Reação do espírito humano diante da superioridade
Assim como se une a Deus aquele que ama um bem superior mais do que a si mesmo, quem se ama a si mesmo acima de todas as coisas, e mais do que a Deus, se liga ao demônio.
Redação (07/07/2024 10:08, Gaudium Press) Em Nazaré, Nosso Senhor viveu por cerca de trinta anos, desde a volta do Egito, após a morte de Herodes (cf. Mt 2,15.23), até o início de sua vida pública com o Batismo no Jordão (cf. Mt 3,13-17). Nesta cidade, nunca Se manifestara enquanto Deus, mas apenas como o filho de José e de Maria, uma pessoa comum.
Em certo momento, Ele desapareceu e, em Nazaré, apenas chegavam os ecos de seus grandiosos milagres. Decerto a Galileia estava em alvoroço pelas repercussões relativas aos feitos de Jesus, como a ressurreição da filha de Jairo e a cura da hemorroíssa realizadas havia pouco, conforme relata São Marcos (cf. Mc 5,22-42), e tantas outras ações extraordinárias. E deveriam também ouvir falar das maravilhosas doutrinas inéditas pregadas pelo Divino Mestre, bem como das encantadoras parábolas que tanto entusiasmavam os homens de boa-fé.
“Naquele tempo, Jesus foi a Nazaré, sua terra, e seus discípulos O acompanharam. Quando chegou o sábado, começou a ensinar na sinagoga” (Mc 6,1-2a).
Nessas circunstâncias, chega Jesus à sua terra. Podemos imaginar o burburinho provocado ao verem-No entrar na sinagoga, onde nunca havia pregado, e começar a comentar a Escritura de um modo jamais ouvido.
Admiração, primeiro movimento diante da superioridade
“Muitos que O escutavam ficavam admirados”. São Lucas acrescenta importantes pormenores relativos a este episódio. Convidado a falar, Jesus abriu o livro do profeta Isaías onde está escrito: “O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu; e enviou-Me para anunciar a Boa-nova aos pobres” (Lc 4,18). A seguir, afirmou: “Hoje se cumpriu este oráculo que vós acabais de ouvir” (Lc 4,21). E São Lucas conclui: “Todos Lhe davam testemunho e se admiravam das palavras de graça, que procediam da sua boca” (Lc 4,22).
A primeira reação, portanto, foi de admiração geral; tão ricas, densas e originais devem ter sido as palavras proferidas pelo Salvador, certamente não registradas em sua totalidade pelo Evangelista. De fato, é este o primeiro movimento de toda criatura humana no seu relacionamento social ao encontrar alguém que se sobressai a algum título. Em seguida, contudo, devido ao instinto de sociabilidade que nos impele a entrarmos em contato com os demais, a inevitável tendência natural é a comparação: “Seríamos também capazes de realizar o mesmo?”. O teor afirmativo ou negativo da resposta determinará, como consequência imediata, uma reação interna de alegria ou de tristeza.
No caso afirmativo, ficamos satisfeitos por nos julgarmos aptos para igualar, ou até superar, o outro. E podemos tomar duas atitudes. Uma boa, de compreender que se trata de dom gratuito de Deus — pois o Espírito Santo “distribui todos estes dons, repartindo a cada um como lhe apraz” (I Cor 12,11) —, e temos o dever de utilizá-lo para ajudar os outros a se santificarem, conforme ensina o Apóstolo: “A cada um é dada a manifestação do Espírito para proveito comum” (I Cor 12,7). E outra ruim, de orgulho, desprezando aquilo que os outros possuem.
No caso negativo, sentiremos tristeza ao constatar nossa inferioridade. E aqui também são possíveis duas atitudes. A primeira, boa, consiste em passar por cima dessa instintiva tristeza e admirar a qualidade do outro, nos encantando com a sua superioridade. A segunda, má, de ter um certo ressentimento, resultado da inveja perante o valor alheio.
As duas atitudes boas nos trazem paz de alma, pois propiciam reconhecer a grandeza do Criador através de seus reflexos nas pessoas. Assim procede quem se habitua a considerar os aspectos da vida cotidiana, elevando-se a partir deles a superiores cogitações. São aqueles que, no passo seguinte à admiração, sempre estão desejosos de louvar, estimar e servir àquilo que é verdadeiro, bom e belo.
Ora, dada a natureza humana decaída, sem o auxílio da graça as reações posteriores à comparação são ordinariamente ruins. Arquetípico exemplo disto encontramos nos versículos seguintes, nos quais o Evangelista resume a reação dos nazarenos diante da pregação de Jesus.
A consequência do egoísmo
“E diziam: “De onde recebeu Ele tudo isto? Como conseguiu tanta sabedoria? E esses grandes milagres que são realizados por suas mãos? Este Homem não é o carpinteiro, filho de Maria e irmão de Tiago, de Joset, de Judas e de Simão? Suas irmãs não moram aqui conosco?” E ficaram escandalizados por causa d’Ele. (Mc 6,2c-3)
Na cidade de Nazaré, excetuando Nossa Senhora, não houve provavelmente quem tomasse a atitude correta de admirar a superioridade de Jesus. Depois da primeira reação boa, passaram eles a considerar apenas os aspectos humanos, e logo surgiram as dúvidas de má-fé, seguidas da inveja.
Uns se perguntavam de onde vinha tanto conhecimento, uma vez que o Pregador não estudara com nenhum dos mestres conhecidos na região. Dentre estes, alguns até poderiam estar presentes na sinagoga naquele momento, e considerassem intolerável Jesus sobrepujá-los no saber, justo eles que tanto haviam estudado.
E, quiçá, se perguntavam quais as artimanhas empregadas pelo jovem Mestre para adquirir tão grande conhecimento em tão breve espaço de tempo.
Misturava-se neles a inveja com um fundo de falta de fé, ao quererem julgar as coisas pelas suas aparências primeiras. Não souberam transcender a figura do filho do carpinteiro, que ali havia vivido tantos anos exercendo um trabalho artesanal, numa situação completamente ordinária e que, de repente, surge como sábio, taumaturgo e exorcista.
Ao mesmo tempo, não podiam negar serem verdadeiros os retumbantes milagres atribuídos ao Redentor, mas, em sua cegueira espiritual, preferiam fechar os olhos para a realidade superior, e se refugiar numa explicação natural, que não lhes cobrava uma mudança de vida.
“E ficaram escandalizados por causa d’Ele”. É o desprezo a consequência necessária da falta de amor e da inveja. Com severidade, São Basílio invectiva este defeito de alma: “A inveja é um gênero de ódio, o mais feroz, porque os benefícios aplacam quem por alguma outra causa é inimigo nosso; o bem que se faz ao invejoso, todavia, o irrita mais; e quanto mais ele recebe, mais se indigna, se entristece e se exacerba. Isso porque o desgosto que sente pelo poder do benfeitor é maior que a gratidão pelos bens que dele recebe. […] Os cães tornam-se mansos se alguém lhes dá de comer; os leões se domesticam, quando se cuida deles; mas os invejosos se enfurecem mais com os benefícios”.[1]
A admiração justifica
Muito diversa teria sido a história do início da Igreja se os nazarenos tivessem admirado e seguido Nosso Senhor.
O papel da admiração e do amor é ressaltado por São Tomás,[2] ao afirmar que quem orienta a sua vida segundo o seu verdadeiro fim, amando um bem honesto mais do que a si mesmo, ainda que não batizado, obtém pela graça a remissão do pecado original. E comenta sobre este particular Garrigou-Lagrange: “Está justificado pelo Batismo de desejo, porque esse amor, que já é o amor eficaz a Deus, não é possível no estado atual da humanidade sem a graça regeneradora”.[3]
Poderíamos então inverter a afirmação do Doutor Angélico e dizer que quando uma pessoa ama a si mesma mais do que a um bem, torna-se medíocre e egoísta, e, portanto, abre-se a toda forma de mal, passando a ser cega de Deus. Assim como se une a Deus aquele que ama um bem superior mais do que a si mesmo, quem se ama a si mesmo acima de todas as coisas, e mais do que a Deus, se liga ao demônio.
Por conseguinte, neste sentido, o limite que separa o Céu do inferno é traçado por uma palavra: admiração. A admiração por algo mais elevado me aproxima do Céu; e a admiração a mim mesmo me aproxima do inferno.
Extraído, com alterações de:
CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O inédito sobre os Evangelhos: comentários aos Evangelhos dominicais. Città del Vaticano-São Paulo: LEV-Instituto Lumen Sapientiæ, 2014, v. 4, p. 212-219.
Por Rodrigo Siqueira
[1] SÃO BASÍLIO MAGNO. De envidia. Homilia XI, n. 3: MG 31, 378.
[2] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. I-II, q. 89, a. 6.
[3] GARRIGOU-LAGRANGE, OP, Réginald. El Salvador y su amor por nosotros. Madrid: Rialp, 1977, p. 34.
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