Aproveitar o tempo
Advirtam aos que pensam cingir o mundo com suas pregações e obras exteriores, que muito mais proveito fariam à Igreja se gastassem metade deste tempo estando com Deus em oração.
Redação (01/03/2021 16:00, Gaudium Press) Em geral, às pessoas que praticam o bem – seja no âmbito familiar, paroquial ou de algum movimento – lhes falta tempo para realizar todo o bem que se propõem a fazer. Gostariam de ter mais disponibilidade, mais recursos, mais colaboradores, mais influência…
Como resultado da atual pandemia, as relações interpessoais, bem como tantas outras atividades, foram restringidas, quando não suprimidas. Assim, por um lado, todos se tornaram mais livres e disponíveis e, por outro, mais limitados em suas ações e mais isolados. Haverá, nessas duras e peculiares circunstâncias, alguma vantagem a ser tirada?
As duas faces do espírito humano: a vida ativa e a vida interior
Consideremos que, assim como uma moeda tem duas faces, assim também acontece com o espírito humano, com as pessoas. Uma das faces é a vida ativa, exterior; a outra é a vida interior, ou seja, a vida da alma, do intelecto, do pensamento, da oração, etc.
Ambas importam, sendo que a prioridade recai sobre a vida interior, como vemos em Betânia, onde “Maria escolheu a melhor parte” (cf. Lc 10,42). Na ocasião, as irmãs de Lázaro estavam recebendo o Mestre em sua casa, e cada uma valorizava a sua presença a seu modo: Marta esforçava-se por servi-lo enquanto Maria o escutava, encantada aos seus pés. Estariam ambas dando ao Senhor tanto quanto Ele poderia esperar delas?
Do relato evangélico parece desprender-se que a cada uma faltou algo da “outra face da moeda”, já que a perfeição consiste em ter, ao mesmo tempo, a disposição de contemplar e de trabalhar. Ou, se quiser, trilhar as vias mística e ascética em harmonia… sempre dando prioridade “a melhor parte”.
Sem o empenho de amar a Deus, os trabalhos são inférteis
Agora, acontece que, ao trabalhar pelo Reino de Deus, as pessoas tendem a negligenciar sua relação pessoal e íntima com Ele, jogando-se na arena das obras, com a ilusão de que estão servindo bem a Ele, e, na realidade, muitas vezes não se faz senão o ruído de um “bronze que soa ou de um címbalo que retine” (1Cor. 13,1). É que, sem o empenho de amar a Deus e de estar em dia com Ele, os trabalhos são inférteis. Poderão ser muito chamativos, mas não são tão importantes e podem até ser contraproducentes.
Há um escrito de São João da Cruz que ilustra bem este fenômeno da ilusão, tão comum entre os fiéis, de que fazendo coisas – coisas boas, sem dúvida, mas sem a devida visualização – agradam a Deus e se justificam. Como se sabe, este Santo é um místico carmelita de alto voo que tem ainda uma pena requintada. É um Doutor da Igreja, o que significa que seu ensinamento não é banal, é válido para todas as pessoas, em todos os momentos. Comentando a canção 29 de seu Cântico Espiritual, assim escreve:
“Advirtam aqui aqueles que são muito ativos que pensam cingir o mundo com suas pregações e obras exteriores, que muito mais proveito fariam à Igreja e muito mais agradariam a Deus (deixando de lado o bom exemplo que seria dado) se gastassem metade deste tempo estando com Deus em oração (…) Então fariam mais e com menos trabalho, e com uma obra mais que com mil, merecendo sua oração e tendo adquirido forças espirituais nela; porque, do contrário, tudo é martelar e fazer pouco mais do que nada, às vezes até mesmo nada, às vezes até causando danos”.
As “boas obras” daqueles que negligenciam a amizade com Deus, são obras mortas
Essas frases são do gênero prosa, embora tenham gosto de poesia magistral. Muito se aproveitará em relê-las, “ruminá-las”, meditá-las e, sobretudo, colocá-las em prática. As “boas obras” daqueles que negligenciam a amizade com Deus, não vêm de Deus; são obras mortas, sem mérito, e não contam para a vida eterna.
Deste vício do ativismo com descuido espiritual, não estiveram isentos em seu tempo os seguidores de Jesus. Depois de testemunhar o portentoso milagre da multiplicação dos pães, alguns se aproximaram do Senhor para perguntar-lhe: “O que devemos fazer para praticar as obras de Deus? Jesus respondeu: “A obra de Deus é que creiam nAquele que Ele enviou” (Jo. 6, 28-29). Voltemos à passagem evangélica; eles perguntam “Que obras fazer?”, e Nosso Senhor lhes responde que o que deve ser feito é um ato de Fé: “A obra de Deus é que eles creiam nAquele que Ele enviou”. Embora fossem pessoas boas que queriam ser úteis, não parece que tenham entendido a fundo a resposta.
A citação do Evangelho de São João e o ensinamento do Santo Carmelita são muito apropriados para meditar diante do Santíssimo. Porque se a obra de Deus é acreditar em seu Mensageiro, então nada como a Eucaristia para fazer um ato de Fé, de Fé específica na maneira como Ele quis permanecer em sua Igreja para ser adorado, celebrado e comido; Fé na Sua presença real na Eucaristia que é, por excelência, o mistério da Fé.
Então, caro leitor, quanto tempo estamos dedicando à vida de Fé e quanto tempo às atividades externas? Não se trata de calcular e dividir matematicamente esses tempos, mas não vamos dar um pouco a Deus, apenas alguma coisa… ou nada!
Cultivemos a amizade com Deus
A impossibilidade física de não poder estar presencialmente perante o Santíssimo Sacramento não constitui um obstáculo para fazer atos de Fé, Esperança e Caridade no Divino Sacramento. Precisamente, a separação pode potencializar o relacionamento; assim acontece com as pessoas que se amam muito: sentindo a ausência, aumentam a saudade e alimentam o desejo de reencontro.
Dediquemo-nos a cultivar a amizade com Deus e voemos em espírito até algum tabernáculo, perto ou longe, para adorá-lo, fazendo, por exemplo, uma comunhão espiritual. Do Santíssimo Sacramento vem parte da energia que dará fecundidade a todos os empreendimentos e boas intenções, “porque de outra maneira, tudo é martelar e fazer pouco mais do que nada, às vezes até mesmo nada, às vezes até causando danos”. “Eles trariam mais benefícios para a Igreja e muito mais agradariam a Deus – deixando de lado o bom exemplo que seria estabelecido – se eles gastassem metade desse tempo estando com Deus em oração”. Definitivamente é assim.
Os antigos diziam: “fugit irreparabile tempus“, o tempo nos escapa, foge irremediavelmente. Quanto se perde! Muitas vezes se perde tempo com banalidades ou entre lamentos e reclamações, ao invés de usá-lo para o louvor, a reparação, a petição, a ação de graças… a vida da alma!
Mairiporã, 1º de março de 2021
Por Padre Rafael Ibarguren EP – Assistente Eclesiástico das Obras Eucarísticas da Igreja.
Traduzido por Emílio Portugal Coutinho.
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