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Patriarca Abraão: confiança contra toda esperança

Cerca de quatro mil anos nos separam do patriarca Abraão, cuja memória perdura através dos séculos e constitui um exemplo de fé e de entrega incondicional aos planos de Deus para todos os tempos. A Igreja lembra sua memória no dia 9 de outubro.

Abraão - vitral da Igreja de São Nicolau, Nérac (França) Foto: Francisco Lecaros

Abraão – vitral da Igreja de São Nicolau, Nérac (França) Foto: Francisco Lecaros

Redação (08/10/2025 16:32, Gaudium Press) Deixa tua terra, tua família e a casa de teu pai e vai para a terra que Eu te mostrar. Farei de ti uma grande nação” (Gn 12, 1-2).

Ao longo dos milênios os descendentes de Abraão repetiram incontáveis vezes essa passagem, marco inicial da vocação do grande patriarca. Também a Igreja o exalta como aquele a quem Deus confiou as primícias da sua “nação santa” (I Pd 2, 9), a porção escolhida “entre todas as outras nações da terra” (Dt 14, 2), da qual nasceria o Salvador prometido a Adão antes de ser expulso do Paraíso (cf. Gn 3, 15).

Foi ele eminentemente um homem de fé pois, à estrada retilínea da promessa e da bênção, juntou-se em sua vida o zigue-zague caprichoso da espera, das contrariedades e do aparente desmentido.

Lampejos de uma fé robusta

Utilizando-se das narrações das Sagradas Escrituras e de dados da História Universal, pode-se calcular ter Deus chamado Abraão aproximadamente entre os anos 2000 a.C. e 1850 a.C.

Originalmente chamava-se ele Abrão; era filho de Taré, da décima geração depois de Noé, da linhagem de Sem. Natural de Ur da Caldeia, transferiu-se com o pai e alguns parentes para Harã, onde ouviu pela primeira vez a voz de Deus, que o mandava deixar a família e a casa paterna.

Com prontidão ele partiu com a esposa, Sara, e o sobrinho Lot, de Harã para Canaã, levando consigo os bens que possuía e os escravos. Ali chegando, o Senhor lhe prometeu que daria aquela terra a seus descendentes. Abraão, porém, seguiu de acampamento em acampamento até o Negueb, considerando-se sempre como um estrangeiro no país.

Nota-se nessa passagem os primeiros lampejos da fé robusta do patriarca: ele deixa as comodidades do lar paterno e dirige-se a uma terra desconhecida, a qual Deus prometera apenas lhe mostrar, para dá-la não a ele, mas a seus descendentes, que, no entanto, ainda não existiam, apesar de Abraão contar já setenta e cinco anos de idade.

Pai de uma grande nação

Abraão, cuja lembrança nos faz imaginar um ancião robusto, de temperamento sereno e caráter convicto, certamente meditou muito nas palavras divinas. Entre as promessas que lhe fizera, Deus havia dito: “Farei de ti uma grande nação”.

O que significava então ser pai de uma grande nação? Pode-se erroneamente pensar que naqueles tempos longínquos só existiam nômades, como o eram Abraão e sua família, e que a humanidade não vivia senão em tendas… Nada mais equivocado.

Conforme narra o capítulo 10 do Gênesis, a respeito da posteridade de Noé, na terceira geração da linhagem de Cam nasceu Nemrod o “primeiro homem poderoso na terra” (Gn 10, 8), o qual, segundo comentaristas e historiadores, foi o iniciador da vida política ordenada e do Estado organizado autocraticamente.

De fato, bem antes da época de Abraão grandes cidades-estados já existiam espalhadas pela Mesopotâmia. A prosperidade da agricultura, impulsionada pelas invenções dos sumérios para a irrigação do solo, fomentava um constante comércio entre elas, propiciando que pequenos vilarejos se transformassem em centros urbanos cada vez mais desenvolvidos em matéria de arquitetura, escrita e economia.

Lagash, Susa, Quis, Assur, Nínive, Mari e Babilônia eram grandes, poderosas e ricas cidades, e a própria Ur já apresentava notável grau de civilização. Não menor importância tinha o Egito, governado por sua décima segunda dinastia.

Ora, quando Abraão recebeu a promessa de que dele nasceriam povos e reis, Deus lhe pediu acreditar que as nações poderosas da terra nada seriam se comparadas com a linhagem saída de suas entranhas. E pela fé ele entreviu o significado mais profundo do plano divino.

Uma certeza: os planos de Deus se realizarão

Cerca de dez anos se haviam passado, Abraão continuava a confiar; porém, como qualquer ser humano, ao meditar nas promessas recebidas agudas perplexidades certamente lhe vinham ao espírito: “Não terei me equivocado? Parecia tudo tão real… Talvez não tenha sido fiel e Deus decidiu me abandonar”. O peso dos anos aumentava, a possibilidade de gerar um filho cada vez se tornava mais improvável.

Em certa noite estrelada, talvez enquanto recordava as promessas em meio à dor da incerteza quanto à própria fidelidade, ele ouviu novamente a grave e serena voz de Deus: “Nada temas, Abrão! Eu sou o teu protetor; tua recompensa será muito grande” (Gn 15, 1). Cheio de confiança o patriarca expôs sua perplexidade, e o Senhor, “conduzindo-o fora, disse-lhe: ‘Levanta os olhos para os céus e conta as estrelas, se és capaz… […] Assim será a tua descendência’” (Gn 15, 5).

Tais palavras ressoaram no fundo de sua alma, fazendo-lhe desejar e entrever, não pelas luzes da razão, mas de modo sobrenatural, a realização dos planos divinos nos quais era gratuitamente inserido. Em seu interior passou a brilhar, como um sol, a certeza de que as promessas se cumpririam, e essa confiança tinha por arrimo apenas a fé em Deus, por ser Ele quem é e digno todo amor.

Nesse episódio se evidencia algo desconhecido – ou esquecido, por causa da infidelidade da idolatria – pelos povos antigos: o desejo do Criador de Se comunicar com os homens, concedendo-lhes graças e gerando na alma que não se opõe à sua ação uma caridade ardente. A imaginação desvairada dos filhos de Adão, pelo contrário, sempre produziu deuses tiranos, cuja rudeza e brutalidade é confirmada pelas descobertas arqueológicas.

Predição de grandes sofrimentos

Na continuação desse fato, narram as Sagradas Escrituras que o patriarca perguntou ao Senhor como saberia se possuiria aquela terra, ao que este, em reposta, ordenou-lhe que fizesse um oferecimento. Abraão preparou os animais segundo os costumes da época e foi acometido por um profundo sono, unido a um “grande pavor” (Gn 15, 12). Ao mesmo tempo uma espessa escuridão cobriu o local, pois já estava anoitecendo.

Nesse momento Deus lhe revelou que somente a quarta geração de sua descendência herdaria aquela terra, não sem antes ter passado pelo sofrimento da escravidão e da opressão durante quatrocentos anos, num lugar onde seriam considerados como peregrinos.

Para selar a aliança, “um braseiro fumegante e uma tocha ardente passaram pelo meio das carnes divididas” (Gn 15, 17), simbolizando a firmeza do juramento divino.

Ismael, o filho da escrava

Sem dúvida Abraão compartilhava com sua esposa as graças recebidas, pois ela era co-herdeira da promessa. Mas quiçá não lhe tenha narrado as provas pelas quais seus descendentes iriam passar, porque somente a almas muito chamadas e de fé convicta Deus as pode revelar inteiramente.

Talvez julgando-se culpada pelo fato de o casal não gerar uma prole, Sara entregou a escrava Agar ao esposo, para que com ela tivesse um filho. Na região onde viviam, como em todo o mundo antigo, os senhores dispunham de domínio pleno sobre os escravos, podendo deles dispor como bem entendessem. Segundo essa concepção procedeu Sara, cônscia de que, se algum filho nascesse a Agar, este não pertenceria à escrava, mas à sua senhora.

Agar de fato concebe e passa, por isso, a desprezar sua senhora… Devido a essa atitude revoltosa e igualitária, seu filho é rejeitado por Sara antes mesmo de nascer e o Senhor Se faz partícipe de tal rejeição, apesar de Abraão ter pedido pelo menino: “‘Oxalá que Ismael viva diante de vossa face!’ Mas Deus respondeu-lhe: ‘Não, é Sara tua mulher que te dará à luz um filho, ao qual chamarás Isaac. Farei aliança com ele, uma aliança que será perpétua para sua posteridade depois dele’” (Gn 17, 18-19). Deixa assim claro que o filho da promessa nascerá diretamente da esposa legítima.

Ismael recebe outra bênção do Senhor, mas não será o herdeiro da promessa.

Nasce o filho da promessa

Abraão contava noventa e nove anos quando três Anjos o visitaram e predisseram que, dentro de um ano, lhe nasceria um filho

Abraão contava já noventa e nove anos, e Sara até então não lhe havia dado um filho. Numa tarde quente, quando se encontrava sentado à porta de sua tenda, viu diante de si três homens, que na realidade eram três Anjos. Com grande zelo e hospitalidade, o patriarca pôs-se a servi-los e eles predisseram que voltariam dentro de um ano e que, por esse tempo, lhe nasceria um menino. E assim se cumpriu.

Pode-se conjecturar a alegria do casal, que soube confiar ao ser provado – durante um século! – sem esmorecer a meio caminho. Que carinhos e que afagos o menino deve ter recebido de ambos!

Os anos passariam e à imensa alegria, que ainda perdurava, se juntaria mais uma prova, quiçá a mais terrível delas…

A grande prova de Abraão

“Deus disse: ‘Toma teu filho, teu único filho a quem tanto amas, Isaac; e vai à terra de Moriá, onde tu o oferecerás em holocausto sobre um dos montes que Eu te indicar’. No dia seguinte, pela manhã, Abraão selou o seu jumento. Tomou consigo dois servos e Isaac, seu filho, e, tendo cortado a lenha para o holocausto, partiu para o lugar que Deus lhe tinha indicado” (Gn 22, 2-3).

Abraão tinha muitos motivos para julgar incoerente o pedido divino: tratava-se de um sacrifício humano, contrário à lei natural; ele deveria imolar o filho ao qual Deus havia vinculado a promessa de povoar a terra; consumado o oferecimento, Sara o consideraria, com razão, um varão que chegara à demência ou um pai assassino…

Contra toda esperança (cf. Rm 4, 18) confiou Abraão, sem manifestar qualquer inconformidade. Seus lábios sequer balbuciaram palavras para argumentar com o Senhor, como outrora fizera em favor de seu sobrinho Lot. Naquele momento crucial, quando a vida lhe apresentava a pior reviravolta e a História de toda humanidade passava por suas mãos, ele demonstrou ser um homem de fé.

Ao terceiro dia de viagem, Abraão viu ao longe o lugar indicado para o sacrifício. Deixando os servos ao pé do monte, colocou a lenha sobre os ombros do filho e prosseguiu apenas em sua companhia.

“Isaac disse ao seu pai: ‘Meu pai!’ ‘Que há, meu filho?’ Isaac continuou: ‘Temos aqui o fogo e a lenha, mas onde está a ovelha para o holocausto?’ ‘Deus’, respondeu-lhe Abraão, ‘providenciará Ele mesmo uma ovelha para o holocausto, meu filho’. E ambos, juntos, continuaram o seu caminho” (Gn 22, 7-8).

Apesar de sua fé, é impossível que no fundo do coração Abraão não sofresse por se tornar o carrasco do próprio filho. E o menino, caminhando ao lado do pai, sem dúvida foi também tocado por uma graça para compreender algo do que se passava e aceitar ser oferecido em sacrifício. Deus, que sempre Se manifestava ao patriarca como Pai e Amigo, naquele momento parecia Se ocultar…

Abraão avança. Quando tem já o filho amarrado e a faca nas mãos para o imolar, sua fé é, por fim, recompensada: “O Anjo do Senhor, porém, gritou-lhe do céu: ‘Abraão! Abraão!’ ‘Eis-me aqui!’ ‘Não estendas a tua mão contra o menino, e não lhe faças nada. Agora Eu sei que temes a Deus, pois não me recusaste teu próprio filho, teu filho único’” (Gn 22, 11-12). Levantando os olhos ele vê, num arbusto ao lado, um cordeiro preso pelos chifres e o oferece no lugar de Isaac.

Em recompensa por sua fé, Deus muda as promessas em perene aliança, por meio de um juramento: “Pela segunda vez chamou o Anjo do Senhor a Abraão, do céu, e disse-lhe: ‘Juro por Mim mesmo, diz o Senhor: pois que fizeste isto, e não Me recusaste teu filho, teu filho único, Eu te abençoarei. Multiplicarei a tua posteridade como as estrelas do céu, e como a areia na praia do mar. Ela possuirá a porta dos teus inimigos, e todas as nações da terra desejarão ser benditas como ela, porque obedeceste à minha voz’” (Gn 22, 15-18).

Bem podemos cogitar ter sido nesta ocasião que se deu o fato aludido por Nosso Senhor Jesus Cristo, em diatribe com os fariseus: “Abraão, vosso pai, exultou com o pensamento de ver o meu dia. Viu-o e ficou cheio de alegria” (Jo 8, 56). Que graça imensa poder vislumbrar o próprio Deus feito Homem habitando nesta terra, prever sua Paixão, Morte e Ressurreição, conhecer no próprio filho, Isaac, uma de suas pré-figuras!

Abraão viveu num mundo pagão, que em tudo negava a existência de Deus, tal como nos dias atuais. Entretanto, o Senhor quis condicionar à sua fé a vinda de Nosso Senhor Jesus Cristo ao mundo, e ele correspondeu aos anseios divinos.

Ora, também nós recebemos uma promessa do Céu, proferida pelos lábios da Santíssima Virgem: “Por fim, o meu Imaculado Coração triunfará!” Após contemplar a história do grande patriarca, duvidaremos ainda do cumprimento destas palavras e, em consequência, da vitória de Jesus por meio de Maria?

Por Ir. Lucilia Lins Brandão Veas

Texto extraído, com pequenas adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n. 286, outubro 2025.

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