Cardeal Müller: o papado não é autocracia
“Quem quiser descrever a importância do papado para a Igreja Católica deve começar por Jesus Cristo”.
Redação (15/05/2023 11:21, Gaudium Press) A convite da Associação Logos e Persona, o ex-prefeito do Dicastério para a Doutrina da Fé, Cardeal Gerhard Müller, proferiu uma conferência em Turim, no último dia 7 de maio, sobre a importância do papado para a Igreja Católica.
Com efeito, há algum tempo, o cardeal vem aprofundando esse assunto, abordado na sua última obra “O Papa: Ministério e Missão”, lançada pela editora Cantagalli.
Identidade de Jesus histórico
O Cardeal Müller cita os textos evangélicos que fundamentam o primado de Pedro, recordando que “Pedro é, juntamente com os outros apóstolos, o guardião e testemunha da identidade do Jesus histórico até à sua morte na cruz, e do Cristo da fé graças ao acontecimento pascal. Consequentemente, Pedro é também o representante da unidade do círculo dos discípulos pré-pascal e da Igreja pós-pascal, que Deus estabeleceu com base no evento de Pentecostes”.
Pedro, o pescador, aquele que “negou covardemente Jesus em três ocasiões”; que, no mar de Tiberíades, Cristo perguntou três vezes se “Tu me amas mais do que estes” (Jo 21, 15-19) para reparar esta ofensa de ter negado o Mestre, teve de manifestar ali o seu amor pelo Redentor, porque “este amor a Jesus também operou a sua conversão” (Lc 22, 32). Mas, sobre esta Rocha, Cristo edificou Sua Igreja.
“O papado é, na sua essência mais íntima, um serviço à unidade de toda a Igreja na verdade do Evangelho. O ministério de Pedro não é um ofício secular de governante à maneira de reis absolutistas e czares autocráticos, mas um ministério pastoral-espiritual. Bispos e papas não devem seguir o exemplo de governantes seculares que oprimem e exploram seu povo. Em vez disso, eles devem se destacar por uma maior devoção à salvação eterna dos crentes. De fato, Jesus disse aos apóstolos, que discutiam sobre qual deles deveria ocupar o primeiro lugar: “… quem quiser tornar-se grande entre vós será vosso servo, e quem quiser ser o primeiro entre vós será vosso escravo. Como o Filho do homem, que não veio para ser servido, mas para servir e dar a sua vida em resgate por muitos”. (Mt 20,26-28)”, ressaltou o cardeal Müller.
Essa unidade da Igreja já foi destacada no século II por Santo Irineu de Lião contra os gnósticos:
“Contra a fundamental falsificação dos mistérios cristãos da Unidade e Trindade de Deus, da Encarnação, da sacramentalidade da Igreja e da corporeidade da Redenção, no final do século II, Irineu de Lião contra os gnósticos do seu tempo e de todos os tempos enfatizava a unidade (unitas) e a comunhão da Igreja universal com base na tradição apostólica. Na realidade, a Igreja, embora espalhada até aos confins da terra, e tendo recebido a fé dos Apóstolos e dos seus discípulos, conserva diligentemente esta pregação e esta fé e, como se vivesse numa só casa, ali se crê de um modo idêntico, como se tivesse uma só alma e um só coração, e prega as verdades da fé, ensina-as e transmite-as com uma voz unânime, como se tivesse uma só boca [. . .] De fato, se as línguas do mundo são variadas, o conteúdo da Tradição é, no entanto, único e idêntico. E nem as Igrejas que estão na Alemanha, nem as que estão na Espanha, nem as que estão com os celtas (na Gália), nem as do Oriente, Egito, Líbia, nem as que estão no centro do mundo, têm qualquer outra fé ou Tradição” [San Irenaeo di Lione, Adversus haereses, I, 10, 2.]”, observou o cardeal.
Ligados às Escrituras e à Tradição
Há uma diferença entre o conteúdo da revelação recebida por Pedro e pelos apóstolos e o recebido pelos bispos e pelo Papa:
“Permanece uma diferença crucial entre os apóstolos e bispos. Os apóstolos, com Pedro à frente, foram os destinatários diretos e portadores da plena autorrevelação de Deus em Cristo. Os bispos e o Papa, por outro lado, estão ligados em conteúdo à realização da revelação na Sagrada Escritura e na Tradição Apostólica. O ofício (…) de interpretar autenticamente a Palavra de Deus, escrita ou transmitida, é confiado apenas ao magistério vivo da Igreja, cuja autoridade é exercida em nome de Jesus Cristo. Este magistério, porém, não é superior à palavra de Deus, mas a serve, ensinando apenas o que lhe foi transmitido, na medida em que, por mandato divino e com a assistência do Espírito Santo, piedosamente escuta, guarda santamente e fielmente expõe essa palavra, e a partir deste único depósito de fé extrai tudo o que se propõe crer como revelado por Deus”. [Dei Verbum, 10.]
Dirigir-se ao Colégio Cardinalício
Embora haja a assistência do Espírito Santo, também é necessária “a melhor preparação humana possível” para se transmitir o depósito da fé, afirma o cardeal, e “tanto o Papa quanto os bispos são obrigados a fazê-lo em consciência”.
“Também – continua o cardeal alemão – para o governo geral da Igreja, o Papa deve primeiro dirigir-se ao Colégio Cardinalício que, afinal, representa a Santa Igreja Romana e – como o presbitério aconselha um bispo – aconselha o Papa colegialmente/sinodalmente. Um órgão consultivo constituído por um juiz supremo com critérios de complacência e clientelismo é de pouca utilidade e faz mais mal do que bem àquele que está no cargo, já que este não precisa do louvor que lisonjeia a vaidade humana, mas da perícia crítica de colaboradores que não estão interessados nos gestos benevolentes do superior, mas no sucesso do seu ofício, isto é, do pontificado, para a Igreja de Deus Uno e Trino”.
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