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Gregório, o Magno

Roma desabava no caos e os rumos da história mudavam drasticamente quando um monge beneditino foi escolhido Papa. Era Gregório I, a quem a História qualificou de “o Magno”, cuja memória a Igreja celebra hoje dia 3 de setembro.

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Redação (03/09/2024 09:11, Gaudium Press)  Como uma avalanche incontenível, em 568, desembocaram no norte da Itália 100 mil guerreiros seguidos por mais de 500 mil anciãos, mulheres e crianças: os lombardos. Esse povo bárbaro, de religião ariana, logo revelou ser um dos mais cruéis e sanguinários invasores que até então haviam penetrado na Europa ocidental.

Seu método de conquista consistia na violência e no terror, e para firmarem-se de modo definitivo naquelas terras, eliminavam metodicamente as elites latinas e o resto de aristocracia ainda subsistente.

Todo o norte da Itália foi conquistado e para Roma acorriam os sobreviventes, fugindo dos ­horrores que acompanhavam a ocupação lombarda.

A luz da esperança

Outono de 589. Chuvas torrenciais abateram-se sobre a Itália. Os campos ficaram alagados, perderam-se as colheitas e quase todos os rios transbordaram, destruindo pontes e inundando muitas vilas e cidades.

Em Roma, o manso Tibre tornou-se uma torrente impetuosa. Saindo de seu leito e atingindo um nível ­jamais visto, as águas devastaram a cidade e submergiram no lodo seus bairros menos elevados. A catástrofe atingiu então proporções apocalípticas: à destruição e à fome acrescentou-se uma epidemia de peste bubônica que se alastrou rapidamente, dizimando a população.

No meio da borrasca, os olhos de ­todos voltaram-se para a única Luz do mundo: às igrejas acorriam dia e noite os sobreviventes, implorando um raio da luz divina para dissipar as angústias e incertezas que obscureciam o horizonte.

Assim, os romanos do final do século VI perceberam, admirados, que a luz divina já brilhava para eles num límpido espelho. Então o clero, o senado e todo o povo aclamaram a uma só voz: “Gregório Papa!”

Era Gregório a “luz da esperança” que refulgia naquele ocaso de uma civilização.

Primeiros anos

Vox populi, vox Dei. Gregório foi, sem dúvida, o varão providencial ­escolhido por Deus para governar a Igreja naqueles tempos difíceis e decisivos.

Viera à luz no ano de 540, numa nobre e antiga família romana, profundamente católica e com longa história de fidelidade à Cátedra de São Pedro.

Eram seus pais o senador Gordiano, que no fim da vida entraria no estado eclesiástico, e Sílvia, dama conhecida por sua piedade e generosidade, que terminaria seus dias retirada do mundo e consagrada ao Senhor. Ambos, e duas tias de Gregório, Tarsila e Emiliana, são venerados como santos.

Presenciou, certamente, na noite de 17 de dezembro de 546, a terrível entrada dos ostrogodos em Roma, seguida da deportação de seus habitantes durante 40 dias, período em que a cidade deserta ficou à mercê dos invasores. E quiçá contemplou, desolado, as muralhas da urbe arrasadas por ordem de Totila, o rei dos bárbaros.

Nesse contraste entre a piedade do ambiente doméstico, solidamente arraigado nas tradições romanas, e a instabilidade de um mundo novo que surgia na violência, transcorreram os primeiros anos da existência de Gregório.

Longa preparação

Após o aniquilamento dos ostrogodos pelo exército do imperador Justiniano, durante vários anos reinou na Itália uma relativa paz que permitiu a Gregório, seguindo a tradição familiar, cursar a carreira jurídica.

Sua aguda inteligência e incomum capacidade organizativa destacaram-no rapidamente nos meios cultos da época, e sua reputação aumentava com o passar dos anos. Entretanto, como dois robustos galhos de uma mesma árvore, cresciam no seu espírito o desejo de empreender grandes obras para ordenar aquela civilização cambaleante e o anelo de abandonar o mundo para consagrar-se unicamente à contemplação das realidades sobrenaturais.

Quando contava pouco mais de 30 anos, foi nomeado prefeito de ­Roma, um dos mais altos cargos do governo da cidade. Desempenhou essa função com superior habilidade, enfrentando dificuldades de toda ordem, criadas pelo drama da invasão dos lombardos. Contudo, em meio das mais absorventes ocupações, ressoava sempre na sua alma o chamado a uma vida contemplativa.

 Em 575, concluiu-se o tempo prescrito e Gregório, aliviado, deixou o mais prestigioso cargo da cidade.

Gregório, monge

Junto com as esperanças terrenas, Gregório deixou para sempre a púrpura do patriciado e revestiu-se das insígnias de uma nobreza mais ­alta: o hábito monacal. Mas, ao invés de abandonar a conturbada Roma e partir para algum claustro distante, transformou o palácio senatorial do Monte Célio em mosteiro beneditino, sob a invocação de Santo André.

Entregando o governo da casa a um experimentado abade chamado Valêncio, começou como humilde ­súdito sua vida religiosa. Foram os anos mais felizes de sua existência.

Nesse período, pôde Gregório saciar os seus anelos de isolamento, e abundantes graças místicas de contemplação lhe foram concedidas. Com indizíveis saudades, escreveu décadas depois: “Quando vivia no mosteiro, podia ter, de modo quase contínuo, a mente fixa na oração”.

A luz sobre o candeeiro

Após quatro anos de paz monacal foi, por ordem do Papa Bento I, ordenado diácono regional, ou seja, encarregado da administração de uma das regiões eclesiásticas que nessa época dividiam a cidade de Roma.

E pouco depois o novo Papa, Pelágio II, que reconhecia em Gregório uma longa experiência em assuntos seculares e uma provada virtude, o enviou como apocrisiário (núncio) à capital do Império do Oriente, Constantinopla.

Seis anos de intenso labor na ­corte imperial proporcionaram a Gregório um útil contato com a cultura e a grandeza bizantinas, mas também com a sinuosa e ambígua política de seus soberanos. As tendências heterodoxas de monofisismo e nestorianismo, que ainda crepitavam ali, foram combatidas com destemor pelo apocrisiário, o qual sabia aliar aos argumentos teológicos uma fina habilidade diplomática.

Sempre acompanhado por alguns monges de Santo André do Monte Célio, Gregório manteve no belo palácio à beira do Bósforo, onde residiam os apocrisiários do Papa, a vida sacral de um religioso, filho de São Bento. Apesar das múltiplas ocupações, todos ali rezavam, cantavam e estudavam as Escrituras, na inteira observância da disciplina monástica.

Por volta do ano 585, pôde Gregório retornar a Roma. Seu maior desejo era retirar-se definitivamente do mundo e enclausurar-se em seu amado mosteiro de Santo André. Porém, os deveres do apostolado e a voz da obediência o chamaram mais uma vez para outros caminhos.

Uma antiga tradição refere que certo dia, caminhando pelas ruas da cidade, ele deparou-se com um grupo de jovens escravos anglos, provindos da longínqua Britânia. Contristado, ao ver gente tão cheia de qualidades submersa nas trevas do paganismo, exclamou: “Não são anglos, mas anjos!” Providencial encontro que o moveria a fazer todo o possível para levar a luz do Evangelho a esse povo e, mais tarde, a promover a conversão de todos os novos e temidos habitantes de Europa: os bárbaros.

Pediu licença ao Papa para dirigir-se ao país dos anglos, com o ­objetivo de trazê-los ao seio da Igreja. Mas, atendendo às súplicas do povo romano, que não queria ver-se privado de um varão cuja santidade já era notória, Pelágio II o reteve na Cidade Eterna e, ademais, o chamou a si, para servir-se dele como experimentado conselheiro.

A mais alta das cruzes

R081 HAG D Sao Gregorio MagnoApós o falecimento de Pelágio II, foi Gregório o escolhido, por unânime aclamação, para ocupar o trono de São Pedro. Considerando-se, porém, indigno, e espantado diante da incomensurável responsabilidade, fugiu de Roma e ocultou-se nas montanhas e florestas vizinhas. Lá foi achado pelo povo e, então, submeteu-se humildemente diante dos inequívocos sinais da vontade divina.

Foi solenemente sagrado na Basílica de São Pedro, no dia 3 de setembro de 590. Contudo, tendo sempre diante de si a própria insuficiência e indignidade, manifestava sinceramente sua consternação: “Sinto-me de tal modo esmagado pela dor, que apenas posso falar. Tudo o que contemplo causa-me tristeza, e aquilo que para os outros é motivo de consolação, a mim parece-me aflitivo”. 

Mas se a humildade o fazia tremer, a Fé na invencibilidade da Cátedra de Pedro incutia-lhe uma sobrenatural fortaleza: “Estou disposto a morrer antes de ser causa de ruína para a Igreja de Pedro”.

O ponto de vista profético

Gregório I subia ao supremo pontificado, numa cidade ­desmantelada, símbolo de uma civilização em agonia, e numa Igreja convulsionada pelas invasões, por cismas e relaxamentos.

Entretanto, a inspirada clarividência que o caracterizaria até o fim, manifestou-se desde o primeiro momento de seu governo. Diante de uma sociedade devastada por crises aparentemente insolúveis, ele apresentou o ideal da vida cristã em toda a sua radical integridade.

O imenso vazio deixado pelo desaparecimento do ius civitatis romano só poderia ser preenchido pelo donum caritatis cristão. O objetivo principal do Papa-monge seria, pois, elevar continuamente os espíritos à consideração das realidades sobrenaturais, para então viver os acontecimentos temporais sob uma perspectiva eterna.

Assim procedendo, São Gregório fechava para sempre a última porta que unia a Europa com o mundo antigo, nascido do paganismo, e plantava a semente de uma nova civilização que cresceria sob a luz do Evangelho, regada pelo preciosíssimo Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo.

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Pastor das almas

Durante os primeiros anos de seu pontificado, a península italiana atravessava uma das piores fases do conflito lombardo. Abandonada quase totalmente pelos bizantinos, a antiga urbe foi ­duas vezes sitiada pelos ferozes lombardos. Mas em ambas, graças à fortaleza e habilidade do novo Papa, o cerco foi levantado e eles se retiraram.

Empenhado não na destruição, mas na conversão dos invasores, São Gregório assinou uma trégua com eles e procurou por todos os meios atraí-los à verdadeira Fé. Depois de não poucas tentativas, foi possível — graças ao fervor e à influência da princesa Teodolinda, filha do rei católico da Baviera e esposa do caudilho dos lombardos — batizar o filho do casal e preparar assim a futura conversão de todo o povo.

A sede de almas do Sumo Pontífice fez reflorescer para a Igreja todo o ocidente da Europa.

Na Espanha, apoiou eficazmente São Leandro na difícil evangelização dos visigodos arianos. Por fim, o monarca dessa nação abraçou a religião verdadeira. A Gália mereceu especial atenção do santo Papa. Travou ele boas relações com os soberanos francos, renovou o clero decadente e simoníaco, ordenou a convocação de sínodos e procurou com energia pôr fim às cruéis práticas pagãs que ainda perduravam.

Onde pôde São Gregório manifestar todo seu ardor missionário, foi na conversão da Grã Bretanha. Outrora província do Império, esta ilha tinha sido evangelizada já nos primórdios do Cristianismo. Porém, invadida e dominada pelas tribos dos bárbaros anglos e saxões, a luz da Fé quase se havia apagado.

O Pontífice não poupou esforços na conversão desse povo: estabeleceu uma casa de formação em Roma para os jovens anglo-saxões, conseguiu que um dos seus reis contraísse núpcias com uma princesa católica da França e, sobretudo, para lá enviou um grande número de missionários. Destacou-se entre eles Agostinho, que mais tarde seria Arcebispo de Cantuária e que, segundo narram as crônicas, batizou mais de 10 mil neófitos no dia de Pentecostes de 597.

Apesar de várias moléstias que lhe causavam sofrimentos terríveis, permaneceu firme e vigilante até o fim. No ano de 604, Gregório, na paz dos justos, entregava a alma ao Pastor dos pastores.

Tudo nesse varão providencial fora grande, graças à sua humilde docilidade diante dos desígnios do Espírito Divino que governa a Esposa de Cristo. A vida desse Papa admirável constitui um marco fundamental na História da Igreja. Publicou a “Regra Pastoral”, um verdadeiro manual de santidade para os pastores do rebanho do Senhor; reformou a Liturgia, criando o estilo de canto que hoje leva seu nome; e fez do conjunto do seu Pontificado o ponto de partida de uma nova civilização, inteiramente cristã.

No entanto, seu único e ardente desejo era servir incondicionalmente, como simples escravo, a Jesus Cristo, o Rei Eterno. Por isso, enquanto do alto da Cátedra de Pedro regia os destinos do mundo, não quis receber outro título senão o de servo dos servos de Deus. E a Santa Igreja, com maternal gratidão, uniu a grandeza ao nome do escravo: para todo sempre será ele chamado São Gregório, o Magno.

Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n. 81, setembro 2008. Por Pe. Pedro Rafael Morazzani Arráiz, EP

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