Gaudium news > O que pode resolver o problema das enchentes?

O que pode resolver o problema das enchentes?

Nenhuma lama é capaz de soterrar a bondade, a solidariedade e a força de algumas pessoas.

Foto: Divugação, Vatican News

Foto: Divugação, Vatican News

Redação (05/06/2022 08:30, Gaudium Press) Recentemente, andando pelas ruas da cidade onde moro, deparei com algo muito interessante. A prefeitura iniciou uma obra destinada à vacinação e castração de cachorros de rua. Como normalmente acontece às obras públicas, essa foi começada; quando será acabada, só Deus pode saber. Enfim, na parte frontal do terreno, os operários fizeram um recuo na área que servirá de estacionamento. Arrancaram a grama e cobriram com uma grossa camada de asfalto.

broto asfaltoAo passar pelo local, algo pitoresco chamou a minha atenção. Era cedo ainda e, no meio do asfalto, um singelo brotinho de grama reluzia à luz da manhã. Você pode estar se perguntando o que pode haver de pitoresco em um broto de grama. Nada, além do fato dele ter nascido bem no meio do asfalto.

Aquela imagem, sobretudo pela luz refletida nas pequenas folhinhas, naquela manhã fria, chamou muito a minha atenção e não pude resistir em fotografar a inusitada ousadia daquele vegetal.

Crítica “construtiva”

Chegando em casa, decidi escrever um artigo tendo o brotinho de grama como mote. Com o título “Quem quer dá um jeito, quem não quer dá uma desculpa”, escrevi sobre a força de vontade e o empenho das pessoas que conseguem enfrentar qualquer tipo de situação e aquelas que sempre reclamam de tudo e se esquivam de qualquer atitude que lhes dê trabalho. Permitam-me mencionar o fechamento do artigo:

“As pessoas determinadas, quando querem alguma coisa, não há piche que as paralise, não há obstáculo que as faça recuar. Já aquelas que não querem nada com nada vão sempre arranjar uma desculpa, mesmo quando, sobre elas, em vez de uma camada de asfalto, pouse apenas um fino, leve e quase imperceptível véu de filó. Com pessoas assim, nem adianta insistir, porque, para elas, tudo é difícil, complicado, sem saída, melhor deixar pra lá. A foto é muito simples, mas merece ser posta num quadro pelo seu enorme significado: um exemplo explícito de superação e fé.”

Quando escreve um artigo ou um livro, o autor semeia palavras ao vento e não sabe o efeito que elas terão sobre quem as lerá. Só muito eventualmente fica sabendo se aquilo agradou a uns ou desagradou a outros. Mas, no caso desse artigo, em especial, alguém resolveu me escrever, uma socióloga minha conhecida, que não vejo há anos. Primeiro, ela mandou uma mensagem perguntando se eu aceitava uma crítica construtiva e, diante da minha afirmativa, destilou o seu fel (críticas “construtivas” normalmente são assim, por isso ela perguntou antes…)

“Quem quer dá um jeito é um bordão do senso comum. Muitas pessoas tentam dar um jeito, mas as condições ao seu redor não permitem. Deixar na mão do indivíduo o seu sucesso nos remete ao neoliberalismo e a ausência do Estado para prover melhores condições à todos (sic)”. Não se usa crase antes de palavras masculinas (todos), e também faltou antes da palavra “ausência”, mas, como ela é professora de Sociologia e não de Língua Portuguesa, perdoei.

Desconstruindo um argumento sociológico

enchenteAceitei receber a “crítica construtiva” e acredito que ela também tenha aceitado receber a minha resposta, talvez um pouco menos “construtiva”, desconstruindo o seu frágil e batido argumento sociológico de que o Estado é o único responsável pela solução de todas as mazelas de nossa vida. O Estado jamais proverá melhores condições a todos, quiçá a uma pequena parte da população, nem mesmo o Estado Socialista proposto por Marx, seu autor de predileção.

Decidi usar isso como gancho para falar sobre as terríveis enchentes que causam tantas mortes e destruição em nosso país e em várias outras partes do mundo, porque, diante desse tipo de calamidade, o que mais se ouve é que a culpa é dos governos, que os políticos deveriam fazer alguma coisa e a mesma cantilena de sempre, ano após ano, chuva após chuva.

Os governos deveriam fazer alguma coisa? Claro que deveriam, não apenas alguma coisa, mas muitas coisas! Que verbas são desviadas para projetos inúteis, muitos dos quais jazem inacabados – o que espero que não ocorra com o centro de zoonoses que nossa prefeitura começou e ainda está lá, até o momento útil apenas para a sobrevivência de um persistente broto de grama e para a minha inspiração – é coisa que estamos cansados de saber. Que políticos só sobrevoam áreas impróprias para a habitação, com condições sub-humanas de sobrevivência em época de tragédia – isso quando se dá ao trabalho de fazê-lo, o que nem sempre acontece fora de anos de eleição – é algo que também sabemos.

O que pode resolver o problema das enchentes? Fazer com que não chova, com que os rios não transbordem e as encostas não cedam não está em nossas mãos, mas, desenvolver políticas de habitação e saneamento adequadas e oferecer condições reais e acessíveis para que as pessoas possam morar em locais que ofereçam menos riscos é uma necessidade premente e isso está, sim, nas mãos dos governantes. Mas, que isso vá acontecer da maneira responsável e em tempo hábil para evitar novas tragédias, como a do Recife, que em poucas horas ceifou mais de cem vidas, é algo difícil de acreditar.

Governo nenhum, de lugar nenhum do mundo, mesmo dos países considerados mais desenvolvidos resolverá todos os nossos problemas, porque, conquanto façamos parte de um todo, um povo, um grupo, uma população, somos indivíduos, e a maioria das grandes questões de nossas vidas precisam ser resolvidas no âmbito pessoal. E é escolha nossa, sim, por mais que isso desagrade aos pensadores de massa, lutar para que os frágeis brotos de nossa determinação rompam a camada de asfalto ou aceitar que o piche, a terra, a poeira, a nuvem, ou seja lá o que for, nos encubra e faça de nós pessoas que só sabem reclamar, culpar os outros e arrumar desculpas para não agir, não mudar, não viver.

A lição das enchentes

Foto: Divulgação/ Arte Portal de Prefeitura

Foto: Divulgação/ Arte Portal de Prefeitura

A grande lição que as enchentes nos ensinam não é a de que não devemos morar em barrancos e encostas ou na beira de rios; não é a de que o governo não se preocupa verdadeiramente com algo mais além de nossos votos; não é a de que não temos controle sobre os fenômenos da natureza e que as chuvas fortes podem matar muita gente. A maior lição que aprendemos com as enchentes é sobre a bondade, a solidariedade e a força de algumas pessoas que lama nenhuma é capaz de soterrar.

Costumamos ouvir que homens não choram, mas, a condição de ser homem não impede as lágrimas de banharem meus olhos diante de algumas situações. Se pudesse, nunca assistiria a nenhum jornal e nunca leria nenhuma notícia triste, mas, não posso. Faz parte do meu trabalho estar atento a tudo o que acontece, por isso, relatos sobre essa tragédia do Recife precisaram ser acompanhados. E, como ser humano, eu me comovi. Ver o desespero de pessoas que perderam tudo o que construíram com tanto sacrifício, as suas casas, os seus móveis, os seus documentos, as suas lembranças, e muitas, os seus entes amados é desolador.

Foto: Dondinho/PCR

Foto: Dondinho/PCR

Porém, o que mais me comoveu nesta catástrofe não foram os desabamentos, as toneladas de lama, a água invadindo as casas até o telhado. O que me fez chorar foi a entrevista com uma senhora muito simples, com um lenço amarrado na cabeça, ao lado de um panelão de sopa que ela preparava para alimentar centenas de pessoas desabrigadas. Ela chorou quando foi entrevistada e disse que ficaria ali o tempo que fosse necessário, aumentando a sopa na panela para as pessoas que fossem chegando.

E ela não foi a única. Além dos bombeiros de três estados e dos soldados do Exército, surgiram pessoas de todos os lados. Ontem vi a entrevista de um rapaz que veio de longe para ajudar a família de um amigo e já estava, há cinco dias, ajudando desconhecidos. Vi uma senhora que apareceu de manhãzinha, na quinta-feira, com uma grande quantidade de cuscuz, para matar a fome não apenas dos desabrigados, mas também dos socorristas e voluntários.

Pessoas levaram água, marmitas, roupas, cobertores, fraldas, remédios. Voluntários vestidos de palhaços foram brincar com as crianças e muita gente ofereceu braços, ombros, ouvidos, acolhida, respeito, aconchego. E isso me fez lembrar de uma outra pessoa conhecida, que não me envia “críticas construtivas”, mas o Evangelho do Dia, todas as manhãs. Afinal, cada um dá daquilo que tem…

Dedicação ao próximo

Como ela envia o comentário do Evangelho bem cedinho, já se tornou um hábito aqui em casa a preparação do café assistindo ao vídeo carinhosamente preparado pelos Arautos do Evangelho e amorosamente enviado por essa amiga da família. E na terça-feira, ficamos muito tocados com as palavras do Pe. Lucas Garcia, quando narrou a visita de Nossa Senhora à sua prima Santa Isabel; como ele disse “um gesto carregado de ensinamentos para todos nós”.

E vou terminar este artigo com as sábias palavras proferidas pelo padre, mas gostaria de dizer algo muito importante: mesmo quando seja muito difícil agir, mesmo quando a sua vida estiver muito complicada, mesmo que você estiver em seu leito de morte, ainda assim, você pode vencer todos os obstáculos e fazer alguma coisa para ajudar ao seu irmão, mesmo que essa ajuda seja simplesmente uma oração e, ainda que a situação seja tal que você nem consiga encontrar palavras ou esteja, por algum motivo, privado de falar, basta que você dirija a Deus apenas o seu olhar, pensando em quem precisa da sua ajuda e o resto, Ele fará, assim como ouviu, no coração da terra, o desejo daquele brotinho de grama de encontrar a luz do sol, e o ajudou a vencer a espessa camada de asfalto.

“Nossa Senhora nos ensina que ainda quando, por graça de Deus, por um benefício, por uma escolha gratuita de Deus, estejamos colocados num patamar elevado, ainda quando tenhamos sido objetos de graças insignes e extraordinárias, ainda quando nós tenhamos sido colocados por Deus no mais alto de uma situação, sobretudo quando isso acontece, devemos ser aqueles que mais se dedicam aos outros.” (Pe. Lucas Garcia, EP)

Por Afonso Pessoa

 

 

Deixe seu comentário

Notícias Relacionadas