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Da esfera ao poliedro: A Igreja vai se adaptar?

A Igreja foi deixada por Nosso Senhor Jesus Cristo para guiar os homens, para legislar moralmente sobre eles, para orientá-los e assisti-los. Não é função da Igreja se adaptar para agradar ou satisfazer os desejos do homem.

Vaticano

Foto: Cathopic/Valle GB.

Redação (19/07/2022 12:39, Gaudium Press) Na década de 1960, vários movimentos revolucionaram o mundo, entre eles aqueles que pretendiam libertar a mulher, a revolução sexual, o permissivismo, o aborto e a disseminação da pílula anticoncepcional. Como a Igreja, pelo seu caráter de conservação da moral, tem um peso considerável diante de processos revolucionários, não demorou para que começassem a surgir críticas e houvesse certo assédio e pressão pela aprovação dos métodos contraceptivos artificiais por parte da Santa Sé.

No dia 25 de julho de 1968, o Papa São Paulo VI publicou a encíclica Humanae vitae, que regulamentou a posição da Igreja sobre este assunto. Muito sabiamente, o Santo Padre realizou uma ponderada introdução ao documento, fazendo todas as considerações possíveis sobre as questões ligadas à procriação, às dificuldades sofridas pelos casais, muitos impossibilitados de terem uma prole numerosa, e discorreu exemplarmente sobre o papel da Igreja como guardiã e disseminadora da vontade de Deus. O sumo pontífice explicou que, conquanto houvesse uma compreensão de todas as dificuldades materiais e morais enfrentadas pelas famílias, a soberana vontade de Deus é inegociável, deixando clara a inadmissibilidade moral da contracepção artificial.

Não precisamos fazer muito esforço para concluir que, na efervescência das mudanças – que culminariam no mundo das permissividades, em que vivemos hoje – o pontífice enfrentou muitas críticas e oposição, veladas em alguns casos, declaradas em outros, mas, foi firme na sua postura, encerrando o assunto com uma encíclica muito rica e abrangente, mostrando a preocupação e o cuidado da Igreja com o ser humano em todas as instâncias de sua vida.

A Igreja não declara lícito o que não o é

Prevendo os ataques que sofreria, dos entornos e do próprio cerne da Igreja, São Paulo VI assim se manifestou: “É de prever que estes ensinamentos não serão, talvez, acolhidos por todos facilmente: são muitas as vozes, amplificadas pelos meios modernos de propaganda, que estão em contraste com a da Igreja. A bem dizer a verdade, esta não se surpreende de ser, à semelhança do seu divino fundador, ‘objeto de contradição’; mas, nem por isso ela deixa de proclamar, com humilde firmeza, a lei moral toda, tanto a natural como a evangélica. A Igreja não foi a autora dessa lei e não pode, portanto, ser árbitra da mesma; mas, somente depositária e intérprete, sem nunca poder declarar lícito aquilo que o não é, pela sua íntima e imutável oposição ao verdadeiro bem comum do homem. A Igreja, de fato, não pode adotar para com os homens uma atitude diferente da do Redentor: conhece as suas fraquezas, tem compaixão das multidões, acolhe os pecadores, mas não pode renunciar a ensinar a lei.”

Justificando a posição adotada pelo magistério da igreja sobre assunto de tamanha relevância, o papa demonstrou que ela estava fundada sobre a conexão inseparável que Deus quis, e que o homem não pode alterar por sua iniciativa, entre os dois significados do ato conjugal: o significado unitivo e o significado procriador. Com muita ponderação, Paulo VI afirmou que “o matrimônio não é fruto do acaso, ou produto de forças naturais inconscientes: é uma instituição sapiente do Criador, para realizar na humanidade o seu desígnio de amor. Mediante a doação pessoal recíproca, que lhes é própria e exclusiva, os esposos tendem para a comunhão dos seus seres, em vista de um aperfeiçoamento mútuo pessoal, para colaborarem com Deus na geração e educação de novas vidas.”

Com muita clareza, o pontífice declarou que “o matrimônio e o amor conjugal estão por si mesmos ordenados para a procriação e educação dos filhos” e que, “sem dúvida, os filhos são o dom mais excelente do matrimônio e contribuem grandemente para o bem dos pais. Na missão de transmitir a vida, eles não são, portanto, livres para procederem a seu próprio bel-prazer, como se pudessem determinar, de maneira absolutamente autônoma, as vias honestas a seguir, mas devem, sim, conformar o seu agir com a intenção criadora de Deus, expressa na própria natureza do matrimônio e dos seus atos e manifestada pelo ensino constante da Igreja.”

Da esfera ao poliedro: uma mudança radical

Mais de 50 anos se passaram e agora a Pontifícia Academia para a Vida, instituto criado por São João Paulo II, em 1994, para estudar e dar orientações sobre os principais problemas da biomedicina, relativos à promoção e defesa da vida, parece anunciar uma mudança de paradigma na teologia moral que inclui abandonar a doutrina estabelecida sobre a contracepção, a eutanásia e as formas artificiais de concepção.

De acordo com notícias publicadas pela imprensa italiana, os defensores dessa mudança estimulam o Papa Francisco a publicar uma encíclica estabelecendo essa ruptura radical com o consenso do magistério eclesiástico sobre esse delicado tema, arriscando até mesmo um nome para a suposta (e por eles desejada) encíclica: Gaudium vitae (Alegria da vida).

A referida Academia acaba de lançar o livro “Ética Teológica da Vida: Escritura, Tradição e Desafios Práticos” (em tradução livre), que sintetiza as questões apresentadas e discutidas no seminário teológico promovido em 2021.

Na introdução do livro, o arcebispo Vincenzo Paglia, nomeado pelo Papa Francisco e à frente da Academia desde 2016, afirma que “o texto realiza uma mudança radical, passando, por assim dizer, da esfera ao poliedro, apresentando uma exposição fundamental da visão cristã da vida, ilustrada em seus aspectos existenciais mais relevantes para a natureza dramática da condição humana e abordada na perspectiva de uma antropologia adequada à mediação cultural da fé no mundo de hoje.” Dom Paglia justifica que “parte dessa mudança das abordagens anteriores da teologia moral está ligada aos critérios orientadores do ‘diálogo amplo’, que incorpora não só posições teológicas diferentes, mas também de não católicos e não crentes.”

Como o documento acaba de ser lançado, ainda não tive oportunidade de lê-lo para fazer uma justa apreciação do que está contido em suas 528 páginas, no entanto, uma pequena frase, proferida por Nosso Senhor Jesus Cristo me basta para refutar o ignorado e polêmico conteúdo: “Seja, porém, o vosso falar: sim, sim; não, não; porque o que passa disto procede do maligno.” (Mt, 5, 37)

A Igreja deve se adaptar?

O relator do livro, Pe. Carol Casalone, também membro da Pontifícia Academia da Vida, deu a seguinte declaração, em uma entrevista sobre o livro: “Como teólogos morais, devemos nos perguntar por que essas questões conturbadas continuam sendo motivo de inquietação e até desolação entre os crentes. Percebemos que para chegar a uma melhor compreensão dessas questões tínhamos que abrir um diálogo; e nessa abordagem dialógica devemos levar em consideração o que o povo de Deus entende e sente sobre elas”. Raciocínio justificado pelo fato de muitos casais católicos desobedecerem ao magistério da Igreja, usando os métodos contraceptivos rejeitados por ela. Logo, se os fiéis desobedecem, a Igreja deve mudar os seus ensinamentos para se adaptar à desobediência deles?

Vejamos, há pessoas que gostam de roubar – e não são poucas, desde os garotos que roubam celulares em arrastões nas praias ou se fazendo passar por entregadores de fast food, aos que roubam o botijão de gás da própria mãe para trocar por drogas na biqueira, até aqueles que ocupam cargos de mando e roubam do povo, das instituições, dos governos e até da Igreja. É certo que, entre eles, muitos acreditam em Deus, frequentam os cultos, recebem os Sacramentos e participam da vida ativa de suas comunidades. Mas são ladrões e o ato de roubar está proibido pelas Leis de Deus (Sétimo Mandamento). Devemos então, admitir que, para estar em consonância com estes “fiéis” e até com pessoas “não católicas e não crentes”, a Igreja passe a admitir algumas categorias de roubo como aceitáveis e que o santo padre escreva uma encíclica sobre isso? Ora, um casal que se fecha para a vida, através do uso de métodos artificiais, está roubando de Deus o direito de trazer seus filhos ao mundo, e está roubando de si mesmo o direito – e o dever – de participar da Criação, motivo pelo qual foi instituído o matrimônio.

A Igreja foi deixada por Nosso Senhor Jesus Cristo para guiar os homens, para legislar moralmente sobre eles, para orientá-los e assisti-los. Não é função da Igreja se adaptar para agradar ou satisfazer os desejos do homem. O mundo muda, mas a Palavra de Deus permanece, por isso a Cátedra de Pedro, por mais ataques que tenha sofrido, permanece de pé até os dias atuais, e assim continuará até o fim dos tempos, porque é promessa de Jesus que as portas do inferno não prevalecerão contra ela (cf. Mt 16, 18). O inferno tentará entrar, tentará se impor, tentará modificar a doutrina milenar que sustenta esse edifício espiritual, mas, não logrará êxito.

O papa escreverá uma nova encíclica?

De nada adianta conjecturar sobre as decisões do Papa Francisco. Admitir que ele aceitará o que lhe é sugerido e escreverá uma nova encíclica, mudando os ensinamentos da Igreja sobre o matrimônio, a contracepção, a reprodução assistida e a eutanásia, por ora, constitui apenas especulações.

Embora o Arcebispo Paglia, que é um dos principais entusiastas da mudança da Igreja na área da bioética, tenha propalado em suas declarações para a divulgação do livro que o papa foi informado desde o início sobre a iniciativa e a publicação das atas e que, “aparentemente incentivou a discussão” e o teólogo Larry Chapp argumente que o papa parece “favoravelmente disposto ao tipo de teologia moral defendida no documento da Academia”, não podemos deixar de considerar que os papas que sucederam São Paulo VI se mantiveram conformes a ele sobre a não utilização, pelos casais católicos, da contracepção artificial, a qual o Catecismo da Igreja descreve como “intrinsecamente má”.

Lembremos ainda, as palavras da encíclica de São Paulo VI dirigidas especialmente aos sacerdotes: “Sabeis também que é da máxima importância, para a paz das consciências e para a unidade do povo cristão, que, tanto no campo da moral como no do dogma, todos se atenham ao Magistério da Igreja e falem a mesma linguagem. Por isso, com toda a nossa alma, vos repetimos o apelo do grande Apóstolo São Paulo: ‘Rogo-vos, irmãos, pelo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo, que digais todos o mesmo e que entre vós não haja divisões, mas que estejais todos unidos, no mesmo espírito e no mesmo parecer’.”

Por Afonso Pessoa

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