Renascença: cultivo dos valores da inteligência
Em consequência da concepção naturalista de vida do homem renascentista, o cultivo dos valores da inteligência constituía para ele um ponto de honra.
Redação (19/05/2024 15:37, Gaudium Press) Para penetrarmos no fundo da modificação psicológica que a Renascença trouxe à alma humana, precisamos recordar a noção de transcendência: a superioridade especial que tem uma coisa sobre outra, pelo fato de ser intrinsecamente de uma qualidade mais elevada. Por exemplo, uma planta transcende a pedra, que é de natureza mineral; o animal transcende a planta, e o homem, animal racional, transcende o simples animal.
De todas as criaturas terrenas, o homem é o único capaz de pensar e, através do raciocínio, chegar a compreender sua transcendência em relação aos seres que lhe são inferiores, a possibilidade da existência de uma ordem de seres que transcende a ele próprio e lhe seja muito superior.
Dessa forma, ele alcança a ideia de um Deus em quem todas as qualidades, perfeições e excelências possam existir de modo personificado e absoluto.
No homem existe uma espécie de sede insaciável de algo mais perfeito, mais alto, mais transcendente. Por sua inteligência, ele pode vislumbrar outros mundos, outras realidades, outros firmamentos, que normalmente não tem diante de si.
Ora, tudo quanto o homem pode imaginar de uma ordem mais bela, superior e extraordinária, transluz por assim dizer na Pessoa adorável de Nosso Senhor Jesus Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro Homem, em quem todas as perfeições imagináveis residem por excelência.
Além de Jesus Cristo, temos a Igreja Católica, sua Esposa Mística.
Quando entramos num templo construído em estilo genuinamente católico e ouvimos o som de um belo órgão, ou acompanhamos a Liturgia que ali se desenrola em toda a sua pompa e esplendor, sentimos em torno de nós o calor da piedade de todos os fiéis reunidos, que sobe aos céus.
Esse conjunto de coisas transporta nosso espírito para muito além das realidades terrestres. Tal noção de transcendência estava presente, de modo muito particular, na alma do medieval.
Beato Fra Angélico, Rafael e Michelangelo
O que propriamente caracteriza o período renascentista é a ausência
quase completa dessa concepção reinante na Idade Média. Ao invés de procurar sempre uma ordem superior, vendo todas as coisas à luz de um anelo para essa ordem, o homem da Renascença apenas compreende aquilo que ele pode ver e sentir de maneira natural. Corta a tendência para o transcendental, só lhe interessando permanecer no estrito terreno da natureza.
Um retrato fiel de homens que concebiam uma esfera de coisas superior, aparece nos quadros do Beato Fra Angélico, o qual, por seu espírito, é caracteristicamente um artista medieval, embora tenha vivido na época da Renascença.
Em suas pinturas ele representa pessoas imbuídas de uma luz, de uma claridade, de uma leveza inexistentes na vida real, e que nos falam de uma ordem transcendente.
Outro exemplo. Nas figuras de pessoas trabalhando, esculpidas nos portais ou representadas nos vitrais das catedrais medievais, percebe-se serem indivíduos com o espírito povoado por ideias de uma ordem superior, o que lhes confere dignidade, equilíbrio, recolhimento e uma total preponderância da alma sobre o corpo.
Já nas obras de arte do Renascimento tudo nos fala apenas desta vida e desta natureza.
Se analisarmos uma figura humana, como uma Madonna de Rafael, constataremos que ela personifica uma senhora muito amena, dotada de um excelente gênio, de costumes muito puros, de um trato agradável, mas não causa a impressão de um ser celeste. Dá-nos a ideia de uma esplêndida pessoa desta Terra.
No “Moisés” de Michelangelo vamos encontrar o mesmo fenômeno. A escultura nos apresenta um possante italiano, inteligente e capaz, com um desdobramento enorme de personalidade. Mas nada nos faz sentir o Moisés da Bíblia, o varão que banhou seus olhos numa claridade sobrenatural e teve contato com uma ordem que transcende o homem.
Desejo desenfreado de gozar a vida
Ainda quando pintavam ou representavam cenas sobrenaturais, os renascentistas só espelhavam a natureza, excluindo completamente o transcendente, os valores sobrenaturais e a existência eterna.
Se só a natureza que nos rodeia existe, chega-se forçosamente à conclusão de que a única coisa que ela apresenta de sólido, de deleitável, são os sentidos. Trata-se, portanto, de desfrutá-los ao máximo.
Essa posição naturalista do homem renascentista teve, como consequência, um desejo desenfreado de gozar a vida de todos os modos e por todos os poros. E é este mais um dos traços mais marcantes da Renascença.
Há vários modos de gozar a vida. O tipo mais frequente é o do homem dotado de bom humor, que procura a alegria cortesã ao som do bandolim, do alaúde e, mais tarde, do cravo.
Ao lado disso, existem as pessoas melancólicas que realizam esse desejo através de uma vida em que o choro e as lamentações têm importante papel; gostam de fazer dos seus dias nesta terra um grande drama.
O pensamento como fonte de diversão
Importa notar que, para o renascentista, o gozar a vida supõe antes de tudo inteligência. Ele não conceberia desfrutá-la usando de modo desordenado o celular e tomando Coca-Cola, como em nossa época.
Tendo herdado a capacidade intelectiva existente na Idade Média, compreendia a superior satisfação que se encontra no pensar e gostava de analisar, comparar, julgar.
O homem renascentista entendia, contudo, o pensamento como uma fonte de diversão. Buscava o prazer de efetuar brilhantes raciocínios, dizer bonitas frases, realizar agradáveis excursões por uma ordem de coisas mais elevada.
Abandonando o gosto das ideias claras e bem ordenadas próprias da escolástica, surgiu o denominado “belo espírito”, que não era o do homem sábio, mas do rutilante, o qual não tinha mais o desejo sério de aprender a verdade.
Em consequência da concepção naturalista de vida do homem renascentista, o cultivo dos valores da inteligência constituía para ele um ponto de honra.[1]
Apagamento da luz da razão
O processo revolucionário, iniciado na Renascença, chegou hoje ao paroxismo no campo intelectual, por exemplo.
Conforme Dr. Plinio Corrêa de Oliveira previu em 1974, a humanidade foi atingida pelo apagamento do lumen rationis, ou seja, da luz da razão, fenômeno mais terrível que se tem passado na História, desde a morte de Nosso Senhor Jesus Cristo.
“É a luz do bom senso, do equilíbrio natural – antigamente patrimônio de qualquer pessoa, fosse vendeiro, engraxate ou verdureira – que hoje em dia se apaga, dando origem a um estado psicológico no qual todas as contradições, incoerências e absurdos são ingeridos com uma normalidade que merece o nome de cinismo”.
Esse inaudito fenômeno traria como consequência “uma monumental e, a seu modo, dramática e majestosa preparação para toda desordem, todo erro e todo mal”.[2]
Por Paulo Francisco Martos
Noções de História da Igreja
[1] Cf. CORRÊA DE OLIVEIRA, Plinio. Na Renascença, domínio do natural e do terreno. In Dr. Plinio. São Paulo. Ano III, n. 23 (fevereiro 2000), p.12-16.
[2] CLÁ DIAS, João Scognamiglio, EP. O dom de sabedoria na mente, vida e obra de Plinio Corrêa de Oliveira. Cidade do Vaticano: Libreria Editrice Vaticana; São Paulo: Instituto Lumen Sapientiae. 2016, v. IV, p. 477-478.
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