A ingratidão no mundo de hoje
Qual é a razão da ingratidão? Apesar das muitas causas, sem dúvida, é a deficiência no juízo que fazemos das coisas, considerando bom o que é ruim, e vice-versa.
Redação (09/10/2022 12:21, Gaudium Press) Em fins do século XIX, deu-se, em São Paulo, um fato que ilustra muito bem a liturgia de hoje.
Havia uma senhora abastada que, estando em más condições de saúde, encontrou na casa de uma muito boa família de São Paulo um lugar propício e acolhedor para poder se recuperar. Os donos da casa dispuseram, inclusive, as próprias filhas para cuidar da senhora.
Uma delas, muito virtuosa e transbordante de afeto, prontamente se desdobrou em carinho no atendimento à enferma. Entretanto, uma das irmãs lhe disse:
– “Fulana, não seja boba. Quer saber o que vai acontecer? Quando ela for embora, nem lhe agradecerá. A mim, que só passo alguns instantes com ela para lhe contar alguma historieta engraçada, é que ficará agradecida!…”
Dito e feito. Quando a senhora deixou a residência, disse friamente um “até logo; obrigada, fulana” à sua maior benfeitora. Todavia, dirigindo-se àquela que somente lhe contara piadas, disse:
– “Fico-lhe muito agradecida. Você foi um anjo para mim, divertiu-me, contou-me tantas coisas engraçadas, animou meu espírito”.
Após ter-se retirado a senhora, aquela que somente soubera contar historietas, disse para a sua irmã que se desvelara em carinho pela enferma:
– “Viu? Não lhe disse? Deixe de se dedicar assim a quem é ruim, porque você só receberá pedradas”.
Ao que ela, um tanto abalada, mas nem um pouco ressentida, respondeu:
– “Mas o bem fica feito!”[1]
A cura de dez leprosos
Algo análogo se passa no Evangelho de hoje, em grau superlativamente mais grave. São Lucas nos conta que, enquanto Jesus passava entre a Samaria e Galileia, dez leprosos vieram ao seu encontro, pedindo-lhe a cura da enfermidade que padeciam. O Divino Mestre mandou que se apresentassem aos sacerdotes. Eles foram e, no caminho todos ficaram curados. Entretanto, apenas um – que era estrangeiro – voltou para agradecer (cf. Lc 17,11-16).
“E os outros nove onde estão?”, perguntou nosso Senhor (Lc 17,17). Simplesmente não voltaram. Ora, como classificar quem recebe um benefício e não o agradece? No mínimo, desconhecedor da boa educação, coisa que se aprende desde a infância e que é, infelizmente, cada vez mais rara em nossos dias.
De dez curados, houve apenas um que foi grato. Oxalá em nossos dias houvesse um grato para nove ingratos, pois desta maneira, a situação seria ainda comparável com a do Evangelho…
São Tomás de Aquino explica que há três graus na virtude da gratidão:
1) Reconhecer o benefício;
2) Render graças ao benfeitor;
3) Retribuir de algum modo o favor.[2]
Curiosamente, esses três graus se refletem nos modos de agradecer nas diversas línguas. A fórmula inglesa Thank you tem a mesma raiz do verbo To Think (pensar); ora, pensar em um benefício é, em suma, reconhecê-lo. As línguas latinas, em geral, parecem se referir ao segundo nível da gratidão, ou seja, render graças: gratias, em latim; gracias, em espanhol; grazie, no italiano etc. Já o nosso “muito obrigado” mostra afigurar-se no terceiro grau da gratidão: a obrigação de restituir.[3]
Os nove leprosos que não voltaram para agradecer parecem nem ter reconhecido o benefício que receberam; do contrário, teriam tomado alguma atitude. Aquele que voltou, estava pelo menos, no segundo grau do agradecimento. Como teria ele alcançado o último grau? Como retribuir um bem tão alto quanto a cura de uma enfermidade? O único modo seria com a sua própria vida. Quer dizer, se ele se pusesse a seguir e a servir a Nosso Senhor até o fim de seus dias. Terá ele feito isso? Não sabemos; mas esperamos que sim.
Uma das causas da ingratidão
Cabe-nos uma pergunta: qual é a razão da ingratidão? Seriam inúmeras as respostas, no entanto é oportuno ressaltar esta: uma deficiência no juízo que fazemos das coisas, considerando bom o que é ruim, e vice-versa. Explico-me.
Por que uma pessoa doente tem maior “gratidão” por quem lhe conta piadas do que por quem lhe concede a cura? Aliás, se rir fosse de maior proveito aos enfermos do que ir a um médico, seria melhor levá-los a um circo, e não a um hospital. Enfim, são as incoerências da vida.
Não obstante, há gente que considera rir como um bem superior à terapia. No caso dos nove leprosos do Evangelho de hoje, havia algo que eles estimavam mais do que a cura que nosso Senhor lhes concedeu. O que seria este “algo”? Provavelmente a opinião dos outros. Mas não sabemos ao certo, pois desconhecemos a história deles.
E nós, quantas vezes não fomos curados por Deus da terrível “lepra” da alma, que é o pecado? Temos sido gratos ao nosso Criador? Ou, por desventura, temos negligenciado os favores do Altíssimo e colocado o nosso empenho em coisas que, mesmo sendo boas e lícitas, são menos importantes à nossa salvação?
Enfim, a liturgia deste 28° Domingo do Tempo Comum nos ensina que, antes de dizer a Deus “por favor”, é necessário fazer chegar aos seus ouvidos um belo e caloroso “muito obrigado”.
Por Lucas Rezende
[1] Cf. CLÁ DIAS, João Scognamiglio. Dona Lucilia. Città del Vaticano: LEV, 2013, p. 85.
[2] Cf. S.Th. II-II, q.107, a.2, co.
[3] Cf. LAUAND, Jean. “Obrigado”, “Perdoe-me”: a Filosofia de S. Tomás de Aquino Subjacente à nossa Linguagem do Dia-a-Dia. Hospitalidade, v. 16, n. 02, (mai-ago) de 2019, p. 141-142.
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