Nesta Quaresma, por que não jejuar da hipocrisia?
Tudo o que se pode esconder dos olhares humanos, não escapa à visão divina que perscruta nossas intenções.
Redação (04/03/2025 17:11, Gaudium Press) Ao longo do ano, a Santa Igreja conduz sabiamente os seus fiéis através dos riquíssimos ritos que ornam a liturgia. Durante o Tempo da Quaresma, iniciado na Quarta-Feira de Cinzas, omite-se a recitação do “Aleluia” e do “Glória”, a ornamentação do recinto sagrado torna-se sóbria e a tonalidade roxa das vestes litúrgicas convidam-nos à consideração dos nossos pecados e de como Nosso Senhor quis sofrer para os redimir. Nada mais pungente e comovedor do que ver Filho de Deus, o cordeiro sem mancha, o Inocente por excelência assumir sobre si o pesado fardo de nossas culpas e morrer tragicamente no alto do madeiro.
Duplo simbolismo das cinzas
Dentre os ritos quaresmais mais eloquentes destacam-se as cinzas impostas na fronte dos fiéis neste dia, as quais evocam um duplo significado: Como já comentado em artigos anteriores,[1] sendo o resultado da queima dos ramos utilizados no Domingo de Ramos no ano precedente, as cinzas demonstram “a futilidade das glórias deste mundo, voláteis como a cinza que o vento leva e efêmeras como os louvores dados ao Salvador ao entrar em Jerusalém, logo mudados em gritos de condenação”. Além do que elas recordam a origem e o fim do ser humano: Memento homo quia pulvis es et in pulverem reverteris – Lembra-te homem, que és pó e ao pó hás de voltar.
Já imersos no profundo ambiente reflexivo da Quaresma voltemos nossa atenção para um ponto indispensável, a fim de vivermos retamente este período de oração, jejum e penitência.
A hipocrisia do coração
“Ficai atentos para não praticar vossa justiça na frente dos homens só para serdes vistos por eles. Caso contrário, não recebereis a recompensa do vosso Pai que está nos céus. Por isso, quando deres esmola, não toques a trombeta diante de ti, como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem elogiados pelos homens. Em verdade vos digo, eles já receberam a sua recompensa”. (Mt 6,1-2)
No Evangelho desta Quarta-feira de Cinzas, o Salvador alerta sobre o perigo da hipocrisia do coração, defeito oculto e aparentemente imperceptível que conduz muitas almas à perdição.
Conta-se que, na vida de São Bruno, um fato sobrenatural marcou definitivamente sua conversão: em Paris, durante a segunda metade do séc. XI, um renomado professor, de vida aparentemente exemplar, veio a falecer. Segundo o costume, o corpo do defunto foi levado à escola a fim de serem-lhe prestadas honras funerárias. Porém, no momento em que os presentes se aproximaram do féretro para conduzi-lo à Igreja, o morto sentou-se e com voz forte e terrível exclamou: “Por justo juízo de Deus, fui acusado!”
O espanto apoderou-se da turba e foi impossível retomar a cerimônia, sendo preciso adiá-la para a manhã seguinte. Como a notícia se espalhasse, o número de assistentes crescera. Novamente, ao tentarem levar o féretro, o defunto ergueu-se mais uma vez e gritou: “Por justo juízo de Deus, fui julgado!”
Como na vez anterior, o enterro precisou ser novamente postergado. Chegado o terceiro dia, grande parte da população da cidade acorrera à cerimônia. Depois que todos os preparativos estavam prontos, o morto levantou-se como nas duas vezes anteriores e bradou com uma voz tristíssima: “Por justo juízo de Deus, fui condenado!”
Entre os assistentes, contava-se o Mestre Bruno, ilustre professor de Teologia e cônego da Igreja de Reims. Ele pôde comprovar com os próprios olhos qual a recompensa destinada aos hipócritas, àqueles que praticam a “justiça” a fim de serem contemplados pelos homens.
Tomado de consternação, São Bruno resolveu abandonar as glórias mundanas e levar uma vida de austeridade e recolhimento, fundando pouco depois a ordem dos Cartuxos.[2]
Podemos nos perguntar de que adiantou àquele condenado levar uma vida dupla. Tudo o que se pode esconder dos olhares humanos não escapa à visão divina que perscruta as mais profundas intenções.
Criai em mim um coração que seja puro
Por isso suplica o salmista: “Criai em mim um coração que seja puro”.
Neste período de penitência, temos a obrigação de examinarmos nossa consciência para saber a quantas andamos. Quantas vezes nos deparamos com situações em que, para ficarmos bem diante dos outros, dissimulamos atitudes que não condizem com nosso interior? Quantas vezes praticamos obras que são realmente boas, mas que se tornam reprováveis porque não as fazemos por amor a Deus, mas sim para ressaltarmos nossa própria pessoa? Podemos dar esmolas, ajudar a quem quer que seja, fazer as mais duras penitências. Se o fazemos por egoísmo, elas não valem nada, ou melhor, constituem um pecado de vanglória.
Dentre as várias modalidades de sacrifícios a serem realizados nesta Quaresma, a liturgia de hoje nos propõe um jejum pouco apregoado: o jejum da hipocrisia. Peçamos a Nossa Senhora que, velando por seus filhos nos ajude a superar todas as segundas intenções que possam assaltar nossos corações em tudo quanto façamos.
Por Rodrigo Siqueira
[1] Cf. https://gaudiumpress.org/content/56424-quarta-feira-de-cinzas-convertei-vos-e-crede-no-evangelho/
[2] Cf. VITA ANTIQUIOR SANCTI BRUNONIS, n.1-7: PL 152; 482-484.
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