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O homem foi feito para Deus, e não Deus para o homem

A ridícula interpretação farisaica da Lei de Moisés evidencia o erro, de funestas consequências, que o homem comete quando substitui Deus pelas criaturas.

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Redação (01/06/2024 17:02, Gaudium Press) Há um determinado momento na vida em que diante de nós se abrem dois caminhos: transformar em ídolo aquilo que é relativo, seja a carreira, o dinheiro, o relacionamento social, ou abraçar o Absoluto verdadeiro, que é Deus, confessando nossa contingência em relação a Ele. Eis o que mantém a saúde da alma, e inclusive a física…

No campo sobrenatural, quanto mais eu amo, mais meu apetite se dilata, até atingir dimensões inimagináveis. Assim se passou com Nossa Senhora, em quem o incêndio de amor divino já não tinha proporção com esta Terra, e Ela passou desta vida para a outra.

No extremo oposto, quando alguém retira Deus do centro de suas cogitações e de seu afeto, e toma uma criatura como absoluto, perde o equilíbrio; o coração fica insensível para Deus, a inteligência se embota e a pessoa se aplica unicamente ao que há de concreto e material. A gula insaciável de glória, de satisfazer a vaidade pessoal, de chamar a atenção sobre si, de governar, de ser louvado e aplaudido, ao mesmo tempo que proporciona uma felicidade fracionária, acaba por introduzir na alma um princípio de enfermidade espiritual que, cedo ou tarde, redundará em frustração. Acontecer-lhe-á como a São Pedro ao caminhar sobre o mar: por pensar em si começou a afundar nas águas agitadas (cf. Mt 14, 30).

Eis o que veremos refletido no Evangelho do 9º Domingo do Tempo Comum, na atitude dos fariseus em face de Nosso Senhor Jesus Cristo. Eles se preocupavam com a Lei e se esqueciam de olhar para Deus, diante de quem estavam! Por quê? Porque o cumprimento dos preceitos os favorecia, já que lhes garantia um status e dava base para serem os primeiros da sociedade. Por conseguinte, não era sequer a Lei o que colocavam no centro, e sim a eles próprios! É um caso típico de absolutismo espiritual que Jesus vai castigar, usando com violência sua divina palavra.

Adorar o sábado ou adorar o Senhor no sábado?

“Jesus estava passando por uns campos de trigo, em dia de sábado. Seus discípulos começaram a arrancar espigas, enquanto caminhavam” (Mt. 2,23).

O Evangelho nos apresenta a cena poética de Nosso Senhor Jesus Cristo andando por um trigal com os Apóstolos, estando estes em situação de necessidade: não tinham víveres. O Divino Mestre deslocava-Se de uma aldeia a outra, pregando e curando todos, e seus discípulos, como estavam constantemente em torno d’Ele, sendo formados na sua escola, viam-se rodeados pela multidão e não tinham tempo sequer para comer (cf. Mc 3, 20; 6, 31). Para quem viajava a pé era difícil levar provisões e, às vezes, eles esqueciam-se deste cuidado (cf. Mc 8, 14).

Nessas circunstâncias era legítimo — e até permitido pela própria Lei —, ao atravessar uma plantação, servir-se de algo com moderação, sem causar prejuízo ao dono da propriedade. Se fosse uma seara de trigo, podiam-se colher as espigas sem usar a foice e debulhá-las com a mão (cf. Dt 23, 25-26). Habitualmente consumido no Oriente Médio, o trigo integral e cru é um alimento completo, pois possui substâncias que são perdidas ao se produzir a farinha branca. Mastigar aqueles grãos aliviava um pouco o tormento da fome e dava vigor suficiente para prosseguir no caminho, percorrendo muitos quilômetros.

Diante de Cristo, a antipatia ou o desejo de seguir…

Então os fariseus disseram a Jesus: “Olha! Por que eles fazem em dia de sábado o que não é permitido?” (Mt. 23,24)

O sábado, como consta na primeira leitura (Dt 5, 12-15) deste domingo, era um dia santo, ou seja, “dedicado ao Senhor” (Dt 5, 14), e por isso todo israelita devia descansar e abster-se de trabalhar. Entretanto, os fariseus e escribas tinham acrescentado diversas normas que não constavam na Lei de Moisés, entre as quais a proibição de 39 tarefas.[1] Enquanto a Lei ordenava o repouso no sétimo dia, “mesmo quando for tempo de arar e de ceifar” (Ex 34, 21), para os rígidos critérios rabínicos colher umas poucas espigas ou até uns poucos grãos já significava violar o sábado.[2]

Vendo os Apóstolos fazerem isso, os fariseus ficaram horrorizados, quando, na realidade, aquele procedimento era inteiramente normal. No fundo, a dificuldade deles tinha uma origem bem anterior a estes fatos e não era contra os discípulos, mas sim contra o Mestre… Ao acusá-los, criticavam a Ele — apesar de não terem coragem de dizê-lo diretamente —, insinuando que precisaria tomar medidas para que seus seguidores não cometessem tal infração.

Ódio irreconciliável entre o bem e o mal

Não nos enganemos: quando nos determinamos a fazer o bem, alguns agradecerão — de modo fraco, o mais das vezes… — e outros nos odiarão, com uma virulência muito maior, comparativamente, do que o reconhecimento dos primeiros. Qual a razão deste ódio?

Pensemos em Nosso Senhor: não era por ter curado o homem da mão seca ou porque violasse o sábado que os fariseus e os herodianos queriam matá-Lo. Tal era sua divina ação de presença que, ao manifestar-Se em público, Ele dividia os campos. Quem aceitava as graças de fé por Ele trazidas, acreditava logo; quem as rejeitava, odiava-O também imediatamente.

Com efeito, sempre que alguém levanta uma objeção contra o bem demonstra ser condescendente em relação ao mal, e a quem entra pelas sendas do mal ninguém pode compreendê-lo… Mistério da iniquidade! Neste ódio irreconciliável há um pecado contra o Espírito Santo — impugnar a verdade conhecida[3] — que “jamais terá perdão” (Mc 3, 29). É uma rejeição total à Verdade, à Bondade, à Misericórdia em essência, isto é, a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, e, portanto, ódio a Deus. Diante desta má vontade, de nada adiantam os argumentos lógicos, nem o magnífico éclat da virtude consegue convencer.

Ora, o que acontece a Nosso Senhor e à sua Esposa Mística também se repete com os que Lhes pertencem pelo Batismo: o mundo verá em nós um raio da divindade de Cristo e, ainda hoje, Ele produzirá irritação nos que não creem e entusiasmo nos que creem. Como o próprio Jesus proclamou, Ele veio selecionar e escolher, salvar e santificar (cf. Mt 10, 34-35; Lc 10, 16). Ele continua sendo pedra de escândalo até a consumação dos tempos.

Na luta pelo bem, saibamos lidar com o mal

No Evangelho deste 9º Domingo do Tempo Comum, Nosso Senhor mostra como aqueles que tomam o partido do bem têm de ser sábios, espertos e sagazes, e nunca devem cochilar para não cair nas ciladas do mal; ao contrário, devem deixá-lo sempre em má situação. Eis uma lição a ser imitada! Aprendamos a lidar com o mal como o Divino Mestre, entendendo que ele é um adversário irredutível, capaz de chegar às últimas consequências, isto é, levar-nos ao martírio, como a Jesus.

Quando formos incompreendidos e perseguidos por amor à justiça, saibamos aceitar com resignação e alegria, pois nos aproximamos de Nosso Senhor. Ante a dureza de coração dos fariseus, Ele demonstrou ira e tristeza. Tal deve ser, exatamente, a nossa postura de alma: indignação contra o delírio de opor-se a Deus e pena que nos inspire a rezar pelos que nos perseguem.

Extraído, com alterações, de:

CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O inédito sobre os Evangelhos: comentários aos Evangelhos dominicais. Città del Vaticano-São Paulo: LEV-Instituto Lumen Sapientiæ, 2014, v. 4, p. 123-141.


[1] Cf. SHABAT. M 7, 2. In: BONSIRVEN, SJ, Joseph. (Ed.) Textes rabbiniques des deux premiers siècles chrétiens. Roma: Pontificio Istituto Biblico, 1955, p.160.

[2] Cf. SHABAT. C.VIII, 10a. In: GUGGENHEIMER, Heinrich Walter (Ed.). The Jerusalem Talmud. Second order: Mo‘ed. Tractates Šabbat and ‘Eruvin. Berlin-Boston: W. de Gruyter GmbH & Co. KG, 2012, p.272.

[3] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., II-II, q.14, a.2.

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