Como discernir o verdadeiro apóstolo de Jesus Cristo?
Ser apóstolo é uma vocação que se estende a todos os tempos e lugares. Como diferenciar, entretanto, o verdadeiro e o falso apóstolo? A Segunda Carta aos Coríntios nos oferece valiosos elementos para isso.
Redação (29/10/2024 09:28, Gaudium Press) Ser apóstolo não consiste em algo exclusivo do período inicial da Igreja, mas sim em uma vocação que se estende a todos os tempos e lugares. Do contrário, não seria possível cumprir o mandato do Divino Mestre: “Ide por todo o mundo e pregai o Evangelho a toda criatura” (Mc 16, 15).
Contudo, junto a esses autênticos enviados de Deus, há sempre aqueles que se apresentam como tais, mas, na realidade, são lobos ferozes que procuram destruir o rebanho de Cristo (cf. Mt 7, 15).
Essa triste realidade e suas consequências foram, aliás, prognosticadas pelo próprio Nosso Senhor: “Levantar-se-ão muitos falsos profetas e seduzirão a muitos. E, ante o progresso crescente da iniquidade, a caridade de muitos esfriará” (Mt 24, 11-12).
Assim, é assaz importante saber discernir os verdadeiros apóstolos e os falsos. Como fazê-lo?
A Segunda Carta aos Coríntios e a figura do apóstolo
A Segunda Carta aos Coríntios é um dos escritos mais ricos de São Paulo. As circunstâncias que a envolvem, os seus destinatários e até mesmo os problemas pastorais que a motivaram, fazem com que ela brilhe como um “apaixonado desafogo do coração do grande Apóstolo, uma vigorosa defesa de seu apostolado em resposta às calúnias levantadas contra ele”.
Na epístola, o Doutor das Gentes faz uma contraposição entre si mesmo e os “falsos apóstolos” que procuravam minar seu trabalho. Assim sendo, é fácil detectar, ao longo do texto bíblico, as características do verdadeiro embaixador de Jesus Cristo. Passemos a considerar algumas delas.
Eleito por Deus
“Paulo, apóstolo de Jesus Cristo pela vontade de Deus” (II Cor 1, 1).
Logo nas primeiras palavras da epístola, São Paulo assinala a sua vocação: apóstolo de Jesus Cristo. Essa é a sua identidade, sua credencial, sua definição.
Outra verdade, porém, se manifesta claramente no texto sagrado: ele recebe sua missão diretamente de Deus. É pela vontade divina que o homem se eleva à altíssima condição de enviado do Senhor. Trata-se de um dom, uma graça que nenhuma força humana pode conceder ou usurpar.
Sinal de contradição
“Somos para Deus o perfume de Cristo entre os que se salvam e entre os que se perdem. Para estes, na verdade, odor de morte e que dá a morte; para os primeiros, porém, odor de vida que dá a vida” (II Cor 2, 15-16).
Mesmo sendo um emissário de Deus, o verdadeiro apóstolo não goza da aceitação de todos. Alguns o têm como um portador de morte. Ele é um sinal de contradição! Os seus ouvintes ver-se-ão impelidos a tomar uma atitude definida: acolher ou rejeitar. A adesão traz consigo a admiração; enquanto a rejeição, o ódio.
Uma qualidade assim pareceria incoerente e até contraditória com a missão apostólica, que tem por finalidade salvar o maior número possível de almas; entretanto, não é. Querer a salvação de todos não implica automaticamente em que todos queiram ser salvos.
Para aqueles que fazem pouco caso do próprio destino eterno, a figura do apóstolo torna-se insuportável. É o que explica São João Crisóstomo, ao comentar o trecho acima citado: “Quem caminha para a perdição só pode reprovar a si mesmo. Diz-se que os porcos são sufocados pelo perfume, e a luz, como já disse, cega os olhos doentes. A natureza das coisas boas é assim: não só cura o que é semelhante a ela, como destrói o que lhe é contrário; desta maneira, a sua força se mostra fortíssima”.2
Apóstolo de Cristo ou servo de Belial?
“Não vos prendais ao mesmo jugo com os infiéis. Que união pode haver entre a justiça e a iniquidade? Ou que comunidade entre a luz e as trevas? Que compatibilidade pode haver entre Cristo e Belial? Ou que acordo entre o fiel e o infiel? Como conciliar o Templo de Deus e os ídolos?” (II Cor 6, 14-16).
Eis aqui mais um predicado fundamental do verdadeiro apóstolo de Jesus Cristo, enunciado claramente por São Paulo: integridade!
Quem possui esse chamado deve precaver-se em relação às ações que atentam contra ele; e, por isso, precisa estar ciente de que, no caminho da fidelidade, não há espaço para iníquas composições.
Ao preferir a tolerância em vez da intransigência contra o mal, o falso apóstolo deseja fabricar uma pretensa compatibilidade entre Cristo e Belial, entre a Luz e as trevas, entre Deus e os ídolos.
A infidelidade constitui uma marca inconfundível de quem não é autêntico enviado de Deus. Mais, distingue com clareza um servo de Belial, pois quem não se mostra íntegro no serviço de Deus torna-se merecedor das palavras do Divino Mestre: “Quem não está comigo, está contra Mim; quem não recolhe comigo, espalha” (Lc 11, 23).
Santo Irineu de Lyon emite um juízo severíssimo a respeito desse gênero de pessoas: “Quanto a esses que passam por presbíteros aos olhos de muitos, mas são escravos de suas paixões, que em seus corações não põem antes de tudo o temor de Deus […] e fazem o mal às escondidas, dizendo ‘ninguém nos vê’, esses serão repudiados pelo Verbo, que não julga segundo a opinião e não olha a aparência, mas o coração, e escutarão estas palavras ditas profeticamente por Daniel: ‘Raça de Canaã e não de Judá, a beleza fascinou-te e a paixão perverteu teu coração. Homem envelhecido no mal, agora aparecem os pecados que cometias outrora, proferindo julgamentos injustos, condenando os inocentes e libertando os culpados, quando o Senhor disse: ‘Não farás morrer o inocente e o justo’’”.
Perseguido pelos “falsos apóstolos”
“O que faço, continuarei a fazer, para cortar pela raiz todo o pretexto àqueles que procuram algum pretexto para se envaidecerem e se afirmarem iguais a nós. Esses tais são falsos apóstolos, operários desonestos, que se disfarçam em apóstolos de Cristo, o que não é de espantar. Pois, se o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz, parece bem normal que seus ministros se disfarcem em ministros de justiça, cujo fim, no entanto, será segundo as suas obras” (II Cor 11, 12-15).
Este é um dos muitos trechos nos quais São Paulo insinua estar sendo perseguido!
A comunidade de Corinto – pela qual o Apóstolo chegou a derramar lágrimas de amor (cf. II Cor 2, 4) – passou a incriminá-lo com diversas acusações infundadas e caluniosas. Eis algumas delas: que ele não pertencia a Cristo, era um arruinador de comunidades, invadia o território alheio e até mesmo sofria de esquizofrenia (cf. II Cor 10, 1-14)!4
Como explicar que as mesmas pessoas pelas quais São Paulo tanto se dedicara pudessem ter, de maneira tão vil, se rebelado? Um exegeta contemporâneo nos responde: “Os coríntios não chegaram sozinhos a formular estas acusações contra Paulo. Por trás delas estão aqueles que a carta chama, com uma boa dose de ironia, ‘super-apóstolos’. Quem são eles? Certamente pessoas influentes, representantes da hierarquia central que se impõe à comunidade”.
Diante da perseguição, não esmorecer, mas lutar!
Por outro lado, o modo como o Apóstolo enfrenta a calúnia é comovedor! O verdadeiro mensageiro de Cristo jamais pode deixar-se abater pelas perseguições que sofre, quer externas, quer internas, até mesmo quando elas provêm daqueles que foram objeto de maior bondade, dedicação e esperança.
Defender-se com altaneria e confiança n’Aquele que tudo pode, cortando todo pretexto aos operários desonestos (cf. II Cor 11, 12-13), foi o meio usado por São Paulo para superar as dificuldades encontradas no caminho da evangelização. Isso fez dele um varão realmente majestoso.
A esse respeito, pondera com sabedoria o Papa Bento XVI: “Como não admirar um homem como este? Como não agradecer ao Senhor por nos ter dado um Apóstolo desta estatura? É claro que não lhe teria sido possível enfrentar situações tão difíceis e por vezes desesperadas, se não tivesse havido uma razão de valor absoluto, perante a qual nenhum limite se podia considerar insuperável. Para Paulo, esta razão, sabemo-lo, é Jesus Cristo”.
Apóstolo dos “segredos” de Deus
“Importa que me glorie? Na verdade, não convém! Passarei, entretanto, às visões e revelações do Senhor. Conheço um homem em Cristo que há quatorze anos foi arrebatado até o terceiro Céu. Se foi no corpo, não sei. Se fora do corpo, também não sei; Deus o sabe. E sei que esse homem – se no corpo ou se fora do corpo, não sei; Deus o sabe – foi arrebatado ao Paraíso e lá ouviu palavras inefáveis, que não é permitido a um homem repetir” (II Cor 12, 1-4).
Na Teologia, os fenômenos místicos extraordinários ou sobrenaturais – como este narrado por São Paulo – são considerados gratis datæ, ou seja, dons que Deus concede gratuitamente a quem Lhe apraz. Estão eles reservados a poucos, e inclusive vários Santos não chegaram a recebê-los. Entretanto, é preciso ter claro que todo batizado deve nutrir uma intensa vida interior – mística no sentido mais profundo da palavra –, condição imprescindível para qualquer ação pastoral. Nenhum apóstolo pode escusar-se por não cultivar e fomentar a contemplação.
Isso não significa, contudo, que esses fenômenos sejam sempre fortuitos. Pelo contrário, muitos deles têm como causa o intenso grau de espiritualização atingido por certas almas eleitas.
Deste modo, podemos ver na eloquente descrição das revelações recebidas por São Paulo uma garantia de ser ele não só portador do Espírito, mas também possuidor de uma grande intimidade com Nosso Senhor Jesus Cristo. Muitas vezes, Deus Se revela misticamente ao apóstolo para torná-lo, de maneira ainda mais evidente, um emissário seu.
“Apóstolo de Jesus Cristo e arauto da verdade”
O texto da Segunda Carta aos Coríntios contém ainda outras qualidades que diferenciam o verdadeiro apóstolo do falso, tais como a despretensão (cf. II Cor 12, 14), a sinceridade (cf. II Cor 1, 12-14), o ser ministro do espírito e não da letra (cf. II Cor 3, 5-6). Porém, os limites deste artigo impedem uma análise mais extensa.
De qualquer modo, o feitio do autêntico evangelizador está traçado com uma clareza única na epístola, cuja ideia central consiste na defesa do ministério paulino. Nas palavras de um renomado exegeta, seu fio condutor pode ser assim definido: ele é “Apóstolo de Jesus Cristo e arauto da verdade, com todas as dificuldades e toda a glória que isso traz consigo”.
Glória, palavra que soa tão atraente aos ouvidos de todos. Quer o apóstolo verdadeiro, quer o falso, a buscam incansavelmente.
Para este, a glória se traduz em engodo, oportunismo e hipocrisia. Para aquele, porém, significa revestir-se de Jesus Cristo, considerar-se como instrumento posto nas mãos do Senhor. Instrumento que, por vezes, é fraco; mas, paradoxalmente, a partir dessa fraqueza, Nosso Senhor Jesus Cristo mostra toda a sua força e todo o seu poder (cf. II Cor 12, 10).
Texto extraído da Revista Arautos do Evangelho n. 238, outubro 2021. Por João Felipe Trevisan.
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