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Dilexi Te: Qual o intuito do primeiro documento magisterial de Leão XIV?

 Leão XIV, em gesto de humildade e continuidade, expressa sua satisfação em assumir este texto, enriquecendo-o com reflexões pessoais e publicando-o como marco inicial de seu pontificado.

Foto: Vatican News

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Redação (13/10/2025 09:50, Gaudium Press) Quando um papa recém-eleito decide iniciar o seu pontificado com a promulgação de um documento magisterial, não se trata apenas de um gesto simbólico: é um programa, uma chave para compreender a direção que ele deseja imprimir à Igreja. Assim foi João Paulo II com a Redemptor Hominis (1979), Bento XVI com a Deus Caritas Est (2005) e Francisco com a Evangelii Gaudium (2013), embora o primeiro documento magisterial de Francisco tenha sido a Encíclica Lumen Fidei, iniciada pelo Papa Ratzinger. Agora, Leão XIV apresenta sua primeira exortação apostólica, intitulada Dilexi Te, repleta de significados. Qual é, afinal, o intuito desse texto inaugural?

O primeiro dado a destacar é que Dilexi Te não nasceu do zero. Trata-se de um documento cuja redação foi iniciada por Francisco. Leão XIV, em gesto de humildade e continuidade, expressa sua satisfação em assumir este texto, enriquecendo-o com reflexões pessoais e publicando-o como marco inicial de seu pontificado. Esse detalhe não é menor: revela que Leão não pretende inaugurar uma ruptura, mas uma recepção amadurecida do magistério precedente. É como se o novo Pontífice dissesse: “continuo no mesmo compasso, mas quero acrescentar minha voz própria”. O título Dilexi Te (“Eu te amei”) ecoa e, ao mesmo tempo, responde à Dilexit Nos (“Ele nos amou”), o último documento do papado de Jorge Bergoglio, compondo um díptico espiritual que une os dois pontificados.

O núcleo teológico e pastoral do texto pode ser resumido em uma frase: o amor de Cristo é inseparável do amor aos pobres. Não se deve confundir Dilexi Te com um manual de Doutrina Social da Igreja ou com um documento de políticas setoriais. Seu propósito é reafirmar um princípio bíblico e patrístico: a fé cristã se manifesta no amor concreto aos pobres. A opção pelos pobres não é um modismo ou uma obsessão de papas recentes, mas parte do coração do Evangelho. Reduzi-la a uma “fixação” seria mutilar a própria fé. O texto, portanto, não propõe apenas práticas de beneficência, mas afirma um dado revelado: Cristo se identifica com os pobres.

Além disso, Dilexi Te recorda que não se trata apenas de uma Igreja que vai ao encontro dos pobres, mas de reconhecer que os pobres evangelizam a Igreja. Essa inversão de perspectiva ressoa fortemente na teologia latino-americana de Medellín, visto que os pobres não são objetos de cuidado, mas sujeitos ativos de evangelização, portadores de uma experiência que interpela toda a comunidade. Nesse sentido, Dilexi Te não apenas convoca à solidariedade como também convida a Igreja a deixar-se converter pelos pobres. É um ponto de grande impacto pastoral, sobretudo para Leão XIV, que viveu no Peru como missionário agostiniano e conhece de perto a realidade das comunidades periféricas.

O documento reveste-se de um tom profético, exortando a Igreja que faça ouvir a sua voz, que desperte, denuncie e se exponha, ainda que possa parecer ingênua ou desconfortável aos olhos do mundo. Aqui se percebe a coragem do Papa em propor uma presença pública forte, sem medo de incomodar. Trata-se de combater estruturas de pecado que perpetuam a miséria e a injustiça, relacionando diretamente a questão da pobreza à paz mundial. De fato, sem justiça, não há reconciliação nem verdadeira paz.

Andrea Gagliarducci, em seu blog Vatican Reporting, oferece uma análise equilibrada do texto, apontando “cinco forças e cinco fraquezas”. Entre as forças, ele destaca o enraizamento na Tradição, expresso por meio de abundantes referências aos Padres da Igreja e santos; a centralidade conferida à Doutrina Social, recolocada no coração do Magistério; a coragem administrativa, manifestada na revisão e modificação das normas herdadas de Francisco, como no caso das regras de investimento; o uso equilibrado da memória papal, que cita Francisco, mas sem anular a voz própria de Leão; e a abertura para desenvolvimentos futuros, sinalizando que este não será o último texto sobre o tema. Nas fraquezas, aponta certa falta de densidade teológica em alguns trechos, a necessidade de maior precisão conceitual e uma articulação mais clara entre doutrina e práxis. Também observa que o texto deixa questões em aberto sobre como traduzir esse princípio em ações concretas de governo e formação.

O conjunto das análises converge em um ponto: Dilexi Te não deve ser interpretado como um documento de políticas públicas ou um programa sociopolítico. É, antes, um texto querigmático, que retoma o anúncio central da fé e o aplica ao campo da pobreza. O horizonte não é a filantropia, mas a Revelação. Com efeito, Cristo que amou até o fim deixa-se encontrar no rosto dos pobres. Essa gramática querigmática acarreta implicações pastorais profundas, pois impede que o texto seja instrumentalizado por ideologias e obriga a Igreja a converter o coração antes de elaborar programas. Mas, ao mesmo tempo, esse texto corre o risco de ser visto como um tanto genérico ou abstrato por quem espera respostas imediatas e operacionais.

Do ponto de vista pastoral, o documento abre vários horizontes. No âmbito da evangelização, coloca os pobres como critério de autenticidade missionária. Na formação, exige que seminários e casas religiosas integrem a dimensão social como parte do núcleo da fé. Na vida pública, convoca bispos e fiéis a denunciarem estruturas injustas, e não apenas a promoverem obras de caridade. Na espiritualidade, recorda que não há culto verdadeiro sem amor concreto. Contudo, surgem desafios: como traduzir esse chamado em diretrizes práticas? Como evitar que agendas políticas divergentes continuem se apropriando do tema? E como garantir que a linguagem espiritual não seja acusada de evasão diante de urgências sociais?

O balanço é claro. Dilexi Te é um documento inaugural que fixa princípios antes de detalhar aplicações. O Papa Leão XIV preferiu começar com um texto que purifica categorias e recentra a fé em Cristo nos pobres, reservando, para etapas futuras eventuais, especificações normativas ou operacionais. A escolha pode frustrar os apressados, mas tem lógica pedagógica já que, antes de decretar, é necessário iluminar. Assim, Dilexi Te não pretende oferecer um itinerário guiado, mas simplesmente apontar o norte.

Independentemente da extensão em que Dilexi Te reflete a redação original de Francisco, o fato é que Leão assumiu esse legado como sua primeira palavra ao mundo. Parece que, assim como Leão XIII deixou uma marca indelével no pensamento social da Igreja, o Papa Prevost quer dar também seu contributo. Fez uma opção consciente pela continuidade, mas com uma tonalidade própria: reduz brechas para leituras políticas e confere mais clareza em uma hermenêutica evangélica. Não se trata de um pronunciamento ex cathedra, mas da experiência de quem viveu em contato cotidiano com os pobres no Peru e quer deixar à Igreja um legado: colocar os pingos nos is, liberar a questão das interpretações ideológicas e recordar que o critério do Evangelho é a caridade. É possível que outros documentos sejam necessários para amadurecer e esclarecer essa mensagem. Contudo, se Dilexi Te representa apenas o primeiro capítulo, já podemos intuir que o enredo não será de acomodação, mas de interpelação. E, nesse sentido, a ironia é inevitável. Quem esperava uma novidade espetacular, ou uma crítica aguda às políticas de Donald Trump, ou ao capitalismo norte-americano, recebeu uma interessante lição: se Pedro nos ensina que os pobres estão no coração do Evangelho, então não há espaço para a indiferença em relação a eles na vida do cristão.

Por Rafael Tavares 

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