A ira pode ser uma virtude?
O amor e o ódio se complementam, porque só tem verdadeiro amor quem odeia o contrário.
Redação (07/11/2020 15:39, Gaudium Press) O amor humano é uma paixão “forte como a morte” (Ct 8, 6). Quem é tomado pelo amor quer, quer muito, e quer tanto que está disposto a tudo para alcançar o objeto de seu entusiasmo.
Distinto do mero sentimento — pois consiste na vontade posta em movimento —, o amor não é irracional; com efeito, a vontade adere ao que a inteligência indica ser desejável.
Entretanto, ele não persegue de igual modo os seus desejos, mas se lança com tanto maior empenho quanto mais apetecível for o bem buscado. Por exemplo, é maior a determinação do cientista em conquistar um prêmio internacional do que em disputar um título municipal!
Ora, sendo Deus o Bem desejável por excelência, a Religião — que “liga” a alma ao Criador — é precisamente a motivação mais possante para mover a vontade; por isto, nada existe no mundo capaz de deter aquele cujo amor é movido por uma questão religiosa.
Naturalmente, isto vale para o bem e o mal. Mas quando a graça santifica a paixão natural, do amor humano surge a virtude da caridade que, por sua vez, torna o homem capaz de façanhas muito acima de sua natureza. Para este amor, simplesmente, nada é impossível!
O amor de Jesus é de uma perfeição insuperável não apenas em razão de sua Pessoa divina, mas também por causa da excelência de sua natureza criada. Seu amor por nós é tão grande que absolutamente nada poderá vencê-lo (cf. Jo 10, 29; Rm 8, 38-39).
Sobretudo, seu amor por Deus supera nosso entendimento: além da virtude da caridade, Jesus-Homem constitui com o Filho de Deus uma só Pessoa! Deste amor intensíssimo fluem todos os bens.
Se tal é o amor de Cristo, como explicar atitudes de radical intransigência, como a de expulsar do Templo os vendilhões? Ter-Se-ia Ele deixado dominar pela ira? Então, em Jesus não era tudo santo, equilibrado e harmônico com seu amor a Deus?
Sim, era, mas o amor e o ódio se complementam, porque só tem verdadeiro amor quem odeia o contrário. Manifestando o amor ao Pai, a ira de Cristo levou-O muitas vezes a tomar atitudes que hoje seriam consideradas “intolerantes”, mas que refletiam na Terra as disposições do Senhor, pois “a ira de Deus se revela, do alto do Céu, contra toda a impiedade e iniquidade dos homens” (Rm 1, 18).
Esta ira, longe de ser pecado, é louvável, porque consiste em “desejar a vingança conforme à ordem da justiça” e “corrigir todo mal” (São Tomás de Aquino. Suma Teológica. III, q.15, a.9). Como indica o Apóstolo: “Não pagueis a ninguém o mal com o mal, […] mas deixai agir a ira de Deus, porque está escrito: A Mim a vingança; a Mim exercer a justiça, diz o Senhor” (Rm 12, 17-19).
Deus é clemente, mas também justo
O Divino Mestre não veio pregar a impunidade nem o laxismo moral. Deus é clemente, mas também justo. E, em face de benefícios gratuitos de tal monta, devemos ter presente que em certo momento precisaremos prestar contas ao Benfeitor. Porque, como ensina Santo Afonso de Ligório, “a misericórdia foi prometida a quem teme a Deus e não a quem dela abusa […] se Deus espera com paciência, não espera sempre”.
A justiça e o perdão devem andar juntos. Justiça não é vingança cega, mas reparação da ordem moral violada. Essa é a regra que Nosso Senhor veio estabelecer entre os homens.
Em certas ocasiões, apontar as faltas cometidas pelos outros é uma obrigação moral relativa ao oitavo Mandamento da Lei de Deus; em caso de omissão, a pessoa pode tornar-se culpada de cumplicidade. Pois é necessário denunciar o pecador obstinado, não só para o bem de sua própria alma, convidando-o à emenda, mas também para precaver os bons.
Não foi sem razão que Cristo, para cessar o escândalo dos vendilhões no Templo, expulsou-os a golpes de chicote, deitando por terra o dinheiro dos cambistas (cf. Jo 2, 14-16); e exprobrou publicamente os fariseus como “raça de víboras” (Mt 12, 34), “hipócritas” (Mt 23, 13-15) e filhos do demônio (cf. Jo 8, 44).
A verdadeira origem da indignação do Divino Mestre
Isso nos ajuda a medir não apenas a intensidade da cólera, mas, sobretudo, o ímpeto vindo do fundo de sua Alma, inteiramente aliado à ira divina. Ou seja, a cólera do próprio Deus, a indignação do Onipotente, vista através dos véus da natureza humana.
Quem assim procedeu foi o mesmo Jesus que curou cegos e leprosos, multiplicou os pães e peixes, ressuscitou mortos, e do alto da Cruz exclamou: “Pai, perdoa-lhes! Eles não sabem o que fazem!” (Lc 23, 34).
O modo de proceder de Nosso Senhor sugere uma pergunta: deixou Ele de ser bondoso naquela ocasião? Ele, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, não pode ter nenhuma reação desequilibrada ou defectiva; n’Ele tudo é perfeito, por ser a própria Perfeição. Como discernir, então, a sua misericórdia no momento em que emprega a força física?
Quando se fala em paz, se esquece com frequência da célebre definição de Santo Agostinho: “a paz é a tranquilidade da ordem”.
Ora, os vendilhões atentavam contra a ordem e, além disso, perturbavam a tranquilidade. Cabia a Cristo, sublime modelo para todos os homens, constituir-Se como exemplo também dos que são chamados a utilizar a força para instaurar a disciplina e manter a paz, o que muitas vezes só é possível através de métodos impositivos.
Em nossos dias, muitos manifestam dificuldade em compreender a conduta do Salvador nesse episódio, por não vislumbrarem ali os efeitos de sua misericórdia. Lembremo-nos de que Jesus assim procedeu para benefício das almas, com enorme empenho em perdoar, corrigir e conceder a salvação.
Quem afirmaria que o Divino Mestre, de chicote na mão, deseja nos dar a felicidade? É indispensável partir sempre do princípio de que tudo quanto Ele fez não poderia ser melhor. Se Ele perdoa a adúltera (cf. Jo 8, 11), a samaritana (cf. Jo 4, 4-42), Santa Maria Madalena (cf. Mc 16, 9), cura os enfermos, ressuscita os mortos, multiplica os pães e os peixes (cf. Mc 6, 38-44) e até caminha sobre as águas (cf. Mt 14, 26), é com o intuito de favorecer todos, movido pelo mesmo zelo que manifesta pela casa de seu Pai, que vê maculada por um tumulto comercial e por interesses alheios à Religião.
Em Cristo, a perfeição da ira não prejudicava, apesar da intensidade, o gozo da contemplação, por não existir n’Ele conflito algum entre suas faculdades. Que belo equilíbrio entre o santo amor e a sagrada ira! Em admirável e divina harmonia, “misericórdia e ira estão sempre em Deus, grandemente misericordioso, porém capaz de cólera” (Eclo 16, 12).
Texto extraído, com adaptações, da Revista Arautos do Evangelho n.167. Novembro 2015.
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