São Boaventura de Bagnoregio: O segundo Fundador
15 de julho, a igreja celebra a memória de São Boaventura de Bagnoregio. De rara inteligência e sabedoria, na fidelidade ao carisma de São Francisco, contribuiu para a expansão de sua Ordem, foi conselheiro de Papa e luminar da Santa Igreja.
Redação (15/07/2023 07:03, Gaudium Press) Ao entardecer do dia, enquanto o Sol deitava seus últimos raios no horizonte, um frade franciscano escrevia no recolhimento de sua cela. Habituado tanto a travar disputas na Universidade quanto a apresentar-se voluntariamente para lavar pratos e panelas, ou a partir cheio de zelo para pregar, naquele momento encontrava-se ele escrevendo a vida de seu Fundador, a pedido de seus irmãos de vocação.
Vindo de longe, ali chegou um dominicano – cognominado o Doutor Angélico – que resolvera visitar seu amigo. Entretanto, deteve-se junto à porta, sem coragem de interrompê-lo. Com uma admiração própria às almas virtuosas, sussurrou ao ouvido de quem o acompanhava: “Retiremo-nos e deixemos um Santo escrever a vida de outro Santo”.
Tal foi um dos memoráveis encontros entre estas duas grandes figuras do século XIII, que brilharam não só por sua ciência teológica, mas, sobretudo, pela grandeza de alma: São Tomás de Aquino e São Boaventura, de cujas virtudes heroicas, forjadas na escola de São Francisco de Assis, contemplaremos alguns traços a seguir.
Entre o Céu e a Terra
Por volta do ano de 1221, o casal João da Fidanza e Maria Ritelli foi obsequiado pela Providência com um filho. Introduziram-no logo no seio da Igreja Católica, pelas águas regeneradoras do Batismo, e deram-lhe o mesmo nome do pai. Vivia em Bagnoregio, antiga cidade dos Estados Pontifícios, localizada no alto de uma colina.
Aos quatro anos de idade, o menino foi acometido por uma grave doença. O pai, médico experiente, tentou de todas as maneiras salvar-lhe a vida. Tudo em vão. Então a mãe, confiando no poder infalível da oração, recorreu a São Francisco de Assis e rogou-lhe, entre lágrimas, que restituísse a saúde ao filho. E qual não foi sua alegria ao ver que a criança – pouco antes entre a vida e a morte – ficou totalmente curada! Diante de acontecimento tão venturoso, os pais resolveram trocar-lhe o nome para Boaventura.
O Poverello de Assis, recém-canonizado pelo Papa Gregório IX, parecia sorrir-lhes da eternidade. O sofrimento que batera às portas daquela casa deu início a um entranhado relacionamento entre o Fundador, já no Céu, e o futuro discípulo. De fato, aquele menino haveria de ser um dos mais eminentes membros da Ordem dos Frades Menores.
Encontro com a vocação
Dotado de prodigiosa inteligência, o jovem Boaventura despertava admiração tanto por seus progressos nos estudos, quanto por suas virtudes. Bagnoregio, todavia, era uma cidade por demais pequena para preencher os anseios de sua alma e desenvolver os dons incomuns recebidos da Divina Providência. Resolveu, então, partir para a França, a fim de aprofundar-se nas ciências. Sem saber, caminhava rumo à sua vocação.
Na já então famosa Universidade de Paris, conheceu alguns eminentes teólogos, entre os quais o franciscano Alexandre de Hales, que exercia grande influência sobre seu aluno. E como costuma acontecer no convívio entre certos discípulos fora do comum e o respectivo mestre, é difícil dizer qual dos dois se beneficiou mais com a virtude e saber do outro. Costumava o catedrático comentar a respeito deste jovem estudante, que “nele Adão não tinha pecado”, tal era sua pureza e retidão de alma.
A vida religiosa se tornara o centro das cogitações do jovem de Bagnoregio que, concluídos seus estudos, tendo muito viva na alma a lembrança do mestre franciscano, decidiu ingressar na sua Ordem. O motivo dessa resolução, ele o explicou numa carta escrita alguns anos mais tarde: “Confesso, diante de Deus, que a razão que me fez amar mais a vida do Beato Francisco é que ela se assemelha aos inícios e ao crescimento da Igreja. A Igreja começou com simples pescadores e, em seguida, enriqueceu-se de doutores muito ilustres e sábios; a religião do Beato Francisco não foi estabelecida pela prudência de homens, mas de Cristo”.
A graça primaveril da admiração pelo Fundador foi o motor de toda a sua existência. Ele o amou com aquela “forma de enlevo pela qual a pessoa quer dar-se inteiramente e não conservar nada para si. E faz disso o ideal de sua vida, de tal maneira que coloca sua felicidade no ter oferecido tudo a Deus”.
No mundo acadêmico
Após seu ingresso na Ordem franciscana, o superior decidiu que continuasse os estudos na mesma Universidade onde havia obtido a licenciatura e, ao mesmo tempo, ministrasse aulas na escola franciscana. Flexível à santa obediência, o noviço matriculou-se na faculdade de Teologia e, terminados os novos estudos, obteve seu título de bacharel bíblico, seguido do de bacharel sentenciário, passando a lecionar Sagrada Escritura nessa ilustre Universidade.
Por volta de 1253, ao receber junto com São Tomás de Aquino, o barrete de doutor, deu-se um fato que ressalta o brilho da virtude da despretensão na alma deste frade. Na solene cerimônia da imposição do grau, para espanto de todos quantos presenciavam a cena, travou-se uma disputa entre os dois doutorandos: cada um queria ceder ao outro o primeiro lugar. Embora a nenhum deles faltassem argumentos, o filho de São Francisco insistiu tanto com o discípulo de São Domingos, que este não teve como recusar a primazia. Assim, diz um dos seus biógrafos, São Boaventura “triunfou ao mesmo tempo de si mesmo e do amigo”.
Visão grandiosa do sacerdócio
Chegado o momento de sua ordenação presbiteral, frei Boaventura preparou-se com jejuns e orações, além de incrementar suas habituais obras de caridade. Achava-se indigno de tamanho privilégio que, jamais teria ousado receber por vontade própria, e desejava muito servir a Deus e aos homens da forma mais perfeita nesse ministério, cuja excelência tinha bem presente.
Consciente do poder concedido ao sacerdote de renovar o Santo Sacrifício do Calvário, trazendo a presença real de Cristo na Sagrada Eucaristia, manifesta ele, em uma de suas obras, a grandeza deste rito sagrado e o esplendor com o qual deve ser celebrado: “prescreve-se que este Sacramento seja honrado com especial solenidade, tanto no relativo ao lugar e ao tempo, quanto no referente às palavras, orações e ornamentos na celebração da Santa Missa, para que, com isso, não só os sacerdotes que conferem o Sacramento, como também os fiéis que o recebem, possam de fato perceber o dom da graça que os purifique, ilumine, aperfeiçoe, repare, vivifique e, por um amor apaixonado, os transforme ardentissimamente no próprio Cristo”.
Sabedoria e ciência hauridas na Cruz
Na mesma época de São Boaventura, outros membros dos Frades Menores e da Ordem dos Pregadores começaram a lecionar nas cátedras das instituições mais prestigiosas da época. Ora, era costume que esta função fosse desempenhada por membros do clero secular, alguns dos quais começaram a hostilizar os professores das ordens mendicantes, considerando-os intrusos.
Essa antipatia estendeu-se ao campo teológico e ascético. “Contestava-se o seu direito de ensinar na Universidade e chegava-se até a pôr em dúvida a autenticidade da sua vida consagrada. Certamente, as mudanças introduzidas pelas Ordens Mendicantes no modo de entender a vida religiosa […] eram tão inovativas que nem todos conseguiam compreendê-las”.
São Boaventura manteve-se firme nessa contenda. Com magistral sabedoria, soube refutar os adversários, não só por sua oratória, mas também por seus escritos. Dentre estes, destacam-se De perfectione evangelica e Apologia pauperum, nos quais defende a pobreza praticada pelos religiosos, tendo como modelo o próprio Nosso Senhor. A Santa Igreja se enriqueceu com essa explicitação doutrinária, fruto da fidelidade do Santo ao carisma do Fundador e de seu amor à verdadeira doutrina.
Perguntou-lhe, certa vez, São Tomás: “De qual livro haures tua maravilhosa ciência?”. O santo Doutor respondeu-lhe com simplicidade, apontando para um crucifixo: “Aqui está toda a minha biblioteca”. Seguindo a via de seu Pai Francisco, este amor a Cristo crucificado foi o centro de sua vida e de sua sabedoria. Séculos mais tarde, outro leitor assíduo de suas obras – São Francisco de Sales – comentaria: “Ó meu Santo e Seráfico Doutor Boaventura, em quem não vejo ter outro papel senão a Cruz, outra pluma a não ser a lança, outra tinta que o Sangue de meu Salvador, quando escrevestes vossos divinos opúsculos! Ó palavra inflamada a vossa, quando exclamais: Quão agradável e boa é a companhia do Crucifixo!”.
Ação e contemplação
Em meados de 1257, celebrou-se em Roma o Capítulo Geral da Ordem dos Frades Menores, no transcurso do qual devia ser designado o novo Ministro Geral. A escolha dos frades capitulares recaiu por unanimidade sobre São Boaventura, que não contava nessa ocasião mais de 36 anos de idade.
Começou por consagrar a Maria Santíssima o governo da Ordem. Após enviar a todos os franciscanos uma carta na qual deixava claro o pleno conhecimento que tinha da gravidade desse dever, partiu para a Cidade Eterna, com a finalidade de apresentar ao Papa Alexandre IV os assuntos de seu Instituto. Qual pastor zeloso, aproveitou o ensejo para visitar os conventos franciscanos da região, dando-se a conhecer aos seus subordinados e pondo-se paternalmente à sua disposição.
Esta nomeação em nada lhe mudou os costumes monásticos. Apesar da multiplicidade de trabalhos apostólicos, nunca deixou de exercer humildes ofícios na vida comunitária nem interrompeu seus estudos. Sempre encontrava tempo para os exercícios de piedade e, nas mais diversas atividades, procurava manter-se num estado de recolhimento interior.
Ficaram consagradas estas suas palavras, que bem ilustram seu modo de proceder: “não se pense que basta a leitura sem a unção, a especulação sem a devoção, a investigação sem a admiração, a circunspecção sem a exultação, a habilidade sem a piedade, a ciência sem a caridade, a inteligência sem a humildade, o estudo sem a graça divina, o modelo sem a sabedoria divinamente inspirada”.
O Capítulo de Narbona
Durante a primavera de 1260, os Frades Menores reuniram-se na cidade de Narbona, para outro Capítulo Geral, quiçá um dos mais célebres da história da Ordem. Sob a direção do novo superior, ela se expandira de maneira prodigiosa e contava com mais de 30.000 franciscanos espalhados pelo mundo. Tornava-se urgente garantir a unidade de ação e de espírito dos religiosos todos, na inteira fidelidade ao carisma do Fundador. À vista disso, São Boaventura promulgou, nessa assembleia, uma unificação da regra, que além de outros bons resultados teve o de estabelecer um ponto de equilíbrio entre as duas alas em disputa na Ordem: uma propensa a um rigorismo exagerado, outra a um reprovável relaxamento. Eliminou, com isso, o risco de uma grave ruptura interna.
No entanto – conforme explicou o Papa Emérito, na já citada Audiência acerca do Doutor Seráfico -, “Boaventura intuía que as disposições legislativas, por mais que se inspirassem na sabedoria e na moderação, não eram suficientes para garantir a comunhão do espírito e dos corações. Era necessário compartilhar os mesmos ideais e motivações. Por isso, Boaventura quis apresentar o carisma genuíno de Francisco, a sua vida e o seu ensinamento”.
Com este objetivo e instado por seus confrades no Capítulo, percorreu ele a Itália, a fim de interrogar as pessoas que haviam convivido com o Poverello. E pôde, com tal trabalho, deixar para a História uma fiel e bem documentada biografia de seu Seráfico Pai: a Legenda Maior, assumida pelo Capítulo Geral de Pisa, em 1263, como a biografia oficial do Poverello.
“Qual é a imagem de São Francisco que sobressai do coração e da pena do seu filho devoto e sucessor, São Boaventura?”, pergunta-se Bento XVI. E, logo a seguir, acrescenta: “O ponto essencial: Francisco é um alter Christus, um homem que procurou Cristo apaixonadamente. No amor que impele à imitação, conformou-se de modo total com Ele. Boaventura indicava este ideal vivo a todos os seguidores de Francisco”.
Na mesma ocasião, em Pisa, pediu ao Papa Alexandre IV para conceder à Ordem um Cardeal protetor. O Pontífice respondeu que isso não era necessário, pois ele mesmo assumia esse encargo. Privilégio não pequeno para os franciscanos! E dada sua ardente devoção à Santíssima Virgem, instituiu, nessa reunião, a celebração da festa da Imaculada Conceição em toda a Ordem. Segundo uma piedosa tradição, foi depois desse Capítulo que se iniciou o belo costume de rezar diariamente o Ângelus ao meio-dia e às seis horas da tarde.
Consagrado Bispo e nomeado Cardeal
O Papa Gregório X chamou-o para junto de si e contou com seu valioso auxílio na solução de relevantes problemas da Santa Igreja. Seu mais importante encargo, contudo, foi a preparação, em 1272, de um grande acontecimento eclesial, o II Concílio Ecumênico de Lyon, com o objetivo de restabelecer a comunhão entre a Igreja latina e a grega. O Sumo Pontífice o indicou para presidente e, em 1273, o consagrou Bispo e nomeou-o Cardeal.
Não obstante, após participar das quatro primeiras sessões do Concílio, São Boaventura ficou gravemente enfermo. O Santo Padre apressou-se em ministrar-lhe os últimos Sacramentos. Partiu para a eternidade no dia 15 de julho de 1274. Queria a Providência que sua assistência ao Concílio se desse desde o Céu. A pedido do Sumo Pontífice, os sacerdotes do mundo inteiro celebraram uma Missa por sua alma.
Exímia fidelidade ao carisma de São Francisco
“O segredo da realização de cada Instituto religioso” – explica o Beato João Paulo II – “foi a sua fidelidade ao carisma inicial que Deus encontrou no Fundador ou na Fundadora, para enriquecer a Igreja. Por este motivo repito as palavras de Paulo VI: ‘Sede fiéis ao espírito dos vossos Fundadores, às suas intenções evangélicas, ao exemplo da sua santidade… É precisamente aqui que tem origem o dinamismo próprio de cada família religiosa’ (Evangelica Testificatio, de 29/6/1971, n.11-12)”.
São Boaventura nunca tirou os olhos do seu pai espiritual: São Francisco de Assis. Pelo contrário, seu zelo em seguir as pegadas do Poverello e a fidelidade a seu carisma fizeram com que a Ordem dos Frades Menores se mantivesse íntegra e unida. E, assim, ele passou para a História como seu segundo Fundador.
Texto extraído da Revista Arautos do Evangelho, jul 2013, n. 139. Por Irmã Luciana Niday Kawahira, EP
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