A quem iremos, Senhor?…
Em um episódio decisivo no anúncio do Reino de Deus, os discípulos se dividiram entre aqueles que se escandalizaram com as palavras de Jesus e aqueles que, mesmo sem entendê-las, aceitaram-nas por um ato de fé.
Redação (25/08/2024 15:16, Gaudium Press) “Como pode este Homem dar-nos de comer a sua Carne?” (Jo 6,52), perguntavam entre si os judeus que ouviram Jesus fazendo referência ao Sacramento da Eucaristia. E Ele lhes respondeu: “se não comerdes a Carne do Filho do Homem, e não beberdes o seu Sangue, não tereis a vida em vós mesmos” (Jo 6, 53).
Com uma fé insuficiente, como poderiam alcançar o verdadeiro significado das revelações feitas pelo Messias?
Os judeus não queriam admitir que o Divino Redentor pudesse Se autodenominar “pão da vida” (Jo 6,48). De fato, Ele o é, tanto pela divindade, como por sua humanidade. Enquanto Deus, Ele cria, sustenta no ser e alimenta todos os viventes. Ao assumir um corpo, sua Carne é vivificante por ser o Verbo de Deus. Da mesma forma que o ferro se torna incandescente ao ser introduzido no fogo, adquirindo a substância e as propriedades deste, sem deixar de ser ferro, assim também o sagrado Corpo de Jesus está unido à natureza divina. Por isso, sem a Eucaristia o homem pode ter vida natural, mas não a vida eterna.
Hoje nos damos conta de quanto a rejeição dos judeus ao precioso convite de Nosso Senhor é inexplicável. Os seus antepassados haviam adorado não poucos deuses falsos, além de terem admitido as mais absurdas doutrinas. Ao Se apresentar como verdadeiro Deus, oferecendo-Se como alimento de imortalidade, a reação deles foi de repulsa.
Quando Moisés subiu ao Monte Sinai para receber as Tábuas da Lei, os israelitas permaneceram à sua espera no sopé da montanha. Como tardasse muito a descer e o povo estivesse já cansado, Aarão foi instado a fazer-lhes um deus visível que eles pudessem seguir, indo adiante deles nos deslocamentos (cf. Ex 32,1). No fundo queriam ter um Deus — um Elohim, o Deus verdadeiro que criou o Céu e a Terra — sob espécie visível. Ora, o que Jesus lhes oferecia, neste discurso eucarístico do capítulo 6 de São João, é bem isto: “Eu sou o pão vivo que desceu do Céu. Quem comer deste pão viverá eternamente” (Jo 6, 51).
É um paradoxo: o que os judeus pediram a Aarão, recebemos nós. Sim, na Eucaristia está o Elohim sob as espécies visíveis. Com uma grande diferença: os judeus julgaram ser possível operar esta maravilha por mãos humanas e nós cremos, com toda a fé, que isto se realiza por exclusiva autoridade divina: “fazei isto em memória de Mim” (Lc 22,19). O curioso é que, apesar de os judeus acreditarem ser possível realizar este grande mistério através de forças naturais e humanas, não creram que Deus onipotente fosse capaz de concretizá-lo.
Mistério da Fé
Nas palavras de Cristo se encontra um grandioso mistério: “Caro enim mea verus est cibus, et sanguis meus vere est potus — minha Carne é verdadeiramente uma comida e o meu Sangue, verdadeiramente uma bebida” (Jo 6,55).
Ouçamos São Tomás: “Que o verdadeiro Corpo e Sangue de Cristo estejam no Sacramento não se pode apreender pelo sentido, mas somente pela fé, que se apoia na autoridade divina”.[1]
O problema se centra em que “toda conversão que acontece segundo as leis da natureza é formal”.[2] Ora, no caso da Eucaristia devemos considerar que a ação de Deus “se estende a toda natureza do ser. Portanto, Ele não só pode realizar a conversão formal […]; mas também a conversão de todo o ser, de modo que toda substância de um ser se converta em toda a substância de um outro. E isso se realiza, portanto, neste Sacramento pelo poder divino. Com efeito, toda substância do pão se converte em toda a substância do Corpo de Cristo, e toda a substância do vinho, em toda a substância do Sangue de Cristo. Por isso, esta conversão não é formal, mas substancial. […] pode-se chamar com o nome apropriado de ‘transubstanciação”.[3]
Ademais, devemos considerar que as dimensões da Hóstia consagrada não correspondem às do Corpo de Nosso Senhor. Ela continua com as mesmas medidas que lhe eram próprias quando nela se encontrava a substância pão.[4] Porém, “é absolutamente necessário confessar, segundo a Fé Católica, que Cristo está todo neste Sacramento”.[5]
A virtude da obediência
“Muitos dos discípulos de Jesus que O escutaram disseram: ‘Esta palavra é dura. Quem consegue escutá-la?’” (Jo 6,60)
Eis por que muitos discípulos que O ouviram disseram esta frase com respeito à Eucaristia. Faltou-lhes entoar o cântico: “Prestet fides supplementum, sensuum defectui — Que a fé complete a insuficiência dos sentidos”, como diz o Pange lingua. Ou “Visus, tactus, gustus in te fallitur, sed auditu solo tuto creditur — A vista, o tato, o paladar em Vós falham, mas só pelo que ouço, acredito firmemente”, nos versos do Adoro Te devote.
Qual deve ser então, nossa atitude diante das verdades de nossa fé?
Sendo Deus o Senhor de toda a criação, os seres inteligentes – Anjos e homens – têm obrigação de reconhecer, amar e servir este senhorio. Ele é Senhor de todas as nossas faculdades e, sobretudo, de nosso entendimento e vontade. Daí ter afirmado São João da Cruz[6] que, no entardecer desta vida, seremos julgados segundo o amor, pois estamos obrigados a querer o que Deus deseja que queiramos.[7]
Ora, na ordem do universo está incluída a vontade do homem, a qual, por ser livre, deve estar em harmonia com a de Deus através da virtude da obediência.[8] Esta última não é uma virtude superior às teologais, fé, esperança e caridade. Todavia, é um meio veloz para unirmo-nos a Deus e sermos agradabilíssimos a Ele. Através dela fazemos uma entrega em suas adoráveis mãos, com mais valor do que se fizéssemos qualquer sacrifício.[9]
Aí está bem focalizado o convite à prática da obediência que nos é feito pela Liturgia deste 21º Domingo do Tempo Comum: na primeira leitura (Js 24,1-2a.15-17.18b), com as palavras de Josué: “Quanto a mim e à minha família, nós serviremos ao Senhor” (24,15), obtendo do povo a resposta: “nós também serviremos ao Senhor, porque Ele é nosso Deus” (24,18); na segunda leitura (Ef 5,21-32), epístola de Paulo: “Vós que temeis a Cristo, sede solícitos uns para com os outros. […] Cristo é a Cabeça da Igreja, Ele, o Salvador do seu Corpo. […] como a Igreja é solícita por Cristo, […] como o Cristo amou a Igreja e Se entregou por ela” (Ef 5,21.23-25); e, sobretudo no Evangelho, a propósito da fé, causando-nos perplexidade aquela apostasia de “muitos dos discípulos”, que se recusaram a crer e, em consequência, a obedecer.
Excelente ocasião de um exame de consciência para quem vive em nossa época: qual o grau de fé e de submissão a Deus, à Igreja e ao Evangelho?
Extraído, com adaptações, de:
CLÁ DIAS, João Scognamiglio. O inédito sobre os Evangelhos: comentários aos Evangelhos dominicais. Città del Vaticano-São Paulo: LEV-Instituto Lumen Sapientiæ, 2014, v. 4, p. 311-325.
Por Guilherme Maia
[1] SÃO TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. III, q. 75, a. 1.
[2] Idem, a. 4.
[3] Ibidem.
[4] Cf. Ibid.
[5] Idem, a. 1.
[6] Cf. SÃO JOÃO DA CRUZ. Dichos de Luz y Amor, n.59. In: Vida y Obras. 5. ed. Madrid: BAC, 1964, p. 963.
[7] Cf. SÃO TOMÁS DE AQUINO, op. cit., II-II, q. 104, a. 4, ad 3
[8] Cf. Idem, a. 1; a. 4.
[9] Cf. Idem, a. 3, ad 1.
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