Cachorros, como resistir?
Itália recebe grifes de luxo para pets. Em 366 cidades da Espanha, a população canina supera a humana. Brasil abriga a segunda maior população de cães do mundo. Coisas para se pensar…
Redação (14/01/2023 16:57, Gaudium Press) Estou entrando na casa dos sessenta e não me lembro de nem uma época da minha vida que não houvesse um cachorro na minha família. Em vários momentos, mais que um. Algo que sempre achei normal e saudável. A diferença é que, com o passar do tempo, as pessoas estão diminuindo e as posições se invertendo. Hoje, nós já não temos cachorros, são eles que nos têm e, dado o domínio que eles conseguiram sobre os seres humanos, nós é que moramos na casa deles, embora ainda sejamos os responsáveis por pagar as contas – as nossas e as deles, cada vez mais altas, por sinal.
Existiam regras bem claras, que tanto nós, humanos, conhecíamos, como eles, cães, respeitavam. Lá em casa, cachorros não usavam roupa, dormiam no quintal, tomavam banho de mangueira e comiam sobras dos alimentos da família. Eram espertos, saudáveis, não tinham manias e nem chiliques, não tomavam remédios, ignoravam a existência de veterinários, que, aliás, quase nem existiam, dificilmente perdiam os dentes e viviam uma média de 15 a 18 anos. Morriam de velhice.
Com o passar do tempo, os cachorros sofreram uma grande transformação. Quero dizer, logo de início, que a responsabilidade não é deles, eles simplesmente se adaptaram aos nossos desatinos de tentar torná-los o complemento ideal para a nossa vida e o remédio para todas as nossas frustrações.
Um mercado que não para de crescer
Há tempos penso em escrever sobre esse tema. Primeiro, por observar o crescimento exponencial do mercado pet, que movimenta fortunas. De acordo com dados da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet), o Brasil abriga a segunda maior população de cães e gatos do mundo e é o terceiro maior país em população total de animais de estimação. Um mercado que não para de crescer. Durante a pandemia, por exemplo, o PIB do país encolheu, mas o setor pet cresceu de 13%.
Outro ponto que merece destaque é o crescimento das exportações brasileiras da indústria pet. Nos últimos dois anos, a alta foi de 33%, impulsionada principalmente pelo pet food, que responde por 95% das exportações. Atualmente, o Brasil é um dos 10 países que mais exportam pet food no mundo, além de ser o 3º maior produtor global de alimentos para animais.
Com isso, é muita ingenuidade achar que as pessoas tiveram um surto espontâneo de amor aos animais nos últimos anos. Não, elas foram e continuam sendo levadas a se apaixonarem pelos bichinhos e a comprarem produtos cada vez mais caros e, vamos ser bem sinceros, desnecessários.
As pessoas dão aos seus animais, cachorros e gatos, em sua maioria, o que gostariam de ter para si e fazem deles os seus grandes amores. E eles são mesmo, isso é inegável. Eu não tenho gatos, então vou falar do que conheço: amor de cachorro é algo quase impossível de resistir.
Tem cachorro que é chato pra cachorro!
O problema é que nós os estamos transformando. Na minha modesta opinião – que encontra eco nas de vários especialistas –, nossa relação com os cães está cada vez mais doentia e corremos o risco de chegar a um patamar em que não saberemos ou não desejaremos mais nos relacionar com outros seres humanos.
E não é porque o amor de cachorro seja incondicional, por eles nos aceitarem como somos e perdoarem todos os nossos defeitos etc. Isso é balela. Tem cachorro que é chato pra cachorro! Eles dão um trabalho danado, fazem as necessidades onde não devem, destroem roupas, móveis e calçados, soltam pelos por todo lado, ocupam os melhores lugares dos sofás, pulam na gente quando não devem, são inconvenientes, babam, adoecem com facilidade, se tornam indóceis quando contrariados, consomem boa parte dos nossos salários, nos envergonham diante das visitas e, enfim, dominam as nossas casas e as nossas vidas.
Mas, mesmo com tudo isso, são adoráveis e nos proporcionam um nível de afeto difícil de conseguir em outros tipos de interação. Benditos sejam os cachorros, que tornam as nossas vidas muito mais agradáveis, apesar do gasto, das contrariedades e do trabalho que nos dão. Isso quando não dormem nas nossas camas e nos obrigam a dormir encolhidos para não atrapalhar o seu conforto. Não sei estimar a quantidade de cães que dormem nas camas dos donos (palavra já ultrapassada, o correto agora é tutores), mas, arrisco dizer que beira os 90%.
Grifes famosas fazem desfile de moda para pet
Uma notícia que aumentou o meu desejo de escrever sobre esse perigoso mergulho que temos feito num mundo de fantasias é a das marcas famosas que estão produzindo roupas e acessórios de grifes para pets, com direito a desfile de moda!
Este ano, entre os dias 10 e 13 de janeiro, o Pitti Uomo, um dos mais tradicionais eventos de moda da Itália, fez uma seção especial de roupas e acessórios para animais, o Pitti Pets, com a participação de 15 marcas de luxo voltadas ao mundo pet. Um levantamento apontou que, a cada ano, os italianos gastam quase 950 milhões de euros apenas para cuidar de seus pets, mais de 50% do que gastam com as crianças.
Mais cachorros do que pessoas
Na Espanha, a situação tem se tornado preocupante. Em 366 cidades, a população canina supera a humana e, em mais de mil, equivalem a mais de 70% dos habitantes. Na cidade de Bilbau, por exemplo, a natalidade despenca e já há mais cães do que crianças: 38.500 cães contra 30.700 crianças menores de 12 anos.
Tem aumentado o número de pessoas que não querem mais que um filho e o das que não querem filho nenhum, pelo menos não humano, por isso tem aumentado consideravelmente a quantidade de “pais de pets”.
Uma proporção muito desigual, pois, além da diminuição da taxa de natalidade, uma mulher leva 9 meses para gestar um filho, e uma fêmea canina, apenas 60 dias. Excetuando os raros casos de partos de gêmeos, as mulheres costumam ter apenas um bebê por vez, enquanto as cachorrinhas chegam a parir 8, ou mesmo 10 filhotes a cada gestação. Às vezes, até mais.
O outro lado da moeda
Aí entra o lado mais ingrato desta moeda: a superpopulação de cães e o consequente abandono. São muitas as ongs e entidades que cuidam de animais e que estão com superlotação e dificuldade para arrumar lares para os cães abandonados. Infelizmente, muita gente ainda prefere “cão de grife”, mais um motivo que nos leva a questionar essa súbita onda de amor animal.
Há estudos que mostram a evolução da amizade entre homens e cães, e estima-se que essa relação pode ter mais de 20 mil anos. E nós interferimos muito no desenvolvimento deles, provocando modificações significativas em sua genética e em seu comportamento. Até há algumas décadas, a maioria dos cachorros serviam como guardiões das casas, mas, a relação entre os homens e eles tem mudado tanto que, hoje, temos uma legião de cães medrosos e afetados, com medo de tudo e comportamentos que não condizem com a sua condição de cão.
Tem cachorro que precisa tomar calmante! Eles desenvolveram boa parte das patologias que nos acometem e parecem ir aprendendo os nossos hábitos comportamentais. Poderia dizer que grande parte dos cachorros se parecem muito com os seus donos, mas, não estaria sendo preciso; na verdade, cada vez mais os humanos é que estão ficando parecidos com os seus animais.
Não consigo imaginar aonde isso vai chegar porque, como há muito dinheiro e interesses comerciais envolvidos, a probabilidade é a de que tenhamos cada vez mais cachorros e nos tornemos cada vez mais afeiçoados e dependentes deles.
Circula na internet um vídeo que propõe uma hipótese que é imediatamente respondida: se numa situação de perigo a pessoa tivesse de salvar o seu cachorro ou uma pessoa desconhecida, quem ela salvaria? Resposta: o cachorro e com um complemento: “se tivesse de escolher entre o meu cachorro e uma pessoa conhecida, ainda escolheria o cachorro e, se a escolha fosse entre uma pessoa conhecida, e um cachorro desconhecido, dependendo da pessoa, a escolha ainda seria o cachorro”. É uma brincadeira, mas, quantos não agiriam assim na vida real?
Criaturas muito especiais
Eles têm afeição por nós, não há dúvidas sobre isso e, muitas vezes, eles são a nossa única fonte de afeto e, amá-los, pode ser a única forma de sobrevivência para muitas pessoas em situação de miséria absoluta. Poucas coisas no mundo me comovem tanto quanto um morador de rua aquecido pelo carinho de seu cão. Confesso que, em muitos momentos difíceis da minha vida, quando cheguei perto de perder o controle, o olhar ou o toque da pata de um cão me ajudou a recuperar a calma, o bom senso e até a alegria e, em minhas orações, sempre há uma ação de graças pelos meus cães.
É certo que eles são criaturas muito especiais feitas por Deus para completar a nossa vida. Eles conhecem as nossas emoções e reagem de acordo com a percepção que têm delas. Eles merecem carinho, cuidados e proteção. O grande problema está em eles tomarem o lugar das pessoas em nossos corações. Isto é uma subversão, e uma subversão perigosa, porque ela está a um passo de eles virem ocupar, na nossa vida, o lugar do próprio Deus.
Por Afonso Pessoa
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