A Igreja Católica e a terapia genética em humanos
Com os grandes progressos da ciência moderna, a humanidade viu, diante de si, inúmeras possibilidades. Entre elas, destaca-se o uso de recursos genéticos para a cura de doenças e o aprimoramento físico. Esses avanços trouxeram consigo sérias questões de caráter moral. A Igreja Católica, como Mãe e Mestra, tem obrigação de fornecer respostas para tais dificuldades, com vistas a orientar os fiéis em um caminho seguro. Neste artigo, estudaremos como a Santa Igreja vê a terapia gênica em humanos.
Redação (04/08/2020 15:51, Gaudium Press) Nestas últimas décadas, a medicina tem revelado avanços impressionantes e, sob certos aspectos, até assustadores. Com o progresso da engenharia genética, sobretudo a partir da década de 90, o homem adquiriu uma enorme capacidade de manipular a vida.
Esse desenvolvimento trouxe consigo sérias questões morais, todas baseadas em uma raiz comum: até que ponto é lícito ao homem dominar a natureza e a vida, sobretudo em se tratando da própria vida e natureza humanas?
Para dar uma resposta satisfatória a esses problemas, surgiu um novo ramo da ética, que estuda todas as questões morais concernentes à vida: a bioética.
É dentro dessa subdisciplina que se situa a discussão sobre a terapia gênica em humanos. Antes de entrar propriamente na questão, passo a dar alguns pressupostos convenientes – ainda que um pouco longos – para entender o julgamento da Igreja Católica sobre o assunto. Caso alguém esteja interessado somente na resposta (qual procedimento é lícito ou ilícito), ainda que perca um tanto da visão de conjunto necessária para bem entender o tema, poderá encontrá-la no último subtítulo “Igreja Católica e Terapia Gênica”.
Em que fundamentar a bioética?
A partir do momento em que surge uma disciplina para determinar a moralidade dos atos, ou seja, o que eu posso ou não posso, devo ou não devo fazer, é preciso estabelecer princípios sobre os quais ela se sustente.
Muitos estudiosos de bioética julgam que não se deve fundamentar tais princípios exclusivamente em um determinado credo ou ideologia. Afirmam eles que essa disciplina deseja um “fórum comum”, onde todos possam dar suas opiniões.[1]
Contudo, isso traz algumas dificuldades: o mundo de hoje está repleto de ideologias existencialistas e relativistas, muitas das quais negam a existência de uma divindade.
Ora, se não há um Deus Criador, Senhor do Céu, da Terra e do homem; se, portanto toda a ordem que constatamos no universo é fruto do acaso, não existe ninguém a quem nós precisaremos prestar contas após a morte, e tampouco há algum valor absoluto sobre o qual fundamentar a moral. Em consequência disso, cada indivíduo terá total autonomia para determinar o que é certo ou errado, segundo suas conveniências. São conclusões evidentes.
Então, como poderemos estabelecer regras de conduta? Aqui os estudiosos se digladiam em discussões intermináveis, extremamente cansativas, e que, em muitos casos, acabam chegando a um ou mais das seguintes normas:
- Não se pode impor nenhuma barreira ao progresso da ciência. Ou seja, tudo o que dá certo é moralmente válido. Portanto, a curiosidade e engenho do cientista é a medida da moral. O estudioso tem “carta branca” para fazer o que quiser, desde que seus experimentos tragam algum avanço tecnológico para a humanidade. Ora, se levarmos esse princípio até às últimas consequências, “a bomba de Hiroshima seria tão moral como a invenção da vacina Sabin”;[2]
- Autodeterminação do indivíduo. “Assim como na origem da vida o acaso [e não a Sabedoria Divina] tornou possíveis certas combinações, de acordo com as quais nós da espécie humana somos aquilo que somos, assim também hoje determinadas possiblidades permitem novas saídas para a espécie e novas mutações para seu destino biológico”. [3] Portanto, o homem é senhor absoluto de si mesmo;
- O sofrimento é um mal a ser evitado a todo custo; Todo homem procura a felicidade. Ora, o sofrimento é algo oposto à felicidade; logo, o sofrimento deve ser evitado. Uma vez que toda doença representa um sofrimento, todas elas devem ser eliminadas a qualquer custo. Essas teorias negam o valor transcendente do sofrimento e se esquecem de que ele pode ser enviado por Deus, para nos aproximar d’Ele. É claro, isso só pode ser aceito por alguém que tem Fé. O problema é que muitos católicos acabam aceitando essa teoria, implícita ou explicitamente. (Tratarei mais claramente sobre este ponto na conclusão do artigo);
- Se analisarmos os três princípios acima, concluiremos que não existe ética, porque tudo é permitido. De fato, para muitos desses teóricos permissivos, só existe uma barreira: a opinião da maioria e o contexto sociocultural condicionam a moralidade de um ato. Explico com um exemplo: hoje em dia, se um médico oferece a um casal a possibilidade de ter um filho à la carte, isto é, de escolher qual será a cor de seu cabelo, de seus olhos, qual será a sua altura, de torná-lo mais inteligente, mais forte, etc., a maioria dos casais inseridos no ambiente sociocultural dos países ocidentais dirá que não aceita. Ora, se daqui a cem anos a maior parte da população concordar com essa manipulação, o ato se tornará válido.
Essas posições, assim como estão apresentadas, são inaceitáveis do ponto de vista católico. Digo mais, inclusive sob um enfoque filosófico e social, apresentam sérias lacunas. Assim, vários estudiosos – entre eles muitos católicos – lograram pôr em cheque essas opiniões, usando como única arma a razão e a lógica.[4] O método racional que estes utilizam é inteiramente legítimo e até louvável, mas não farei o mesmo aqui. Tentar justificar as decisões da Igreja de um ponto de vista estritamente filosófico, prescindindo da fé, exigiria longos raciocínios que o espaço de um artigo como este não comporta.
Portanto, o que faremos aqui não é provar que a Igreja acertou em suas determinações sobre a terapia gênica, mas mostrar por que ela impôs essas balizas.
Princípios que regem o julgamento ético católico sobre a terapia gênica.
Toda a doutrina da Igreja tem seu primeiro fundamento na Revelação – ou seja, na Bíblia, Antigo e Novo Testamentos – e na Tradição, cuja peça principal é o Magistério Pontifício, o ensinamento dos Papas ao longo dos séculos. Foi com base nessas duas fontes, Revelação e Tradição, que se pronunciaram os últimos Sumos Pontífices sobre a bioética.
Para efeitos deste artigo, fizemos um resumo da doutrina contida em três documentos, um de João Paulo II, outro da Congregação para a Doutrina da Fé, promulgado também no pontificado do Papa polonês e, por fim, uma instrução de Bento XVI.[5]
Desses documentos, denota-se um princípio essencial que sustenta todos os outros:
O homem é um ser criado por Deus à sua imagem e semelhança, resgatado por Cristo e chamado a um destino imortal. A vida física, pela qual tem início a caminhada humana no mundo, não esgota em si todo o valor da pessoa, nem representa o bem supremo do homem, o qual é chamado à eternidade. Com base nisso, deduz-se que:
Unidade da pessoa humana.
O ser humano é um composto de alma e corpo. Essa verdade, diga-se de passagem, não é patrimônio exclusivo da Revelação católica. Afirmam-no também inúmeros filósofos. Do ponto de vista racional, a pessoa humana desenvolve atividades que não se podem explicar simplesmente do ponto de vista material, como o conhecimento dos universais, capacidade de reflexão, liberdade, etc.[6]
Ora, esse composto, alma e corpo, forma uma unidade, uma única pessoa. Portanto, quando modificamos o corpo, estamos alterando em grau maior ou menor, a identidade da pessoa.
Agora, admitimos que Deus criou o homem, corpo e alma, como ele é, com todas as qualidades e contingências inerentes à sua natureza. Quando alguém faz um aprimoramento no patrimônio genético do homem, seja para adquirir uma característica desejável, seja para eliminar uma indesejável, sobretudo se isso alterar sua posteridade, ele está modificando a própria identidade da espécie humana, está transformando a natureza do homem, que foi criada por Deus de uma determinada maneira. Afirma-se, então, que se está agindo de maneira anti-natural.
Somente Deus é Senhor absoluto da vida humana
Sendo Criador, Deus é o único senhor absoluto da vida humana e de sua integridade, desde o momento da concepção até à hora da morte. O homem é um administrador, e não pode dispor da própria vida a seu bel prazer. Logo, nenhum biólogo ou médico pode razoavelmente pretender, por força de sua competência científica, decidir sobre a origem e o destino dos homens.
Isso se aplica de maneira mais cogente aos seres humanos que ainda não podem se defender, como é o caso dos embriões. Sobre isso se exprimiu João Paulo II:
“Os embriões humanos obtidos in vitro são seres humanos e sujeitos de direitos: sua dignidade e direito à vida devem ser respeitados desde o primeiro momento de sua existência. É imoral produzir embriões humanos destinados a ser explorados como ‘material biológico’ disponível para uso” (DV 83).
A ciência está a serviço do homem, e não o contrário.
Deus deu ao homem o mandato de dominar a terra, como podemos ler no Gêneses, 1,28. Essa capacidade foi-nos concedida para o serviço e a glória de Deus, que, pela mesma razão, nos ordenou uma série de preceitos morais. Ora, o que é tecnicamente possível não é, por esta mera razão, admissível diante da lei moral. Assim, o estudo científico deve respeitar a dignidade da pessoa humana, seus direitos inalienáveis e seu bem verdadeiro e integral segundo o projeto de Deus.
Tendo esses pressupostos, adentramos, agora, no assunto.
Igreja Católica e Terapia gênica
A distinção básica para analisar a licitude ou ilicitude da terapia gênica em humanos está baseada em duas coisas: 1. O tipo de célula que está sendo tratado; 2. A intenção do tratamento.
1. Células Somáticas e Germinais
Para efeitos de terapia gênica, existem dois tipos de células, as da linha germinal, que são encontradas no sistema reprodutor, tanto no homem quanto na mulher, e dão origem aos gametas; e as somáticas, que são todas as outras células do corpo.
A modificação de células somáticas tem implicações somente para o indivíduo envolvido. Busca solucionar um caso concreto, restituir a normalidade a células doentes em uma única pessoa. Neste caso, seria o equivalente a uma intervenção cirúrgica qualquer, tão comum em nossos dias. Desse modo, ela é, em princípio, moralmente válida, desde que cumpra com os seguintes requisitos básicos:
- Que sua implementação não suprima embriões humanos;
- Que haja possibilidade de sucesso;
- Que não haja riscos graves de erros e aberrações;
As células germinais apresentam um quadro mais complicado: “As alterações genéticas das células da linha germinal serão transmitidas aos filhos do indivíduo submetido à modificação, que, por sua vez, transmitirão também a seus filhos, e assim por diante, nas futuras gerações”.[7]
Ora, como vimos, isso implicaria numa modificação da própria identidade da espécie humana, que foi criada por Deus como ela é. Trata-se de algo antinatural e, portanto, já de início, moralmente ilícito.
Além disso, recordamos o que afirma um autor católico, Elio Sgreccia:
“Dada a atual ineficácia da geneterapia sobre células da linha germinal, alguns documentos de outros países propõem a necessidade de experiências com células germinais e, portanto, com embriões provenientes das células manipuladas com a finalidade de otimizar a técnica. A experiência não terapêutica com o embrião humano é gravemente ilícita […] independentemente da finalidade perseguida”.[8]
Terapia ou aprimoramento?
Finalmente, é preciso distinguir o que é de fato uma terapia, ou seja, aquilo que visa expressamente a cura ou alívio de uma doença real, e aqueles tratamentos que visam apenas “aprimorar uma pessoa, alterando sua constituição genética com o fim de promover traços ou características desejáveis ou erradicar os indesejáveis”.[9]
Voltamos ao princípio da natureza. Curar um mal específico em um único indivíduo significa restituir a normalidade própria à natureza humana. Qualquer outra intervenção não pode ser senão ou alterativa ou amplificativo-aperfeiçoadora,[10] moralmente ilícita.
Isso se aplica, inclusive, para os embriões, que podem ser objeto de tratamentos que sigam as mesmas regras acima mencionadas.
Temos, assim, o seguinte quadro:
Terapia em Células Somáticas = permissível;
Aprimoramento em células germinais ou somáticas = não permissível.
No que diz respeito ao tipo de células, a distinção é muito clara. Contudo, é evidente que, no que tange à intenção da terapia, pode haver situações ambíguas. Em certos casos difícil determinar até onde vai a simples terapia e onde começa o aprimoramento genético. Nessas situações, é necessário procurar orientação junto a algum especialista.
Conclusão
Com tudo o que foi exposto acima, fica claro que há certas doenças cujo tratamento, embora factível, é proibido pela Igreja, por ferir a ordem posta por Deus no mundo. Na teoria, está tudo muito claro. Entretanto, gostaríamos de aproveitar esta conclusão para solucionar uma dúvida, não doutrinária, mas vivencial.
“Então Deus vai me impedir de ser feliz?”. Na prática, o que pesa é isso: a felicidade. Sobre esse problema, é preciso dizer uma palavra.
A sociedade de hoje tem horror ao sofrimento e quer evitá-lo a todo custo. A Humanidade contemporânea, tão marcada pelo ateísmo, pelo consumismo, pela superficialidade, pelo desejo de prazer etc., não compreende o valor transcendente da dor e julga que ela é contrária à felicidade.
Ora, não foi esse o exemplo que nos deu Nosso Senhor Jesus Cristo que, sendo inteiramente inocente, quis derramar até a última gota de sangue por nós. Ele, que tinha poder para evitar qualquer sofrimento, enfrentou o medo, a angústia e a morte para nos salvar, conformando-se à vontade de seu Pai: “Se for possível, afasta de Mim esse cálice, mas faça-se a Tua vontade e não a Minha” (Mt 26,39).
Ora, o cristão é um outro Cristo. Deus, muitas vezes, visita com o sofrimento aqueles que Ele mais ama, justamente para trazê-los para mais perto de Si. E é preciso saber aceitar esse sofrimento como dom de Deus, abraçar sua Cruz, e seguir Nosso Senhor.
Mais importante do que o conforto nesta vida, é a felicidade eterna. Para aqueles que estiverem dispostos a aceitar o sofrimento com resignação e amor, está reservada uma coroa de glória no Céu.
BIBLIOGRAFIA
BENTO XVI. Instrução Dignitatis Personae, 8 set; 2008.
DURANT, Guy. A Bioética: natureza, princípios e objetivos. Trad. Porphirio Netto. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008.
FERRER, Jorge; ÁLVAREZ, Juan. Para fundamentar a bioética. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2005.
JOÃO PAULO II. Discurso à Associação Médica Mundial, 29 out. 1983 In. Insegnamenti, Cidade do Vaticano: LEV, v. 6 (2)
______. Donum Vitæ, 22 fev. 1987 In. Enchiridion Vaticanum, V. 10. Bologna: EDB.
HOLLAND, Stephen. Bioética: enfoque filosófico. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2008.
SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Trad. Orlando Soares Moreira. 3. ed. São Paulo: Loyola, 200.
[1] Cf. DURANT, Guy. A Bioética: natureza, princípios e objetivos. Trad. Porphirio Netto. 2. ed. São Paulo: Paulus, 2008, p. 85.
[2] SGRECCIA, Elio. Manual de Bioética. Trad. Orlando Soares Moreira. 3. ed. São Paulo: Loyola, 2009, p. 312.
[3] Ibidem.
[4] Veja-se, por exemplo, SGRECCIA, Elio. Op.cit.; ou HOLLAND, Stephen. Bioética: enfoque filosófico. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2008;
[5] JOÃO PAULO II. Discurso à Associação Médica Mundial, 29 out. 1983 In. Insegnamenti, Cidade do Vaticano: LEV, v. 6 (2); CONGREGAÇÃO PARA A DOUTRINA DA FÉ. Donum Vitæ, 22 fev. 1987 In. Enchiridion Vaticanum, V. 10. Bologna: EDB. BENTO XVI. Instrução Dignitatis Personae , 8 set; 2008.
[6] Cf. FERRER, Jorge; ÁLVAREZ, Juan. Para fundamentar a bioética. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 2005, p. 404
[7] HOLLAND, Stephen. Bioética: enfoque filosófico. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Centro Universitário São Camilo; Loyola, 2008, p. 236.
[8] SGRECCIA, Elio. Op.cit., p. 309.
[9] HOLLAND, Stephen. Op.cit., p. 237.
[10] SGRECCIA, Elio. Op.cit., p. 335.
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