Christianus alter Christus
Jesus morreu pela salvação de todos, mas deixou muito claro que do banquete celestial não participariam aqueles que escolhessem trilhar a senda das sombras e passar a vida de braços dados com o mal. O ódio que levou à morte de Cristo não recrudesceu e hoje se volta contra os cristãos, muitos deles lentos em se aperceberem disso.
Redação (25/03/2023 09:52, Gaudium Press) Todos os dias de nossa vida deveriam ser dedicados à reflexão, pois estar vivo, ter um corpo que absorve as suas energias da água, do ar e dos alimentos e que precisa de um desligamento diário para se autorreparar já é, por si só, digno de reflexão. Ver o sol nascer e se pôr todos os dias, com perfeita regularidade, e as estações se sobreporem umas às outras, desde que o mundo existe, é outro ponto que merece que dediquemos ao menos alguns minutos para refletir. E, acima de tudo isso, ter uma alma, uma identidade individual e única, e ser uma criatura de Deus, amada por Deus, para a qual Ele construiu a Terra e o Céu, deveriam nos colocar em estado meditativo contínuo. Estar vivo, existir, deveria ser um motivo de adoração perpétua.
No entanto, mal e de qualquer jeito, dedicamos alguns minutinhos corridos, roubados do celular e de outros afazeres, para uma oração feita às pressas, quase sempre preenchida por pedidos, e para uma Ave-Maria mal rezada antes de dormir, isto quando… Então, já que não conseguimos nos dedicar ao que deveria ser o fim único de nossa vida – louvar e glorificar a Deus –, deveríamos ao menos aproveitar os períodos mais propícios à reflexão e à meditação. Sem dúvida, a Quaresma é um deles e, embora as pessoas pareçam se preocupar cada vez menos com ela, os cristãos deveriam entender a Quaresma como tempo de renovação e mergulhar neste tempo com um espírito disposto a se purificar e aproximar-se de Deus.
Um permanente estado de urgência
Talvez por estar envelhecendo, tem me incomodado cada vez mais a pressa das pessoas, esse viver num permanente estado de urgência que, na verdade, é um não-viver. Beirando os 60 anos, pela lógica do mundo atual, eu deveria viver com muito mais pressa do que um jovem, que, em tese, pode ter mais 60 anos de vida pela frente, já que eu tenho muito menos. Contudo, cada dia me parece mais pitoresco, e será mais bem apreciado, se eu passar por ele lentamente do que se o atravessar correndo, tentando absorver tudo o que me é oferecido, apenas para chegar ao fim dele exausto e com uma tremenda sensação de vazio e de mais um dia perdido.
Instalei uma grande janela em meu quarto, e há anos me dedico a acordar mais cedo para ver o sol nascer. Esse é o combustível que me alimenta; são os minutos que posso ficar em silêncio e ouvir a voz de Deus, enquanto, lentamente, o sol se levanta no horizonte. Normalmente, antes de me colocar diante da janela, faço uma oração e uma leitura espiritual, conselho que recebi de um padre que muito admiro e que nunca mais deixei de seguir. E, na manhã de hoje, eu comecei a leitura de uma das Vias-Sacras escritas pelo insigne professor Plinio Corrêa de Oliveira; preciso admitir que as primeiras palavras ali postas me levaram às lágrimas.
“Conspiraram contra Vós, Senhor, os vossos inimigos. Sem grande esforço, amotinaram o populacho ingrato, que agora ferve de ódio contra Vós. O ódio. É o que de toda parte Vos circunda, Vos envolve como uma nuvem densa, se atira contra Vós como um escuro e frio vendaval. Ódio gratuito, ódio furioso, ódio implacável: ele não se sacia em Vos humilhar, em Vos saturar de opróbrios, em Vos encher de amargura; vossos inimigos Vos odeiam tanto que já não suportam vossa presença entre os viventes, e querem a vossa morte. Querem que desapareçais para sempre, que emudeça a linguagem de vossos exemplos e a sabedoria de vossos ensinamentos. Querem-Vos morto, aniquilado, destruído. Só assim terão aplacado o turbilhão de ódio que em seus corações se levanta”.
A guerra não acabou
E, assim, Nosso Senhor Jesus Cristo foi odiado, perseguido, aprisionado, torturado, crucificado e morto. Entretanto, Ele ressuscitou e é isso que é fundamental ao cristão entender: o inimigo perdeu essa grande batalha, porque Cristo morreu, mas ressurgiu, e instituiu sobre Pedro a sua Igreja, permanecendo, dessa forma, presente em nossas vidas, sobretudo no sacrifício da Eucaristia. Isso mostra que a guerra não acabou e o inimigo continua tentando vencê-la de todas as maneiras.
O Prof. Plinio prossegue dizendo: “Christianus alter Christus, o cristão é um outro Cristo. Se formos realmente cristãos, isto é, realmente católicos, seremos outros Cristos. E, inevitavelmente, o turbilhão de ódio que contra Vós se levantou, também contra nós há de soprar furiosamente”.
Um dos simbolismos evocados pela Quaresma é a representação do tempo que Jesus passou no deserto, mas não nos esqueçamos de que, se o demônio esteve nesse cenário para o tentar, e sendo os cristãos outros Cristos, a tentação é a primeira estratégia usada pelo inimigo para vencê-los. Infelizmente, muitos não passam nem do início dessa fase e já caem vencidos.
À medida que o cristão resiste, aumenta o potencial das estratégias de ataque e, nos dias atuais, são tantas que nem se podem elencar. Antes, o perigo estava lá fora, podíamos fugir com certa tranquilidade das ocasiões de pecado, cuidando de aonde íamos e com quem íamos. Agora, o perigo está dentro das nossas casas, no nosso bolso, na nossa mesinha de cabeceira e – perdoem-me a sinceridade – nos segue até mesmo no toilette, pois está dentro do bolso nosso celular e muitos não conseguem se separar desse aparelhinho mágico para absolutamente nada, tanto que, até na hora de dormir, o deixam ao lado da cama ou ainda embaixo do travesseiro!
Ofensivas contra o cristão
Com isso, o inimigo não precisa nos atrair para os locais que tem interesse em nos levar; nós facilitamos sua vida e o colocamos para dentro. “Nossa, Sr. Afonso, o senhor está exagerando! Está afirmando que o celular é coisa do demônio? Isso não é radical demais?” Longe de mim um despropósito desses! O celular e a internet estão entre as melhores invenções criadas até hoje. Tanto é que muitos dos que estão lendo este artigo, certamente, estão o fazendo pelo celular. Mas, se o inimigo entrou até dentro da Igreja, como afirmou o Papa Paulo VI: “a fumaça de Satanás entrou no templo de Deus”, como ele não entrará nas nossas casas se lhe damos esta facilidade?
Entre as ofensivas lançadas contra o cristão, estão as próprias premissas do Cristianismo: a bondade e misericórdia de Deus, o amor ao próximo, o perdão dos pecados. O inimigo – e a multidão incontável de seus asseclas – começa por tentar convencer que Deus, por ser misericordioso e bom, ama todas as pessoas igualmente, independente do que elas façam; depois passa pela instância de que temos de aceitar tudo em nome do amor ao próximo e, por fim, o golpe definitivo: como Deus perdoa todos os pecados, você não deve ter peso de consciência e nem se preocupar, porque, no final, todos vão para o Céu. Aliás, o inferno nem existe! Até parece que o demônio prima por manter vazia a sua residência.
E os cristãos vão caindo nesses engodos. Se conseguem resistir a um ou outro, logo vem a sanha do igualitarismo: por que ser diferente, agir diferente, pensar diferente? Todos os seres humanos são iguais, por isso devem se vestir da mesma maneira, falar da mesma maneira, ouvir o mesmo tipo de música e se divertir com o mesmo tipo de entretenimento.
Anteriormente, as roupas escandalosas ofendiam, hoje, é o vestir-se bem, com pudor e decência, que ofende os indecentes e constitui quase um crime. O modo de falar calmo, adequado e respeitoso chega a ser um desacato que humilha e perturba aqueles que querem mudar e modernizar a língua para que ela seja mais inclusiva. Ouvir música religiosa, ou boa música de um modo geral, fere as disposições dominantes de consumir lixo em ondas sonoras. Além do mais, ter um celular com internet na mão e não chafurdar na lama que o mundo virtual oferece é ser antiquado e não aproveitar a vida.
Ele deu a vida por você
Infelizmente, ainda há muitos cristãos que se apegam exclusivamente à promessa de Cristo de que Ele voltará para colocar ordem em todas as coisas. Sim, esta é uma verdade bíblica, Ele voltará e nós vivemos a esperá-Lo. Ele mesmo advertiu que virá a qualquer momento, inesperadamente, por isso, devemos vigiar e orar. Mas esses mesmos cristãos se esquecem de que Jesus também disse: “Eis que estou convosco todos os dias, até o fim dos tempos.” (Mt 28,20). De fato, Ele está conosco todos os dias, todos os momentos, e é diante dele que pecamos, que nos portamos mal e que nos deixamos levar pelos enganos dos seus inimigos, visíveis e invisíveis.
Se somos outros Cristos, devemos nos portar como tais, sem temer a mofa, o escárnio, a zombaria, as perseguições. Somos falíveis pecando muitas vezes, por isso, Nosso Senhor deixou-nos os sacramentos, deixou-nos o benefício de poder confessar os nossos pecados e obtermos o seu perdão muitas vezes, no decorrer da vida, durante a caminhada.
Não adianta viver uma vida inteira de pecados conscientes, de ofensas ao bom Deus, de desprezo aos que o seguem e achar que basta dizer, na hora da morte, da boca pra fora: “Eu pequei, mas me arrependo, por isso Deus vai me perdoar. Fecharei meus olhos na carne e os abrirei no Céu”. Jesus morreu pela salvação de todos, mas deixou muito claro que do banquete celestial não participariam aqueles que escolhessem trilhar a senda das sombras e passar a vida de braços dados com o mal.
Não digo que seja fácil, a batalha é árdua, as armadilhas são sutis e as ardilosas artimanhas de Satanás são muitas. Infelizmente, nos dias atuais, um verdadeiro cristão tende a ser um solitário, até mesmo em meio aos seus, mas que a companhia de sua solidão seja Aquele que, numa infame cruz, deu a vida por você. E, que fique claro: Ele morreu pelos seus pecados, mas não morreu para você continuar pecando!
Concluamos este raciocínio com a mesma citação que o Prof. Plinio usou para fechar a meditação da I Estação de sua Via-Sacra: “Preferi ser abjeto na casa de meu Deus a morar na intimidade dos pecadores” (Sl 83, 11). Reflita sobre isso, não espere a Quaresma do ano que vem para mudar de vida, porque, no dia chamado hoje, nunca temos a certeza de que haverá amanhã…
Por Afonso Pessoa
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