Falsa noção de humildade
É-nos fácil compreender a humildade, mas vê-la harmonicamente subsistir com a grandeza, num mesmo ser, choca nossa débil inteligência.
Redação (08/11/2020 12:04, Gaudium Press) Com a acentuada e crescente decadência moral dos últimos tempos, paulatinamente vão se transformando as mentalidades, e passam a vigorar novas normas, insurgindo-se contra as eternas estabelecidas por Deus.
Dando largas às suas paixões e vícios, numa progressiva via de deterioração dos princípios morais mais profundos, os homens contemporâneos chegam a dizer “em seus corações: o Senhor não faz bem, nem mal”; e acabam por eleger para si máximas relaxadas de vida: “Tudo é permitido… É proibido proibir”.
Ora, se nós abrirmos os Evangelhos, constataremos que não foi essa a conduta de Jesus e nem sequer por aí rumaram seus conselhos. Muito pelo contrário, o Divino Mestre afirmou: “Seja a vossa linguagem ‘sim, sim, não, não’”.
Jesus foi pedra de escândalo
Já ao ser o Menino Deus apresentado no Templo, Maria ouviu de Simeão estas palavras: “Eis que ele está posto para ruína e ressurreição de muitos em Israel, e para ser alvo de contradição.”
Durante sua vida pública, Cristo dividiu os campos entre o bem e o mal, a verdade e o erro, o belo e o feio. Assim o mostrou, por exemplo, São Beda, ao afirmar: “Quando Jesus pregava e prodigalizava seus milagres, as multidões eram tomadas pelo temor e glorificavam o Deus de Israel; mas os fariseus e escribas acolhiam com palavras carregadas de ódio todos os ditos que procediam dos lábios do Senhor, como também as obras que realizava.”
Como afirma Donoso Cortés, célebre escritor do século XIX, o homem aceita verdades, mas tem dificuldade em admitir a Verdade. A acirrada polêmica de Jesus com os fariseus tinha em seu cerne essa problemática: apontava o Divino Mestre para o grave dever moral de adequar a vida e os costumes à lei de Deus. Mas, sobretudo, convidava seus ouvintes a aceitá-Lo como fonte e substância de tudo aquilo que pregava. Os fariseus eram hipócritas, condutores cegos, serpentes, raça de víboras, etc., e em seu orgulho estavam resolvidos a nunca aceitar a Verdade.
O fato de Jesus ter sido pedra de escândalo é uma das causas de O terem odiado e de O tratarem como o Homem mais rejeitado da História.
Nós e o escândalo
O homem tem verdadeira ânsia de poder, mas procura-o por vias equivocadas.
A Redenção nos elevou, do estado de meras criaturas, à categoria de filhos de Deus e co-herdeiros de Cristo, e fez de nós verdadeiros templos de Deus. Esta qualidade adquirida no Batismo exige uma alta compenetração a respeito da dignidade e grandeza de nossa participação na vida divina.
Mas, de outro lado, somos concebidos no pecado original. Nossa natureza é débil, e por isso somos obrigados a reconhecer nossa contingência, aprendendo de Jesus a sermos mansos e humildes de coração.
Falsa noção de humildade
Muito se tem insistido ao longo dos séculos sobre esta virtude, da qual Nosso Senhor é o modelo perfeito.
As Escrituras estão repletas de conselhos a este propósito, e o próprio Divino Mestre recrimina a soberba arrogante do fariseu, estigmatizando-a em parábola, ao final da qual afirma: “quem se exalta será humilhado e quem se humilha será exaltado.”
Porém, devido a uma compreensão errônea do que seja a verdadeira humildade, alguns desvios se tornaram frequentes em nossos tempos, influenciando os gestos, as atitudes e até as vestimentas.
Para exemplificar, tratemos sobre o modo de vestir-se adotado nestas últimas décadas. Parece ser orgulhoso quem usa roupas de acordo com sua categoria, sobretudo quando muito limpas e bem passadas. A despretensão consistiria, então, em ser desalinhado, trajar-se com grande descuido, ter os cabelos desgrenhados, etc.
Ora, São Tomás de Aquino afirma que, muitas vezes, não é por virtude que as pessoas se vestem mal, mas sim por desleixo. Segundo ele, devemos aplicar cuidado e diligência em nossa apresentação pessoal. E cita, a este propósito, uma frase de Santo Agostinho: “Não somente no esplendor e na pompa das coisas materiais pode haver jactância, mas também na sordície lamurienta, e tanto mais perigosamente quanto se apresenta, para nos enganar, com o pretexto de servir a Deus.”
O grande escândalo: denunciar o mal
A humildade mal-entendida, levada a seus últimos extremos, desemboca no juízo deturpado de certos contemporâneos nossos que chegam a afirmar ser orgulhoso quem denuncia o mal. Ou, dito de outra forma, o permissivismo moral que hoje alastrou-se por todos os povos e erigiu-se como lei absoluta, só condena um único “escândalo”: delatar o mal.
Mais uma vez, o erro é desmentido pelo próprio Jesus. Ele não deixou de ser humilde quando acusou os fariseus: “Vós tendes por pai o demônio e quereis satisfazer o desejo de vosso pai”, nem quando “dirigindo-se à multidão e a seus discípulos”, vituperou-os com os apodos de hipócritas, insensatos e cegos, sepulcros caiados, raça de víboras.
Com essa forma de proceder, poderia Jesus não escandalizar?
Eis a grande lição: sejamos humildes de verdade, sem deixar a santidade de vida e de costumes, ainda que esta atitude produza escândalo nos outros. Jamais devemos nos esquecer de nossa condição de filhos de Deus.
Mons João Scognamiglio Clá Dias,EP
Texto extraído, com adaptações, da revista Arautos do Evangelho n.18. Junho 2003.
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