Como devemos receber a Eucaristia? Um prisioneiro nos dá alguns conselhos…
Pode um simples homem acolher dignamente o próprio Deus? Um grande luzeiro da Fé nos esclarece como devemos recebê-Lo.
Redação (02/06/2021 10:01, Gaudium Press) Em sua insuperável misericórdia para com a humanidade pecadora, Nosso Senhor Jesus Cristo quis perpetuar sua presença e ação salvadoras com a instituição dos Sacramentos, veículos da Graça e auxílios impreteríveis para chegarmos ao Reino dos Céus. Neste convívio Criador-criatura, a Eucaristia ocupa papel primordial, pois é o único Sacramento cuja substância é o próprio Deus, pelo que, como afirma São Tomás de Aquino, é o mais importante dos Sacramentos.[1]
O homem, entretanto, não é digno por si mesmo de acolher Deus em seu interior; como receber, então, digna e santamente este divino obséquio?
São Tomás Morus (1478-1535), o insigne mártir da resistência católica na Inglaterra e prisioneiro pela defesa da Fé, traz singulares ensinamentos sobre a Sagrada Eucaristia em seu “Tratado para receber o Corpo Sagrado de Nosso Senhor, tanto sacramental como espiritualmente”,[2] escrito em seu cativeiro na Torre de Londres. O santo nos adverte sobre a importância do sacramento, a enormidade da falta cometida por aqueles que comungam fora da graça de Deus; e nos aconselha sobre o modo de recebê-Lo dignamente.
Grande Sacramento, grande falta
“Recebem o Corpo do Nosso Senhor sacramental e espiritualmente aqueles que recebem devida e dignamente o Santíssimo Sacramento. Quando digo ‘dignamente’, não pretendo afirmar que haja um homem tão bom ou que possa ser tão bom que a sua bondade o torne, com toda a justiça e razão, digno de receber no seu vil corpo terreno a Carne e Sangue santos (…); quero antes dizer que o homem pode preparar-se, colaborando com a graça de Deus, para chegar a um estado tal que a incomparável bondade de Deus, na sua liberal abundância, se digne tomá-lo e aceitá-lo como digno de receber o seu precioso e inestimável Corpo no corpo de um simples servidor.
“Tal é a maravilhosa generosidade de Deus todo-poderoso, pois Ele não só se digna, mas até se deleita de verdade em estar com os homens, se estes se preparam para recebê-lo com alma limpa e virtuosa, pelo que diz: ‘Delitiae meae esse cum filiis hominum’ (Prov 8, 31)”.[3]
Entretanto, este imenso amor divino é muitas vezes desprezado. Não pelo ódio declarado ao mesmo Deus – pois quem odeia não despreza – mas pelo descaso com que alguns se aproximam da mesa Eucarística. O Divino Senhor “na sua soberana paciência, não se recusa a entrar corporalmente nos corpos vis daqueles cujas mentes sujas rejeitam recebê-lo graciosamente nas suas almas. Estes recebem-no apenas sacramentalmente, e não frutuosa e espiritualmente. (…) Em lugar dessa graça vivificante, recebem o seu juízo e a sua condenação”.
Referindo-se a estes que recebem irreverentemente a Eucaristia, o Autor chega a compará-los mesmo ao infame Judas que, tendo recebido a Comunhão em pecado, consumou sua traição entregando à morte Aquele que algumas horas antes veio trazer-lhe a Vida: “Alguns, devido à injuriosa enormidade do propósito mortalmente pecaminoso com que se atrevem a receber este Corpo sagrado, merecem que o diabo (com a permissão de Deus) entre pessoalmente nos seus corações, de forma que nunca mais têm a graça de expulsá-lo.
E conclui: “Aqui tendes, bons leitores cristãos, uma sentença terrível e formidável que o próprio Deus pronuncia pela boca do seu santo Apóstolo. (…) Estes se encontrarão com Pilatos, com os príncipes dos judeus e com o falso traidor Judas, já que Deus julga a recepção e a comunhão indignas do seu Corpo sagrado uma ofensa nefanda contra a sua Majestade, como considerou nefanda a ofensa daqueles que injusta e cruelmente o mataram”.
Exame de si próprio
Considerados os terríveis efeitos do sacrilégio, voltamos à pergunta: como devemos receber a Eucaristia? Aos primeiros cristãos, o próprio Apóstolo já dizia: “que cada um examine a si mesmo antes de comer desse pão e beber desse cálice” (1 Cor 11, 28), ao que sabiamente acrescenta São Tomás Morus: “Não podemos acudir atabalhoadamente à mesa de Deus, mas havemos de examinar-nos antes.
“Deus, na sua imensa bondade, satisfaz-se quando fazemos com diligência o que podemos para ver se não albergamos nenhuma intenção de pecado mortal.
“(…) aceita a diligência que pomos no exame de tal forma que não nos imputa qualquer outro pecado para nós desconhecido, antes pelo contrário, purifica e limpa esse pecado com a força e virtude do Sacramento.
Como preparar-me?
Para São Tomás Morus, é sobretudo em razão da Fé que devemos orientar nosso exame preparatório à Comunhão: “Temos que ver (…) se cremos firmemente que este Santo Sacramento não é um signo desnudado, ou uma mera figura, ou um simples penhor daquele Corpo santo de Cristo; mas que é, em memória perpétua da amarga Paixão que por nós sofreu, o mesmo Sangue precioso de Cristo que padeceu, agora consagrado e entregue a nós pelo seu poder todo-poderoso e pelo seu inefável amor.
“Se esta verdade estivesse profundamente gravada no nosso peito, estaríamos na verdade muito endurecidos se ela não suscitasse em todos os nossos corações um fervor de devoção para receber dignamente esse santo Corpo.
“Mas, como não podemos, bons leitores cristãos, obter esta fé cristã nem nenhuma outra virtude a não ser pela graça especial de Deus, de cuja bondade procede todo o bem, (…) peçamos a sua graciosa ajuda para alcançarmos esta fé e a sua ajuda para limparmos a nossa alma em preparação da sua vinda, para que Ele possa fazer-nos dignos de recebê-lo bem.
“Da nossa parte, temamos sempre a nossa indignidade e confiemos audazmente na sua bondade, se não deixarmos de colaborar com Ele. Porque, se deliberadamente deixamos de fazer a nossa tarefa, fiados e consolados na sua bondade, então a nossa esperança não será esperança, mas uma insensata presunção”.
Mas, como diz São Tiago “a Fé sem obras é morta” (Tg 2, 26), não deixemos de transformar nossa Fé em amor, pois é nosso dever retribuir a Ele tanta bondade e comiseração para conosco.
O Sacrum Convivium
Por fim, ao recebermos o Corpo Eucarístico de Jesus, o santo mártir nos exorta a não O deixarmos só. Devemos estar atentos à sua presença, plenamente disponíveis ao seu serviço, repetindo a cada instante como outrora o profeta: “Escutarei o que o nosso Senhor há de falar dentro de mim” (Sl 85, 8).
“Recebamos o nosso Senhor como o bom publicano Zaqueu, que, desejando ver Cristo e por ser baixo de estatura, subiu a uma árvore. Nosso Senhor, vendo a sua devoção, chamou-o e disse-lhe: ‘Zaqueu, desce porque hoje devo hospedar-me contigo’. E ele desceu com toda a pressa e recebeu-o com muita alegria na sua casa. Mas não o recebeu somente com a alegria de uma emoção superficial e passageira, antes provou com as suas obras virtuosas que o tinha recebido seriamente e com boa intenção.
“Com essa jovialidade, com esta presteza de espírito, com essa alegria e gozo espirituais com que esse homem recebeu o Senhor em sua casa, dê-nos o nosso Senhor a graça de receber o seu bendito Corpo e Sangue (…) nos nossos corpos e nas nossas almas, para que o fruto das nossas boas obras dê testemunho diante da nossa consciência de que o recebemos dignamente, e com uma fé tão plena e um propósito tão firme de viver bem, como estamos obrigados a fazer.
“Então Deus pronunciará a sua graciosa sentença e dirá à nossa alma como disse a Zaqueu: ‘Hoje a salvação entrou nesta casa’ (Lc 19, 9)”. [4]
Por André Luiz Kleina
[1] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. São Paulo: Loyola, 2006, III, q. 65, a.3.
[2] Do inglês: A treatice to receive the blessed body of Our Lord sacramentally and virtually both. Foi escrito em 1534.
[3] Do latim, “As minhas delícias são estar com os filhos dos homens”.
[4] SÃO THOMAS MORE. A sós, com Deus: escritos da prisão. São Paulo: Quadrante, 2002, p. 132-146.
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