Penitência, jejum e abstinência
Quaresma rica do jejum e da abstinência, enriquecidos com o bem da caridade fraterna, da esmola.
Redação (05/03/2021 16:47, Gaudium Press) Uma das características do tempo da Quaresma é a penitência, que significa a disposição de voltar a encontrar o esposo de nossa alma (quando o esposo for tirado, então jejuarão), portanto, implica voltar ao Senhor, ou seja, mudança de vida, de atitude, de transformação. Para isso nos são propostos sacrifícios, sobretudo no comer e no beber. Tal penitência pode consistir numa simples abstinência, que é renúncia a algum alimento, ou pode chegar ao jejum, que consiste no privar-se das refeições de modo total ou parcial. É muito importante a prática de tal forma de penitência. Aliás, eram o jejum e a abstinência que, na Igreja Antiga, davam uma fisionomia própria ao tempo quaresmal.
Por que jejuar?
Mas, por que jejuar? Por que se abster de alimentos? É necessário compreender o sentido profundo que o cristianismo dá a essas práticas, para não ficarmos numa atitude superficial, às vezes até folclórica ou, por ignorância pura e simples, desprezarmos algo tão belo e precioso no caminho espiritual do cristão.
O jejum e a abstinência têm alguns sentidos muito específicos e claros. O jejum nos ensina que somos radicalmente dependentes de Deus. Na Escritura, a palavra ‘nephesh’ significa, ao mesmo tempo, ‘vida e garganta’. A ideia que isso exprime é que nossa vida não vem de nós mesmos, não a damos a nós próprios; nós a recebemos continuamente: ela entra pela nossa garganta com o alimento que comemos, a água que bebemos, o ar que respiramos. Jamais o homem pode pensar que se basta a si mesmo, que pode se fechar para Deus. Quando jejuamos, sentimos uma certa fraqueza e lerdeza, às vezes, nos vem mesmo um pouco de tontura. Isso faz parte da “psicologia do jejum”: recorda-nos o que somos sem esta vida que vem de fora, que nos é dada por Deus continuamente.
A prática do jejum impede-nos, então, da ilusão de pensar que a nossa existência, uma vez recebida, é autônoma, fechada, independente. Nunca poderemos dizer: “A vida é minha; faço como eu quero!” A vida será, sempre e em todas as suas etapas, um dom de Deus, um presente gratuito, e nós seremos sempre dependentes dEle. Esta dependência nos amadurece, nos liberta de nossos estreitos e mesquinhos horizontes, nos livra da autossuficiência e nos faz compreender “na carne” nossa própria verdade, recordando-nos que a vida é para ser vivida em diálogo de amor com aqu’Ele que no-la deu.
A abstenção do alimento nos exercita na disciplina
O alimento é uma de nossas necessidades básicas, um de nossos instintos mais fundamentais. A abstenção do alimento nos exercita na disciplina, fortalecendo nossa força de vontade, aguçando nossa capacidade de vigilância, dando-nos a capacidade para uma verdadeira disciplina. Nossa tendência é ir atrás de nossos instintos, de nossas tendências, de nossa vontade desequilibrada. Aliás, essa é a grande fraqueza e o grande engano do mundo atual. Dizemos: “não vou me reprimir; não vou me frustrar”, e vamos nos escravizando aos desejos mais banais e às paixões mais contrárias ao Evangelho e ao amor pelo próximo.
O próprio Jesus, de modo particular, e a Escritura, de modo geral, nos exortam à vigilância e à sobriedade. O jejum e a abstinência, portanto, são um treino para que sejamos senhores de nós mesmos, de nossas paixões, desejos e vontades. Assim, seremos realmente livres para Cristo, sendo livres para realizar aquilo que é reto e desejável aos olhos de Deus! O próprio Jesus afirmou que quem comete pecado é escravo do pecado! Não adianta: sem o exercício da abstinência, jamais seremos fortes. Não basta malhar o corpo; é preciso malhar o coração!
O jejum nos faz participantes da paixão do Senhor
O jejum tem, também, a função de nos unir a Cristo, no seu período de 40 dias no deserto. Quaresma de Cristo, Quaresma do cristão. Faz-nos, assim, participantes da paixão do Senhor, completando em nós o que faltou à cruz de Jesus. O cristão jejua por amor a Cristo e para unir-se a Ele, trazendo na sua carne as marcas da cruz do Senhor. É uma união com o Senhor que não envolve somente a alma, com seus sentimentos e afetos, mas também o corpo. É o homem todo, a pessoa na sua totalidade que se une ao Cristo. Nunca é demais recordar que o cristianismo não é uma religião simplesmente da alma, mas atinge o homem em sua totalidade. Pelo jejum, também o corpo reza, também o corpo luta para colocar-se no âmbito da vida nova de Cristo Jesus. Também o corpo necessita, como o coração, ser esvaziado do vinagre dos vícios para ser preenchido pelo mel, que é o Espírito Santo de Jesus.
Contudo, o jejum e a abstinência fazem-nos recordar aqueles que passam privação, sobretudo a fome, abrindo-nos para os irmãos necessitados. Há tantos que, à força, pela gritante injustiça social em nosso país, jejuam e se abstêm todos os dias, o ano todo! O jejum nos faz sentir um pouco a sua dor, tão concreta, tão real, tão dolorosa! Por isso mesmo, na tradição mística e ascética da Igreja, o jejum e a abstinência devem ser acompanhados sempre pela esmola: aquele alimento do qual me privo, já não é mais meu, mas deve ser destinado ao pobre. É por isso que os pobres, ainda hoje, nos dias de jejum, pedem nas portas o “meu jejum”. Eis o jejum perfeito: ele me abre para Deus e para os irmãos. Neste ponto, é enorme a insistência seja da Sagrada Escritura, seja dos padres da Igreja (os santos doutores dos primeiros séculos do cristianismo).
O gesto concreto do jejum e da abstinência deverá ser revertido em favor das obras de caridade da mãe Igreja, particularmente neste tempo da pandemia da Covid-19, que tantos recursos são necessários para atender os que mais foram golpeados pela peste. Resta-nos, agora, passar da teoria à prática. Seja nossa Quaresma rica do jejum e da abstinência, enriquecidos com o bem da caridade fraterna, da esmola, que se efetiva na atenção e preocupação ativa e concreta pelos pobres de todas as pobrezas.
Por Cardeal Orani João, Cardeal Tempesta, O. Cist., Arcebispo Metropolitano de São Sebastião do Rio de Janeiro, RJ.
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