Conflito Rússia-Ucrânia: uma guerra religiosa?
Moscou nunca aceitou que os fiéis cristãos ucranianos estivessem fora de sua influência. Ontem, dia 23 de fevereiro, a Rússia invadiu a Ucrânia.
Redação (24/02/2022 10:49, Gaudium Press) Evidentemente, as tensões entre a Rússia e a Ucrânia não são novas, porém elas vêm se intensificando desde o início do século. Em 2013, a Ucrânia desistiu de um acordo para ingressar na União Europeia, devido à pressão russa.
A Rússia, então, anexou a República da Crimeia, ao sul da Ucrânia, que havia sido cedida à Ucrânia nos tempos soviéticos. E agora, o mundo contempla o capítulo extremamente perigoso de seu apoio à independência das áreas pró-russas do leste da Ucrânia, com a entrada efetiva de tropas russas, movidas, em princípio, pela possibilidade da adesão da Ucrânia à OTAN.
Um ponto não focalizado, mas transcendental
No entanto, há um ponto que está minimamente focado em tudo isso, e é a questão religiosa. É bem conhecida a união Putin-Igreja Ortodoxa na consolidação de seu poder no antigo império dos czares.
Em 1589, a Igreja Ortodoxa Russa, que dependia do patriarcado de Constantinopla, passou a ser autocéfala ou independente, tendo seu próprio patriarca e estendendo ainda mais sua influência naqueles territórios. Porém, na década seguinte, a maioria dos bispos ucranianos optou pela união com Roma e com o Papa, dando origem à Igreja Greco-Católica Ucraniana, considerada “traidora” da ortodoxia por Moscou.
No século XVIII, essa união entre a Igreja Ortodoxa e o Estado russo foi consolidada quando Pedro, o Grande, substituiu a autoridade do Patriarca moscovita pelo Santo Sínodo, que era algo como o ministério religioso do Império. Assim, com a ascensão do comunismo, a perseguição aos católicos aumentou, pois eles são vistos como uma união dos povos eslavos com o Ocidente.
Quando mudou o hierarca temporal russo, do czar ao tirano comunista, não variou a união civil-religiosa russa, que foi conservada, aumentando sua hostilidade contra os católicos. Com Putin essa união também foi mantida e até fortalecida. Hoje, o Patriarcado de Moscou tem jurisdição sobre 90 milhões de pessoas, incluindo uma grande comunidade ortodoxa na Ucrânia.
Ortodoxos ucranianos separam-se dos russos
Contudo, esta comunidade não tem a unidade que tinha até a queda do império soviético. Os ortodoxos ucranianos acabaram se dividindo em três grupos: a Ortodoxa da Ucrânia, ligada a Moscou e maioritária; o Patriarcado de Kiev, não reconhecido por nenhuma Igreja oficial; e a Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia, sem reconhecimento internacional.
No entanto, em 2018, em um concílio dessas igrejas ortodoxas realizado em Creta, o Patriarcado de Kiev, a Igreja Ortodoxa Autocéfala Ucraniana e dois líderes da Igreja Ortodoxa Ucraniana decidiram criar uma única Igreja Ortodoxa Ucraniana com sede em Kiev, algo que desagradou muito ao Patriarca de Moscou, já que perdeu sua soberania religiosa sobre a Ucrânia.
Todavia, o apoio do Patriarca Ortodoxo Bartolomeo de Constantinopla confirmou-os em sua decisão, e legitimou esta Igreja sediada em Kiev, algo não aceito pelo Patriarca de Moscou, causando assim um cisma nos ortodoxos da Ucrânia, entre aqueles que seguem Moscou e aqueles que seguem Kiev.
E como não poderia faltar nessa união Igreja-Estado russo, Putin na época lamentou com palavras amargas a independência da Igreja Ortodoxa Ucraniana, dizendo que era uma “flagrante interferência na vida da Igreja” e uma ação política que “não tem nada a ver com fé”. E também ameaçou: “Reservamo-nos o direito de reagir e de fazer todo o possível para proteger os direitos humanos, incluindo a liberdade de religião”.
Na iminência do conflito, Mons. Sviatoslav Shevchuk, Arcebispo-mor da Igreja Greco-Católica Ucraniana, ao fazer enormes esforços diplomáticos pela paz, declarou que “este não é mais um conflito bilateral entre a Ucrânia e a Rússia”, mas uma escalada militar entre a Rússia e o Ocidente, que, como vimos, tem um componente religioso essencial.
Como referência, em uma população de mais de 40 milhões de habitantes, os Ortodoxos autônomos são cerca de 42% da população; os ortodoxos ligados a Moscou, 29%; católicos, 14%; e protestantes, mais de 2%.
(Com informações de um artigo de Fernando Geronazzo em O São Paulo: “Crise entre Rússia e Ucrânia evidencia tensões históricas na relação entre igrejas”).
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