Para servir melhor a Deus e ao próximo
Redação (Sexta-feira, 31-08-2012, Gaudium Press) “Não me envergonho de pedir que me perdoem nas ofensas que tiver desgostado alguém e suplico orações para que, nos dias que me restam de vida, possa servir melhor a Deus e ao próximo”
Esta frase é textual e seu autor é o Padre Roque Vicente Beraldi. Ele repetia em nossa conversa o que pouco antes havia dito aos fiéis que lotaram a Igreja do Imaculado Coração de Maria, em São Paulo, para poder homenageá-lo e dar ações de graças a Deus pelos seus 90 anos de vida e 65 anos de sacerdócio vividos entre os filhos de Santo Antônio Maria Claret.
Descendente de imigrantes italianos, nasceu a 17 de novembro de 1921, em São José do Rio Pardo, Estado de São Paulo. Ele é o terceiro filho dos oito que Deus concedeu a Serafim Beraldi e sua esposa Maria. Tornou-se sacerdote claretiano a 8 de dezembro de 1946.
Estamos publicando uma conversa que tivemos com Padre Roque há já algum tempo. Propositadamente fazemos essa publicação no último dia do mês em que a Igreja lembra as vocações que Deus faz aos homens. Com ela, além de querermos mostrar uma vida de fidelidade ao chamado que Deus, desejamos oferecer ao leitor a oportunidade de conhecer a importância do relacionamento harmonioso entre as variadas vocações que Deus faz aos homens.
No caso concreto, o convívio entre duas delas: vocação para a vida familiar e o chamado para a vida religiosa.
Gaudium Press– O senhor poderia dizer algo sobre sua infância, sobre o ambiente de família? Era muito diferente de hoje?
Padre Roque: Meu pai tinha uma fábrica de macarrão… Vou começar por ai. Dois funcionários operavam as máquinas. Tínhamos um carro com o qual, uma vez por semana, meu pai usava para fazer a distribuição das encomendas. Eu era muito pequeno, muito menino, mas, depois das aulas, quando eu voltava do Grupo Escolar, eu ajudava na entrega dos pedidos mais leves…
Graças a Deus, minha família tinha formação religiosa boa e nos orientava a frequentarmos a igreja da cidade para que cumpríssemos nossas obrigações cristãs.
GP– …isso influenciou na escolha de sua vocação?
Padre Roque – Meu pai fazia parte da Conferência de São Vicente de Paulo e da Liga Católica, Jesus Maria José. Minha mãe fazia parte do Apostolado da Oração, do Sagrado Coração de Jesus.
Além de meus pais recomendarem sempre o cumprimento dos preceitos estabelecidos pela Igreja, ir à missa, frequentar a paróquia etc, todas as noites, por voltas das nove horas, a família se reunia e rezávamos o Santo Terço.
Depois, meu pai lia no livro “Na Luz Perpétua”, do Pe. João Batista Lehmann, da Congregação do Verbo Divino, um trecho da vida do santo de cada dia…
GP– Todos os dias? Era a família vivendo a “Igreja Doméstica”…
Padre Roque – Exatamente! Era a “Igreja Doméstica”: …toda a família estava ali reunida, do maior ao mais novo, rezando.
Mas, também nas primeiras sextas-feiras de cada mês, meus pais nos levava à capela do Hospital de São José do Rio Pardo, que ficava perto de nossa casa. Meu pai, minha mãe, minhas irmãs e eu. Todos nós participávamos da santa missa e eles recebiam a Sagrada Comunhão em desagravo ao Sagrado Coração de Jesus. Eu só pude comungar após maio de 1930, depois que fiz a Primeira Comunhão.
GP – E, …quando o senhor sentiu o timbre da voz de Deus despertando em sua alma a vocação religiosa?
Padre Roque – Eu tenho bem claro e posso afirmar que as leituras diárias dos atos heróicos da vida dos santos fizeram surgir em minha alma o desejo de imitá-los, a vontade de ser como eles foram. E, uma coisa interessante: o mesmo convite alcançou a alma de minha irmã Albina…
GP– E disseram isso para a família?
Padre Roque – Sim. Não tínhamos segredos entre nós. Confiávamos mutuamente uns nos outros. Entretanto, meu pai não podia manter-nos no seminário e convento ao mesmo tempo. Sobretudo para as moças, era exigido o que era chamado de “dote”. Ele consistia num bem que era oferecido ao convento; uma boa soma que pudesse garantir o futuro da moça, mesmo se não permanecesse no convento.
GP – Apareceu uma dificuldade material… Como resolveram o problema?
Padre Roque – Rezando! Rezávamos pedindo a Deus que nos ajudasse em nossos desejos. E, juntos, minha irmã e eu começamos a fazer uma novena ao Imaculado Coração de Maria.
GP – Imaculado Coração de Maria? A mesma invocação mariana da Congregação à qual o senhor veio a pertencer. Coincidência?
Padre Roque – Providencia! Tudo aconteceu de um modo muito providencial…
Era o mês de agosto de 1932, antes ainda da reforma litúrgica do Concílio Vaticano II. Esse mês era todo dedicado ao Imaculado Coração de Maria. No dia 14 minha irmã Albina e eu começamos fazer a novena da qual estava dizendo. Era uma novena simples, mas dela constava a comunhão diária.
No primeiro dia e no segundo, tudo correu normalmente. Rezávamos e voltávamos esperançosos para casa.
Naquela ocasião, quem celebrava a santa missa que assistíamos para podermos comungar era o Padre Militão Viguera, reitor do Colégio São José de Batatais. Ele estava lá para ajudar o Pároco durante a novena preparatória para a Festa do Imaculado Coração de Maria, celebrada com muita solenidade em nossa paróquia, no dia 22. No terceiro dia de nossa novena, o sacristão que se chamava Antônio De La Torre nos trouxe um recado: o Padre Militão queria falar comigo.
GP – Que interessante…
Padre Roque – Assim que terminou a missa, procurei o celebrante. Ele perguntou meu nome, onde morava, quem era minha família, onde eu estudava, etc. E fez também uma pergunta inesperada:
—Você não quer ser Padre?
GP – A novena estava sendo atendida?
Padre Roque – Sim! E bem cedo… Depois que lhe respondi tudo, pondo-lhe a par das informações que desejava, ele quis visitar meus pais. Foi até minha casa e conversou longamente com meu pai e minha mãe.
No final da conversa estava tudo combinado: o seminário em que eu estudaria, a data da viagem, a mensalidade a ser paga e tudo o mais.
GP– Foi a Divina Providência…
Padre Roque – Não tenho dúvidas. Lembro-me de tudo, como se fosse hoje… No dia 3 de fevereiro de 1933 –eu ainda não tinha 12 anos– meu pai me trouxe para onde funciona hoje o Colégio Claretiano, em São Paulo.
Naquele tempo ali funcionava só o seminário. Fiz nele o primeiro ano ginasial que, além das matérias normais do currículo, era acrescido de algumas disciplinas próprias para a formação dos seminaristas.
O formador era o Padre Crescêncio Iruarrízaga, que tinha como auxiliar, o Padre Eliezer Almuedo.
GP – A Providencia tinha começado a atender abundantemente seu pedido. E sua irmã?
Padre Roque – Bem, vou contar mais um fato de criança… Eu imagino que assim eu possa responder sua pergunta e ainda mostrar como era o relacionamento familiar com minha irmã…
Perto de nossa casa –que estava situada bem nos arrabaldes– havia uma área onde animais pastavam e onde nasciam flores silvestres de muitas cores. Era um terreno grande e sempre passávamos por lá.
Num certo dia, enquanto minha irmã e eu conversávamos caminhando naquele campo, colhemos uma flor chamada margarida. Nós dois começamos a arrancar as pétalas dela. Enquanto eu dizia: eu vou para o seminário, ela arrancava outra pétala dizendo: eu vou para o convento. Quem tirasse a última pétala ganharia a brincadeira.
Aconteceu de eu tirar a última pétala e ser o vencedor. E minha irmã começou a chorar…
Era uma brincadeira, não acreditávamos naquilo. Mas, minha irmã, muito sensível, pressentiu ali algo que poderia acontecer e emocionou-se.
GP– Entendi: sua irmã acabou não indo para o convento… E como o senhor continuou levando sua vida?
Padre Roque – Estudando, rezando e esperando… Em janeiro de 1934, os superiores reuniram os seminários de Curitiba e de São Paulo na Chácara Paraíso, em Rio Claro. Fui para lá. Ali estudei do segundo ao quinto ano de ginásio “seminarístico”. Até 1937, o ginásio era feito em 5 anos.
GP– O senhor já fazia parte da Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria?
Padre Roque – Ainda não, oficialmente. Isso aconteceu só depois, em 1938 depois de fazer o chamado noviciado, em Guarulhos, SP. O noviciado era um tempo destinado exclusivamente para que o seminarista pudesse discernir bem sua vocação. Nesse tempo de oração, aprofundamento e discernimento eu compreendi que era, de fato, vocacionado, que dentro da Congregação eu estaria atendendo o chamado de Deus. No seio daquela família de almas eu encontraria o carisma e a espiritualidade que me levaria a melhor servir a Deus e ao próximo.
Foi assim que no dia 2 de fevereiro de 1939, professei temporariamente na Congregação fundada por Santo Antônio Maria Claret, os claretianos.
GP– Depois disso o senhor continuou em Guarulhos?
Padre Roque – Não. De 1939 a 1941 eu fiz os três anos de Filosofia e, depois, os quatro de Teologia (1942 a 1946) em Curitiba, no Paraná. Estudei lá em um estabelecimento de ensino seminarístico denominado Colégio Máximo. Hoje ele se chama “Studium Theologicum”.
Tenho a alegria de poder dizer que nele foram formados insignes personagens religiosas. Do “Theologicum”, saíram vários bispos e arcebispos, entre eles o Cardeal Dom Odilo Pedro Scherer, Arcebispo de São Paulo.
GP– Nesse tempo o senhor só se relacionava com os religiosos de sua Congregação?
Padre Roque – Não. Claro que nossa vida passava-se sobretudo dentro da Congregação, porém, nossa formação foi muito abrangente. Veja você: eu fui convocado para o Serviço Militar.
GP– O senhor serviu ao exército?
Padre Roque – Sim. Em 1943, em pleno tempo de guerra, fui convocado para o Serviço Militar e compareci, “religiosamente”…
Os quartéis naquela época estavam abarrotados de soldados e recrutas. Era muita gente, todos muito jovens. Tive contato com gente de todas as origens e formação.
Era tanta gente que quem morasse na cidade de Curitiba podia pernoitar em sua casa, para dar lugar para os de fora. Foi o que aconteceu comigo.
Assim, por causa do Serviço Militar, fiquei dispensado da freqüência no Curso que fazia no Seminário. Eu estudava à noite, em particular, e prestava os exames individualmente.
Durante os dias eu me incorporava ao Quartel do 20 RI. (Vigésimo Regimento de Infantaria) onde recebia instruções militares e me sujeitava a todos os exercícios bélicos que me poderiam vir a ser úteis.
GP– O senhor chegou a ir para o campo de batalha?
Padre Roque – Num dia que não me recordo mais quando foi, estávamos em formatura ouvindo o General Comandante da Região Militar arengar os soldados que seriam destinados para a frente de batalha na Europa. Eu estava lá no meio deles e tinha de tudo para ter o mesmo destino de todos daquele Regimento.
De repente, sobe ao palanque, diante dos soldados alinhados, um Tenente todo formal e cheio de respeito para com o General.
O Tenente pediu licença a seu superior e logo gritou no microfone: “Quem sabe escrever à máquina?” Eu sabia e levantei a mão. O General então ordenou: “pode sair da formação e acompanhar o tenente. Assim eu fiz.
E o Tenente me levou para trabalhar como datilógrafo na 15 CR. (Décima quinta Circunscrição de Recrutamento) e ali fui incorporado. Não sei se foi a Providencia… o certo é que fiquei em Curitiba.
Quanto aos meus colegas do 21 RI que ficaram no pátio ouvindo o General, eles saíram de lá para o Porto de Paranaguá e dali partiram para a Europa, afim de tomar parte nas operações de guerra.
GP– Quer dizer então que, naquele dia, o Exército perdia um recruta e a Igreja ganhava um soldado?…
Padre Roque – Eu seria ingrato se não afirmasse que a Divina Providencia sempre me conduziu e me protegeu na preservação da vocação que me concedeu… Eu fui preservado protegido sempre.
O certo é que o conflito mundial terminou em 1945, eu concluí meus estudos, completei as profissões religiosas, recebi as ordens sacras e fui ordenado sacerdote no dia 8 de dezembro de 1946.
E… já se passaram 65 anos. 65 anos desde aquele dia em que ouvi do bispo ordenante: Tu es sacerdos in aeternum, secundum ordinem Melchisedec…
GP – O senhor começou sua missão…
Padre Roque – Formado padre, fui designado a trabalhar como auxiliar do formador de seminaristas menores, em Rio Claro, onde eu também tinha estudado. Fiquei como disciplinário, professor de latim e música. Corriam os anos de 1947 e 1948. Por esta época, formei com os seminaristas menores, um coral que ficou famoso tendo se apresentado muitas vezes na emissora de Rádio de Rio Claro e em cerimônias religiosas.
GP – O senhor evangelizava pela música…
Padre Roque – É verdade. Veja que em 1949, ano do centenário da fundação da Congregação dos Missionários Filhos do Imaculado Coração de Maria, o então Diretor do Seminário, Padre Geraldo Penteado de Queiroz foi designado para o Colégio Seminário em Esteio, RS. eu fui indicado para substituí-lo como Diretor dos Seminaristas em Rio Claro. Nesse cargo permaneci três anos, 1949 a 1951 e continuei com as mesmas aulas que tinha e… com o coral.
Necessitando de professor de música no Colégio Claretiano em São Paulo, o Pe. Mariano Frias, então Provincial, me designou para trabalhar neste Colégio para o qual me dirigi em janeiro de 1952. Neste estabelecimento exerci também os cargos de disciplinário, professor de música, latim, e acabei sendo também Diretor. À tarde durante este tempo, cursei o Conservatório Paulista de Canto Orfeônico. Aqui permaneci até 1969, quando tive que assumir também a direção do Colégio Claretiano de Guarulhos, de janeiro até julho. Neste mês, o Pe. Miguel Juliani assumiu a direção do Colégio Claretiano de São Paulo, e eu fiquei somente diretor em Guarulhos. Neste tempo comecei também convalidar os estudos de Filosofia na Universidade de Mogi das Cruzes, onde consegui o diploma de professor em História, em 1973.
GP – O senhor trabalhou com seminaristas?
Padre Roque – Reabrindo o Noviciado depois do Concílio Vaticano II, o Provincial, Pe. Geraldo Jarussi, me convidou para ser o Mestre de Noviços. Fui para Campinas, onde funcionava o ano de discernimento vocacional, em 1970. Permaneci até dezembro de 1975. Passaram pelas minhas aulas, vários seminaristas que hoje são padres que exerceram cargos importantes, como provincialato, Pe. Helmo César Faciolli, Pe. Roberto Duarte Rosalino, e Mauro Zequim Custódio.
GP – Exerceu cargos de direção na Congregação?
Padre Roque – Em 1976 no começo do ano fui designado pelo Pe. José Narciso Lousa da Josefa, Provincial, para Batatais, onde funcionava o Colégio São José e já havia também a Escola Superior de Educação Física. Nesta escola trabalhamos por abrir vários cursos entre eles o de Filosofia Pura, para seminaristas. Isto implicava viagens mensais para Brasília e acompanhar o Conselho Federal de Educação, o que fazia a todo custo. Neste estabelecimento de ensino trabalhei até 1992, 16 anos.
Em 1992 fui designado pelo Provincial, Pe. Oswair Chiozini, para a Casa Provincial onde, além dos ministérios eclesiásticos exerci o cargo de superior local.
Adoecendo o formador dos teólogos, em Curitiba, fui designado para substituí-lo temporariamente pelo Pe. Roberto Duarte Rosalino, (padre este que fora noviço sob minha direção em Campinas) então Provincial em 1993, em agosto. Aconteceu, porém, que os superiores acharam melhor que eu continuasse como formador de teólogos e assim fiquei entre Curitiba e Pinhais, no Paraná, durante seis anos. Neste tempo tive a satisfação de ser o diretor do estudante seminarista, hoje Pe.. Marco Aurélio Loro, atual Provincial.
GP – O Senhor ainda fez mais coisas?
Padre Roque – Fiz o que a obediência mandava e o que podia…
Mas eu quero lembrar agora um fato dessa época e que foi muito importante para mim. Em 1996 completei, 50 anos de sacerdócio e o Papa João Paulo II, convidou todos os padres de todo o mundo que haviam sido ordenados em 1946, para que fossem a Roma para concelebrar com ele em ação de graças pelo seu cinquentenário sacerdotal.
Os alunos conseguiram comprar para mim a passagem de ida e volta e eu tive a felicidade de poder conversar diretamente com o Papa, hoje beato João Paulo II.
GP – Continuou atuando, trabalhando?
Padre Roque – Continuei trabalhando e ainda trabalho…
Eu fiquei no Paraná até 1999, quando fui novamente transferido para esta casa de São Paulo, pelo Pe. Mauro Zequim Custódio, provincial, para trabalhar como Superior da Comunidade Claretiana, no Arquivo da Província, Vigário Paroquial e Diretor Espiritual.
GP – O senhor trabalha no Arquivo da Província, ainda?
Padre Roque – Trabalho. Agora eu estou ainda neste cargo. Estou com 90 anos de idade e 65 de sacerdócio, mas, nestes últimos doze anos procurei exercer o meu trabalho com dedicação.
GP – Também, essa é a única obrigação que o senhor tem.
Padre Roque – Eu continuo me desdobrando no atendimento as pessoas que demandam orientação espiritual, administro os sacramentos, continuo sendo arquivista da província e ainda celebro a Santa Missa todos os dias na Matriz do Imaculado oração de Maria.
GP – Muito obrigado, padre, pelo convívio, pelas palavras, pelo exemplo. (JSG)
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