O “Nobre Ofício”
Segundo certa mentalidade em vigor hoje, felicidade se identificaria com riqueza e prazer. Mas tempo houve em que o homem não pensava assim. E era feliz…
Redação (03/11/2020 09:08, Gaudium Press) O tema deste artigo é um “nobre ofício”. Qual será ele? Seguramente — pensará algum leitor — o exercício de alguma elevada função na Corte Britânica. Ou, quem sabe, um cargo de grande responsabilidade no Vaticano, ou em alguma prestigiosa universidade, como a Sorbonne ou Coimbra…
Nada disto! De que se trata, então?
Caro leitor, permita-me ajudá-lo. É algo que vem do passado, de um passado cristão. O “Nobre Ofício” era o título dado aos… sapateiros ingleses na Idade Média!
Efetivamente, os trabalhadores manuais da corporação dos sapateiros ufanavam-se, não somente da qualidade de seus produtos, mas também do próprio ofício que exerciam. A ponto de eles mesmos o designarem de o “Nobre Ofício”.
Não era fácil, porém, ser admitido na confraria. Para ser aceito como participante do “Nobre Ofício”, não bastava ser bom profissional. Era preciso também saber “cantar, tocar corneta de chifre, tocar flauta, manejar a lança, combater com espada, descrever em versos seus instrumentos de trabalho”.
A corporação de sapateiros ingleses, como inúmeras outras existentes na Europa medieval, era inteiramente independente do poder estatal, inclusive do Rei. Tinham essas corporações suas leis próprias, seus costumes, seus juízes — os “mestres juramentados” — que impunham sanções àqueles que se comportavam mal ou que, por suas trapaças, desprestigiavam a profissão.
Sobretudo, tinham seus capelães, seus santos padroeiros, suas igrejas, suas festas e procissões. Uma de suas principais preocupações era que todos os irmãos da confraria fossem bons cristãos.
Até hoje, por exemplo, pode-se ver, na maravilhosa Catedral de Chartres (França), os vitrais de extraordinária beleza oferecidos pelos padeiros, pelos pescadores, pelos vinhateiros, ao lado dos que foram doados pela Rainha Branca de Castela, mãe do Rei São Luís.
O costume, impregnado de caridade cristã, fazia com que os confrades do “Nobre Ofício” se ajudassem mutuamente, em qualquer lugar onde se encontrassem. Podiam uns ser do norte, outros do sul, mas estavam todos unidos por um vínculo religioso que os levava a auxiliarem-se nas circunstâncias adversas.
Patrões, trabalhadores, aprendizes, cada qual conservando sua posição, se ajudavam, se protegiam e se estimulavam a progredir na vida cristã e… na qualidade dos sapatos que produziam.
Por exemplo, os “mestres juramentados” — em geral, os sapateiros mais idosos — repreendiam severamente o patrão que não cuidava da virtude de seus aprendizes, ou que prejudicava os fregueses pela má qualidade dos sapatos produzidos.
Ao mesmo tempo, prestavam auxílio aos irmãos em situação de crise nos negócios, às viúvas e aos órfãos dos sapateiros falecidos. Todos os ofícios da sociedade medieval estavam organizados da mesma forma. Constituíam verdadeiras irmandades dentro da sociedade civil, nas quais circulava a seiva do Evangelho.
Ufanavam-se de suas obras de caridade. Por exemplo, os ourives de Paris conseguiram licença para, um de cada vez, abrirem a loja nos domingos e dias festivos. O lucro obtido nesses dias destinava-se a oferecer uma refeição aos pobres no domingo de Páscoa.
“Quem abre sua loja nesses dias, deposita na caixa da confraria tudo quanto ganhou (…) e, com esse dinheiro, se paga uma refeição para os pobres do Hospital de Paris, no dia de Páscoa de cada ano”.
Tudo isso era feito numa atmosfera de concórdia e alegria difícil de se entender em nossos dias. Nas festas da cidade, as corporações desfraldavam suas bandeiras durante os desfiles solenes, disputando a preeminência.
Constituíam elas pequenos mundos extraordinariamente dinâmicos, ativos e, sobretudo, cristãos, que davam à cidade seu impulso e sua fisionomia característica.
Eis um pitoresco fato ilustrativo de como se passavam as coisas quando o espírito da Santa Igreja Católica impregnava a sociedade civil.
O sapateiro Tom Drum encontrou-se em viagem com um jovem nobre arruinado e o convidou a ir com ele a Londres.
— Eu pago as despesas, e em Londres nos divertiremos muito.
— Pagas como?! Pensei que toda a tua fortuna não passasse de alguns centavos… — objetou o fidalgo.
Respondeu Tom Drum:
“Explicar-te-ei. Se fosses sapateiro como eu, poderias viajar de um extremo a outro da Inglaterra com apenas um centavo no bolso. Em cada cidade, encontrarias alojamento, comida e bebida, e nem sequer precisarias gastar teu único centavo. Os sapateiros não gostam de ver que falta algo a qualquer de seus colegas. Nosso regulamento estabelece o seguinte: se chega a uma cidade um companheiro sem pão nem dinheiro, basta-lhe apresentar-se. Não precisará preocupar-se, pois os sapateiros da cidade o receberão bem e lhe darão hospedagem e comida grátis. E se quiser trabalhar, a corporação tratará de arranjar-lhe emprego, ele não terá preocupações”.
São outros tempos, é verdade, – pensaríamos nós – algo que não existe mais. No entanto, se as pessoas tivessem os olhos postos em Deus e na eternidade, os costumes mudariam e a realidade seria bem outra. Com efeito, a verdadeira alegria não está em exercer algum ofício para acumular riquezas e desfrutá-las egoisticamente, mas, sim, em se preocupar e em ajudar o próximo. Em todos nossos trabalhos, favorecendo a prática da virtude nos outros, estaremos construindo uma sociedade santa, auxiliando-os a alcançar a Pátria celeste. Deste modo, todo ofício seria “nobre”.
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n.23 novembro 2003.
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