Leão XIV continuará o “julgamento do século”
Leão XIV decidirá se será o juiz supremo e universal ou o guardião da justiça no território que ele comanda. Eis a situação que o aguarda.
Foto: Vatican News
Redação (01/10/2025 10:08, Gaudium Press) O vaticanista Sandro Magister, em seu artigo intitulado “Cantiere aperto, sulle macerie della giustizia vaticana” (Em obras, sobre os escombros da justiça vaticana), publicado no dia 30 de setembro, delineia um cenário inquietante acerca do sistema jurídico e da autoridade no Vaticano. Ele ressalta a crescente tensão entre o exercício da autoridade papal — entendida como quase absoluta — e a necessidade de um ordenamento jurídico que respeite os princípios fundamentais do Estado de Direito. Sob o pontificado de Leão XIV, essa tensão ainda não se dissipou; antes, poderá ser um teste de coerência e coragem institucional para o novo Pontífice. A situação do Papa Prevost, nesse contexto, é complexa, e suas ações terão impacto na imagem da Santa Sé no cenário internacional.
No cerne da análise de Magister, encontra-se o caso do Cardeal Giovanni Angelo Becciu, condenado em 2023 por peculato, fraude qualificada e abuso de poder, sendo o primeiro cardeal julgado pelo Tribunal do Vaticano segundo os trâmites do processo penal ordinário. Magister vê nessa condenação uma afirmação simbólica do poder papal — especialmente na recusa em acatar determinações de instâncias judiciais inferiores — e também um risco de comprometer a legitimidade institucional.
O veterano observador do Vaticano sustenta que as reformas da legislação canônica, — particularmente aquelas introduzidas em dezembro de 2021 — têm sido duramente criticadas por minarem o devido processo legal. Especialistas apontam que a substituição de processos judiciais por procedimentos administrativos rápidos, decididos por decreto, compromete direitos fundamentais do acusado. Além disso, destacam-se duas falhas graves: a possibilidade de derrogar a prescrição, permitindo o julgamento de crimes ocorridos há décadas, como no caso Rupnik, e a aplicação retroativa de normas desfavoráveis, inexistentes à época dos supostos delitos. Esse rigor punitivo, longe de assegurar justiça, parece responder sobretudo à pressão da opinião pública em torno dos abusos sexuais, gerando riscos de arbitrariedades e desequilíbrios no sistema penal eclesiástico.
Para Magister, o caso do Cardeal Becciu não é mera disputa individual, mas um sintoma de fragilidade estrutural no sistema judicial do Vaticano, visto que esse sistema carece dos elementos constitutivos de um Estado de Direito moderno, tais como independência judicial real, separação de poderes e controle institucional eficaz. Nesse sentido, o julgamento de Becciu seria não tanto uma purga moralizante, mas uma demonstração de poder do Papa, que se estende além do âmbito eclesiástico, abarcando o controle político e administrativo do Estado da Cidade do Vaticano. Nesse ponto, o julgamento do cardeal converte-se em palco simbólico, no qual se afirma uma plenitude de autoridade que desafia limites tradicionais e jurídicos.
A análise de Magister encontra ressonância e contrapontos em fontes católicas, especialmente no modo como os defensores de Becciu e teóricos do Direito Canônico denunciam falhas processuais que, segundo eles, comprometem a credibilidade do sistema judicial do Vaticano e a reputação da Cidade Estado no cenário mundial.
Um exemplo recente é o livro Il processo Becciu. Un’analisi critica, assinado por Geraldina Boni, Manuel Ganarin e Alberto Tomer, que aponta “anomalias processuais que minariam a confiança no fórum Vaticano”, e danos ao devido processo. A obra adverte sobre a discriminação entre o Direito Canônico, marginalizado, e o Direito Vaticano, aplicado de maneira quase autocrática, rompendo uma coerência normativa essencial para a legitimidade interna do sistema judicial da Santa Sé.
Outro aspecto ressaltado nas críticas católicas é a possibilidade de que cláusulas contratuais que estipulam o foro vaticano percam eficácia internacional caso se comprove que esse foro não assegura imparcialidade ou segurança jurídica. Tal cenário representa uma ameaça ao prestígio financeiro e diplomático da Santa Sé.
No âmbito concreto, vale recordar que o Tribunal de Apelação do Vaticano “confirmou as absolvições de 2023” de Becciu em determinados pontos, com base na inadmissibilidade do recurso apresentado pelo promotor, por razões de forma e substância.
As críticas provenientes de círculos católicos também apontam episódios de relutância processual: por exemplo, a defesa de Becciu solicitou o afastamento do promotor Alessandro Diddi, alegando a existência de mensagens privadas que indicariam interesse pessoal no curso do processo. O presidente do Tribunal de Apelação, ao acolher esse pedido, transferiu a decisão à Corte de Cassação, composta por cardeais pouco familiarizados com o Direito Vaticano. Paralelamente, o próprio recurso de Diddi foi rejeitado por falhas em sua redação, o que o tornou inadmissível, resultando na confirmação de algumas absolvições contrárias à sua vontade.
Na perspectiva da defesa e de comentaristas católicos, tais episódios reforçam a percepção de desequilíbrio e de “julgamento com viés”. A transparência, frequentemente anunciada como princípio orientador, é questionada diante da opacidade que envolve elementos centrais do processo, como gravações, delações e regras de recurso. Becciu, por sua vez, responde às críticas, afirmando que reconhece um esforço informativo nos canais vaticanos, mas reserva-se ao direito de discordar da narrativa oficial sobre “processo justo”.
Os desafios que aguardam Leão XIV
Para o novo pontificado, o “julgamento do século” torna-se um espelho capaz de refletir credibilidade ou ruína institucional. Embora Leão XIV ainda não tenha se pronunciado diretamente sobre o caso Becciu, a condução que adotar nesse processo será um indicativo de como pretende articular autoridade e justiça.
Se Leão XIV mantiver a linha de centralização papal maximalista, ele poderá reforçar o sistema de controle absoluto que Magister denuncia. Por outro lado, se permitir a autonomia de instâncias judiciais, na qual as decisões são tomadas com base em garantias processuais plenas, o Pontífice poderá começar a reverter o debate interno acerca da legitimidade do sistema judicial do Vaticano.
O risco de uma “judicialização externa”, todavia, permanece. Se os processos canônicos continuarem a violar os princípios fundamentais — como a presunção de inocência, o direito de defesa e a imparcialidade — os acusados poderão recorrer a instâncias civis, inclusive fora do âmbito eclesiástico, com base em direitos constitucionais de outros Estados. Já Magister prevê que isso poderia levar à recusa de execução de sentenças vaticanas em tribunais nacionais. E ainda alerta: se o Direito Canônico for relegado a segundo plano, reduzido a mera fachada para decisões papais autocráticas, comprometer-se-ia a reputação moral e jurídica da Santa Sé.
Outro elemento sensível refere-se ao perfil dos tribunais custódios. A Corte de Cassação, encarregada de deliberar sobre a permanência de promotores, foi confiada a cardeais “completamente alheios ao direito”, segundo reportagens, o que, diante de Leão XIV, poderá representar a continuidade de juízes simbólicos, em detrimento de magistrados com formação técnica. Um novo papa, no entanto, poderia reconfigurar esse cenário, escolhendo magistrados com perfil jurídico mais robusto.
Há ainda expectativas quanto à abordagem de Leão XIV em relação às reformas do direito processual eclesiástico, inclusive nos casos de abusos sexuais. Se conseguir restaurar o equilíbrio entre a proteção das vítimas e o respeito às garantias processuais do acusado, o Papa Leão XIV poderia revigorar a noção de “processo justo” na Igreja. É possível que este desafio exija uma aplicação ainda mais aprofundada dos seus conhecimentos jurídicos.
O julgamento de Becciu e a análise incisiva de Magister colocam Leão XIV diante de uma encruzilhada: optar por uma postura autoritária em um contexto moderno ou restaurar a credibilidade jurídica do Vaticano como um Estado que respeita suas próprias leis e se blinda contra os desmandos de um soberano. Se optar pela segunda via, terá de enfrentar não apenas juízes internos e resistências curiais, mas o escrutínio de comentaristas atentos. Se preferir reforçar o absolutismo, poderá transformar “o julgamento do século” em sinônimo de julgamento da própria reputação da Santa Sé.
Em última análise, Magister e seus críticos católicos concordam em um ponto: na autoridade atribuída ao papa. Entretanto, divergem profundamente quanto ao limite dessa autoridade. Restará a Leão XIV decidir se ele será o juiz supremo e universal ou o guardião da justiça no território que ele comanda. A fase de apelação do processo poderá durar meses, as consequências, no entanto, poderiam durar séculos.
Por Rafael Tavares
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