Até o papa enganou-se?
Nosso Senhor confere a São Pedro, o primeiro papa, as chaves do Reino dos Céus, e nos ensina a distinguir a ação inspiradora e veraz do Espírito Santo.
Redação (26/08/2023 20:15, Gaudium Press) A narração de São Mateus no Evangelho de hoje é tão rica em expressividade que não seria muito difícil transformá-la em uma magnífica peça teatral: há personagens, falas, e até mesmo cenário.
Nosso Senhor acabava de partir de Betsaida, onde havia curado um cego (cf. Mc 8,22-26), e agora chegava com os discípulos a Cesareia de Filipe, cidade situada aproximadamente a 50 Km de Betsaida, num território de exuberante beleza, ao norte da Palestina. Tinha esse nome porque Herodes – chamado o Grande – havia edificado ali um templo destinado ao culto de César Augusto, e, mais tarde, quando Filipe tornou-se tetrarca da região, deu o nome de “Cesareia” a esta localidade, para conquistar as simpatias do imperador.[1]
Provavelmente, a cena do Evangelho de hoje deu-se ao lado desse edifício pagão, o qual, com solidez e vigor, erguia-se no alto de um rochedo, dominando o panorama.[2]
“Pedro, tu és pedra”
Todo esse cenário dá outra vida ao Evangelho de hoje:
Naquele tempo, Jesus foi à região de Cesareia de Filipe e aí perguntou aos discípulos: “Quem dizem os homens ser o Filho do Homem?” Eles responderam: “Alguns dizem que é João Batista; outros que é Elias; outros, ainda, que é Jeremias ou algum dos profetas”. Então Jesus lhes perguntou: “E vós, quem dizeis que Eu sou?” (Mt 16,13-15).
Cabe aqui ressaltar a diferença entre as duas perguntas de Nosso Senhor: na primeira, refere-se a Si mesmo como “Filho do Homem”; na segunda, como “Eu”. Isso tem muita importância, pois trata-se de uma pedagogia realmente divina que Jesus empregava para formar os Apóstolos, pois visava assim “convidá-los a conceber pensamentos mais altos sobre Ele, e mostrar-lhes que a primeira sentença ficava muito abaixo de sua autêntica dignidade”.[3] Então São Pedro, sempre muito expansivo, adianta-se em responder-Lhe, dando continuidade à cena:
“Tu és o Messias, o Filho do Deus vivo”. Respondendo, Jesus lhe disse: “Feliz és tu, Simão, filho de Jonas, pois não foi um ser humano que te revelou isso, mas o meu Pai que está no céu. Por isso eu te digo que tu és Pedro, e sobre esta pedra construirei a minha Igreja, e o poder do inferno nunca poderá vencê-la. Eu te darei as chaves do Reino dos Céus: tudo o que tu ligares na terra será ligado nos céus; tudo o que tu desligares na terra será desligado nos céus (Mc 16,16-19).
Estavam estabelecidas tanto a instituição do papado quanto a invencibilidade e imortalidade da Igreja Católica.
O leitor deve ter notado, ademais, que foi nesse momento que Jesus deu ao primeiro papa o nome de Pedro, pois antes ele se chamava Simão. No aramaico, Pedro e pedra são expressos pela mesma palavra: kefa’. Ou seja, Nosso Senhor estava edificando a Igreja sobre esta kefa’ – pedra – que era Pedro.[4] Se, de fato, Nosso Senhor estava com os discípulos ao lado desse templo pagão construído sobre um imponente rochedo, os Apóstolos tinham um exemplo concreto do que significava ser a “pedra onde seria edificada a Igreja”.
Eis a força do papado!
Um binômio perigoso
São Pedro teve a honra de ser escolhido por Nosso Senhor para proteger e governar a Igreja fundada por Ele próprio logo após a tão acertada resposta. É de se notar, contudo, que ela não proveio de sua própria cabeça. Quem revelou-lhe tão alta verdade foi o próprio “Pai que está no céu” (cf. Mt 16,17). Fato muito importante sobretudo para entendermos a cena que se seguiu à do Evangelho de hoje – aliás, não considerada neste 21° domingo do Tempo Comum.
Nos versículos subsequentes, Nosso Senhor anuncia aos Apóstolos os trágicos acontecimentos de sua Paixão. São Pedro não pôde conter-se e, voltando-se ao Mestre, O corrige. Como resposta, Jesus dirige palavras duríssimas ao Chefe dos Apóstolos, as quais contrastam espantosamente com as que vimos acima: “Afasta-te, satanás” (Mt 16,23). Como entender isso? Por acaso até o papa – o primeiro, diga-se de passagem – pode equivocar-se?
É conhecido de todos o dogma da infalibilidade pontifícia. O papa “será assistido pelo Espírito Santo para ensinar a verdade”,[5] sendo infalível em pronunciamentos ex cathedra, “isto é, quando, no desempenho do múnus de pastor e doutor de todos os cristãos, define com sua suprema autoridade apostólica que determinada doutrina referente à Fé e à moral deve ser assumida por toda a Igreja”.[6]
Ora, não se pode dizer que foi por inspiração do Espírito Santo que São Pedro repreendeu a Nosso Senhor; do contrário, não mereceria escutar tão severa correção. Quem falava nele nessa segunda ocasião era a sua natureza decaída pelo pecado original.[7] Assim, fica muito bem vincada, no Evangelho, a distinção existente entre a veracidade que nos vem por meio das inspirações sobrenaturais, e a falsidade proveniente da fraqueza da carne. Tal binômio que ocorreu com o primeiro papa e, infelizmente, com tantos outros ao longo da história da Igreja, também pode-se passar com cada um de nós.
Neste domingo, então, somos convidados a ser vigilantes, a fim de distinguirmos em nós o que provém da carne e o que provém de Deus.
Por Lucas Rezende
[1] Cf. FILLION, Louis-Claude. Vida de Nuestro Señor Jesucristo. Vida Pública. Madrid: Rialp, 2000, v. 2, p. 270-271.
[2] Cf. TUYA, Manuel de. Biblia Comentada. Evangelios. Madrid: BAC, 1964, v. 5, p. 368-369.
[3] JOÃO CRISÓSTOMO, Santo. Homilia LIV, n. 1. In: Obras. Homilias sobre el Evangelio de San Mateo (46-90). 2. ed. Madrid: BAC, 2007, v.2, p. 138.
[4] Cf. JONES, Alexander. Comentario al Evangelio de Sant Mateo. In: ORCHARD, Bernard (Org.) et al. Verbum Dei. Comentario a la Sagrada Escritura. Nuevo Testamento: Evangelios. Barcelona: Herder, 1957, p. 416; Cf. etiam: LAGRANGE, Marie-Joseph. Évangile selon Sain Matthieu. 4. ed. Paris: J. Gabalda, 1927, p. 323-324.
[5] CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O inédito sobre os evangelhos. LEV: Città del Vaticano, 2013, v. 2, p. 298.
[6] (DH 3074).
[7] CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Op. cit., p. 300.
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