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Nota doutrinal Una Caro: um texto necessário escrito em termos desnecessários

Una Caro reafirma a verdade sobre o matrimônio cristão com beleza, mas por vezes com excessos literários que obscurecem seu alcance pedagógico.

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Redação (26/11/2025 09:51, Gaudium Press) A nota doutrinal Una Caro: Elogio à monogamia, publicada pelo Dicastério para a Doutrina da Fé em 25 de novembro, chegou em um momento em que a monogamia parece estar perdendo espaço no cenário global. Ao mesmo tempo em que cresce no Ocidente a aceitação pública de arranjos afetivos não monogâmicos — frequentemente rotulados como “poliamor” —, continuam a existir, sobretudo na África e em partes da Ásia, contextos sociais em que a poligamia é um dado estrutural. É nesse entrelaçamento de desafios culturais tão distintos que a nota se situa, buscando oferecer uma defesa positiva da monogamia e também uma orientação pastoral para realidades multiculturais. Embora tenha grande valor teológico, o excesso de elementos culturais e literários na nota, mesmo sendo interessante, pode afastar a atenção do que realmente importa. O texto nasce em um contexto necessário, mas sob um formato desnecessário.

A força inicial do documento é inegável. Ele reafirma com clareza que a monogamia não deve ser vista apenas como o oposto da poligamia, mas como expressão positiva do plano divino para o matrimônio. A Catholic News Agency, CNA, destaca justamente esse caráter afirmativo, apontando que a nota apresenta a monogamia como um bem em si, não apenas como uma norma restritiva. Essa perspectiva se apoia de maneira sólida na antropologia personalista de São João Paulo II, que recorda que somente a reciprocidade exclusiva entre duas pessoas garante que cada um seja tratado como sujeito e nunca como objeto. Em uma cultura que frequentemente reduz relacionamentos à utilidade emocional ou sexual, essa afirmação assume valor profundamente contracultural e evangélico.

O documento também sublinha que a defesa da monogamia é inseparável da defesa da dignidade da mulher, o que tem particular importância em contextos em que a poligamia é socialmente legitimada. A CNA aponta que o texto evidencia como a unidade matrimonial protege a mulher da vulnerabilidade moral, afetiva e econômica. Este é um ponto pastoral de enorme relevância, especialmente em regiões onde a primeira esposa é frequentemente a mais exposta ao sofrimento silencioso.

Apesar desses acertos, Una Caro também apresenta tensões e fragilidades metodológicas, perceptivelmente analisadas pelo site The Pillar. O documento tem ambições vastas: pretende falar ao Ocidente e à África, responder ao poliamor e à poligamia, instruir bispos, inspirar jovens, orientar casais, percorrer a Bíblia, a Tradição, a filosofia europeia, a poesia americana, reflexões indianas, e até textos legais hindus. A intenção é construir um panorama rico, quase um mosaico multicultural do ideal monogâmico. Porém, a amplitude dessa abordagem compromete, em alguns trechos, a clareza própria de um texto doutrinal.

The Pillar observa que o documento percorre rapidamente a Sagrada Escritura — do Gênesis ao simbolismo nupcial paulino — e depois atravessa dois milênios de tradição patrística, medieval e moderna, mencionando desde São João Crisóstomo até Rahner, passando por Santo Agostinho, São Boaventura e Santo Afonso. O problema não é a ortodoxia dessas referências, mas o ritmo acelerado. Temas fundamentais são tratados de modo tão breve que correm o risco de parecer apenas um inventário de citações. O mesmo ocorre com as incursões filosóficas: Kierkegaard, Levinas, Sertillanges e Maritain. A variedade é impressionante, mas por vezes parece desproporcional à função pedagógica de uma nota doutrinal, que deveria iluminar, mais que deslumbrar.

Ainda mais controversa é a incursão estética do documento na poesia. A presença de Whitman, Neruda, Tagore e Dickinson pode ser culturalmente interessante, contudo The Pillar nota que isso pode confundir o leitor quanto ao propósito da nota. A Doutrina da Fé não tem como missão compor antologias literárias. Mesmo que essas referências ofereçam metáforas úteis, elas também correm o risco de transformar uma reflexão doutrinal em um ensaio. A doutrina não precisa de ornamentos literários para ser bela; sua força está na verdade revelada.

O capítulo que estende o debate à Índia, mencionando textos como o Thirukkural e o Manusmṛti, é intelectualmente curioso, mas novamente parece ambicioso demais para um documento que deveria ter foco pastoral. A intenção é demonstrar que a monogamia é um ideal presente em culturas diversas, e isso é antropologicamente correto. Porém, a multiplicidade de fontes e o tom panorâmico podem diluir a clareza necessária num momento em que a Igreja enfrenta confusões doutrinais e pressões sociais que exigem linguagem direta e luminosa.

Apesar disso, a parte final do documento — conforme ressaltado por The Pillar —oferece maior lucidez. Ali emergem os conceitos de “pertencimento mútuo” e “caridade conjugal”, que sintetizam de modo acessível e teologicamente consistente toda a reflexão anterior. Fica claro que o matrimônio cristão é uma união totalizante, exclusiva, ordenada ao bem integral dos esposos e aberta à vida. Essa síntese é, sem dúvida, a porção mais pedagógica, mais magisterial e mais pastoralmente útil de toda a nota. É significativo que o próprio Cardeal Fernández recomende que os leitores iniciem por essa parte, o que demonstra certa consciência interna de que o restante pode ser excessivamente denso para muitos destinatários.

Os analistas de The Pillar frisam ainda que a cooperação entre o Dicastério e os bispos africanos é um elemento novo e positivo, especialmente após as tensões causadas por Fiducia Supplicans. A participação africana reforça o caráter universal da reflexão, evitando o risco de uma visão eurocêntrica. No entanto, a tentativa de responder simultaneamente ao poliamor ocidental e à poligamia africana parece deixar alguns pontos sobrepostos demais. A poligamia africana, marcada por estruturas sociais e econômicas, é distinta do poliamor hipermoderno, frequentemente ligado ao individualismo e à busca de satisfação emocional imediata. Colocar esses fenômenos sob o mesmo guarda-chuva conceitual é arriscado do ponto de vista analítico e pastoral.

Em seu conjunto, Una Caro é um documento valioso, necessário e doutrinariamente sólido. A CNA está correta ao apontar que se trata de uma afirmação oportuna da visão católica sobre a união exclusiva e permanente entre homem e mulher. No entanto, seguindo a observação de The Pillar, a nota parece às vezes indecisa sobre seu objetivo: ora fala como documento magisterial, ora como ensaio literário, ora como manual pastoral, ora como panorama filosófico comparativo. O resultado é uma obra de grande riqueza, mas que teria sido mais eficaz se tivesse sido mais concisa, mais direta e menos ornamentada.

A verdade sobre o matrimônio cristão continua clara: unidade, exclusividade, abertura à vida, doação total e mútua. Una Caro reafirma essa verdade com beleza, mas por vezes com excessos literários que obscurecem seu alcance pedagógico. Em um tempo em que a cultura confunde amor com consumo afetivo, a Igreja precisa falar com a autoridade simples de quem anuncia a verdade. A nota cumpre esse papel — todavia poderia cumpri-lo ainda melhor se confiasse mais na força da doutrina e menos na ornamentação cultural que, embora interessante, pode desviar o olhar do essencial. 

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