cargo equivalente ao de Secretário de Estado nos dias de hoje.
Sua erudição e virtudes, unidas a uma figura impressionantemente austera, atraíam todos aqueles que procuravam a santificação, de modo especial aquelas matronas cristãs. Foi Santa Marcela que, movida pela admiração, estendeu a primeira ponte de comunicação entre elas e o Santo, pois este, por modéstia, apartava seus olhos das nobres damas.
Encontrando nelas, e em outras amigas suas, um autêntico desejo de progredir nas vias da perfeição, São Jerônimo não poupou esforços em conduzi-las pelas sendas da virtude. Começou por notar que, embora tivessem consagrado a Deus sua vida e desejos, conservavam ainda numerosos caprichos e defeitos. Eram, escreve o Santo, “escravas do mundo […], incapazes de suportar o lixo vertido na rua. Faziam-se transportar por eunucos, irritavam-se com as irregularidades do caminho, tinham por pesada carga os vestidos de seda que as revestiam e sentiam-se incomodadas pelo sol, por um pouco mais que este aquecesse”.
A pedido daquelas damas, São Jerônimo começou a promover reuniões no palácio de Marcela, e mais tarde no de Paula, onde lhes explicava diversas passagens da Bíblia.
Verdadeiro pai espiritual de Paula
Com grande discernimento e paciência, o santo varão passou a orientar e forjar o caráter da patrícia romana, que, por sua vez, o via mais como pai do que como mestre. Estabeleceu-se assim entre eles o vínculo perene próprio às coisas do espírito.
Conta-se, por exemplo, que uma das filhas de Paula, chamada Blesila, jovem de aspecto atraente mas entregue aos encantos do século, acabou por renunciar ao mundo, orientada por São Jerônimo. A malária, porém, levou-a em três meses à sepultura, deixando sua mãe novamente oprimida pela dor, a ponto de tomar atitudes desarrazoadas, como a de deixar de alimentar-se.
Verdadeiro pai espiritual, São Jerônimo também se comoveu pela separação e lembra a Paula, com muito tato, que a mão de Deus está por detrás de tudo o que acontece. Explica-lhe por que tal desenlace fora o melhor, inclusive para ela, sua mãe. Adverte-a com firmeza a não se deixar tomar pelo afeto puramente carnal, comparando-a a uma mulher pagã cujo marido havia pouco morrera.
Nos quatro anos que São Jerônimo permaneceu em Roma, Santa Paula deixou-se moldar por ele, a ponto de tornar-se, mais do que todos os seus escritos bíblicos, doutrinários ou apologéticos, “a melhor carta, a obra-mestra” do grande Doutor da Igreja.
Altaneria e fidelidade diante das calúnias
Chegou o ano de 385. Paula, que já amadurecera na virtude, estava pronta para enfrentar varonilmente uma nova tempestade – e quão dura seria! Ela, que renunciara ao mundo para entregar-se a Deus, teria que desafiá-lo uma vez mais, para selar sua fidelidade ao caminho escolhido.
Com a morte de São Dâmaso, São Jerônimo foi destituído de suas funções pontifícias. Ao mesmo tempo, uma onda de infames calúnias levantou-se contra ele. Acusavam-no de não ser o que de fato aparentava; atribuíam a conversão de Paula, de Marcela e tantas outras matronas a dons mágicos por ele usados para atrair e manipular as pessoas; e, pior ainda, tentaram manchar com uma conotação maliciosa as reuniões no palácio de Santa Marcela.
Conspurcavam assim o vínculo santo e inteiramente espiritual entre Paula, suas filhas e São Jerônimo. Diziam que ele era um homem depravado, entregue a imoralidades, e houve, inclusive, um infeliz que forjou graves acusações, as quais depois reconheceu serem falsas…
São Jerônimo, porém, não se deixou intimidar, e contemplava com altaneria a perseguição que sobre ele se desencadeara: “eu sei que chegaremos no Reino dos Céus passando por boa ou má fama”.
Conhecendo a integridade de sua filha espiritual, e vendo-a também injuriada, ressaltou como suas virtudes tornaram-na digna de sofrer por Cristo.
Alma de convicções profundas, nada abalou a entrega de Paula a Deus e sua confiança em São Jerônimo. Diante da perseguição e das calúnias que faziam contra ele, essa insigne discípula soube manter-se fiel ao pai que a conduzia pelas vias do Espírito.
Que alegria para o Doutor das Sagradas Escrituras, em meio àquele mar revolto, ver brilhar nela a fidelidade e constância, frutos de seu intenso apostolado e sacrifício! De fato, concluindo uma de suas cartas de defesa, São Jerônimo escreve: “Dê lembranças minhas a Paula e Estóquia – ainda que não seja do agrado do mundo, elas são minhas em Cristo”.
Regra viva a ser seguida no mosteiro
Ainda no conturbado ano de 385, Santa Paula abandona a Cidade Eterna num navio rumo ao Oriente, seguindo as pegadas de seu mestre. Nos meses subsequentes, conhecerá ela a Terra Santa, berço da Fé, e o Egito, nascedouro da vida monástica. E, ao percorrer cada um dos lugares santos, sua alma piedosa reviverá o Evangelho.
Mestre e discípulas estabelecer-se-ão, por fim, em Belém. Ali Paula erigirá um mosteiro feminino, do qual será a superiora, e São Jerônimo um cenóbio masculino. Construirão também uma casa dedicada à hospedagem dos peregrinos, em reparação da falta de acolhida sofrida pela Sagrada Família naquela cidade.
No mosteiro em Belém, Santa Paula viveu cerca de vinte anos. Apesar de todas as responsabilidades na direção da casa, continuava a auxiliar São Jerônimo nos seus comentários às Sagradas Escrituras, sobretudo levantando perguntas e fazendo observações que o conduziam a novas explicações. A fim de ser mais útil para o seu mestre, aprendeu também o hebraico. Mas, seguindo o exemplo dado por ele, esforçava-se principalmente em transpor os ensinamentos bíblicos para o dia a dia, mais do que em estudá-los intelectualmente.
Superiora exemplar, era a regra viva a ser seguida. Não havia quem a vencesse em humildade ou a superasse em generosidade. Aliando a firmeza à compaixão e dotada de um alto senso psicológico, formava de maneira exímia suas discípulas e, não obstante as advertências de São Jerônimo, submetia-se a severas penitências.
De Belém ao Reino dos Céus
Tendo ela transposto o umbral dos cinquenta e seis anos, Deus encontrou Paula pronta para o Céu. Uma terrível enfermidade a acometeu, fazendo-lhe entender que o seu fim estava próximo.
Ao serem informados de que alma tão virtuosa estava para deixar esta terra, monges e virgens apressaram-se por chegar ao mosteiro. A eles juntaram-se os Bispos de Jerusalém e de outras cidades, além de muitos sacerdotes e diáconos. E, à sua morte, todos louvaram a Deus pelas maravilhas operadas naquela nobre dama. “Não estamos tristes de tê-la perdido, mas damos graças a Deus de tê-la tido, ou melhor, de tê-la ainda”, expressou mais tarde São Jerônimo no elogio fúnebre de sua discípula.
Dela se despede com palavras cheias de poesia e piedade dizendo: “Adeus, Paula. Ajuda com tuas orações a última etapa da ancianidade de quem te reverencia. Tua fé e tuas obras te associaram a Cristo; junto a Ele, alcançarás mais facilmente o que peças”.
A Igreja celebra sua memória no dia 26 de janeiro.
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n. 217, janeiro 2020. Por Ir. Maria Beatriz Ribeiro Matos, EP.
Deixe seu comentário