Os Vendedores Ambulantes
Há certas particularidades do convívio humano que, por serem triviais, com mais fidelidade são transmissoras da personalidade e da cultura dos povos. Em geral são ações espontâneas, surgidas de uma necessidade vital e com finalidade prática.
Em tal caso se enquadra o ofício de vendedor. Realmente, não há quem, ao visitar um país pela primeira vez, não se entretenha em analisar como é atendido durante as compras. Muitos até baseiam sua opinião sobre o povo desse lugar pelo que puderam perceber nos vendedores. Há nisso certo risco, porque, ao exercer essa função, o homem tem que agradar por profissão, e seu trato não pode servir de paradigma de uma nação. No entanto, quando falamos no tipo mais rudimentar de vendedor, que é o que vende pelas ruas, sem se fixar em um estabelecimento, encontramos o homem do povo em seu estado mais mais autêntico.
É o que se observa com facilidade na grande e misteriosa Índia. Esse singular país tem tal variedade de cultura, que aquilo que se observa no sul difere enormemente dos costumes do norte, por exemplo. Tomemos, então, alguns flashes de vendedores no sul, no Kerala, propriamente.
Vivendo na enobrecida capital, Trivandrum, pode-se observar à vontade um sem-número de vendedores, cada um com suas peculiaridades. Já a começar pelos que viajam nos trens. Grande parte do transporte interestadual é feito por eficazes linhas férreas, boa herança dos ingleses. De quando em quando, quebrando a monótona barulheira dos trilhos, surge um vendedor de chá. Com um pregão próprio, oferece aos viajantes tea or coffee. O viajante cauteloso duvida um pouco da higiene do produto oferecido, mas aliciado pelo bom odor do produto, acaba por comprá-lo. O vendedor, que tem que ser também meio equilibrista, agradece-lhe com um sorriso, se lhe dá tempo, porque são muitos os fregueses que seguram os copos de papel sobre o qual ele faz jorrar o perfumado chá. Lépido, salta do trem na próxima estação, onde se reabastece para continuar a labuta.
Bem mais cerimonioso é o vendedor de leite, que se apresenta antes da 7 horas da manhã à porta das residências. Em geral vem montado numa bicicleta, que traz no bagageiro um galão com o leite, cuja limpeza é garantida por um saco branco de algodão que veda a tampa. Assegura ele que o leite é de ótima procedência, e, nas poucas palavras que conhece do inglês, explica ao estrangeiro que as vacas são de sua família, que as cria para poder oferecer leite fresco à população. Fala com tal convicção, que se é levado a crer que a família é altamente benemérita pela função que exerce. Ledo engano. Caminhando um pouco pelos bairros mais pobres, sem dificuldade o visitante pode encontrar a casa do vendedor, onde são criadas as vacas, ou melhor, a vaca. Reduz-se o estábulo a um quadrado de madeira, com proporções um pouco maiores que as da vaca. O pobre animal, certamente, terá muita dificuldade em se deitar e levantar. Sem nenhum terreno que a isole da casa de seus amos, esses devem ser cuidadosos ao abrir e fechar a porta, pois podem receber um coice ou serem “acariciados” pelo rabo do animal. Mas pelo menos têm a vantagem de poder ordenhá-la sem sair de casa.
Um pouco mais tarde, pelas 9 horas da manhã, apresenta-se a vendedora de peixe. Vai diretamente para a porta da cozinha e num malayalam rápido apresenta os fresquíssimos peixes que conseguiu à beira mar naquela madrugada. Coitada. Não são peixes muito nobres, mas a vendedora aparenta ser tão pobre, que se fica com pena de não comprá-los. Além do mais, ela os limpa e dá a receita de como prepará-los. E numa torrente de palavras vai contando sua vida e suas dificuldades, enquanto executa seu serviço, agachada e com o colorido saree bem preso para não sujar-se. Como é pouco compreendida, compensa com expressões fisionômicas e sorrisos a dificuldade da língua. Faz questão de, antes de prosseguir seu caminho, lavar o chão no qual limpou os peixes. Ah! Essa vida no Kerala é entretida!
Com o tempo, a vendedora, curiosa, quer saber da vida das estrangeiras. De onde são, o que fazem ali… Ah! São missionárias! E como rezam? Um dia, cria coragem e pede, cobrindo o rosto com o palú do saree para ocultar a timidez, se pode entrar e ver a imagem da Mãe de Deus para quem as irmãs rezam. Oh! Mas é linda! Então essa é Mãe e Virgem? E Ela é boa? Pode-se pedir a Ela tudo? E, sem hesitar, de joelhos e com as mãos estendidas para cima, num choro convulso, pede em voz alta pelo filho doente há tanto tempo. Pede pelo marido que se foi, pede por ela mesma. Depois, meio envergonhada pela expansão de sentimentos, sai com rapidez. Mas volta. No dia seguinte, chega cantando e com um sorriso alegre. Traz um peixe de categoria, nenhum espinho! E a vida continua.
Lá pelas 11 horas, chega, fazendo um ruído metálico, o passador de roupa. Ele vem empurrando uma grande mesa sobre rodas, na qual passa qualquer tipo de roupa, e com uma perfeição e rapidez de fazer inveja aos nossos tintureiros eletronizados. As camisas lhe saem sem a mínima ruga, os longos sarees, vistosos e belos, porém difíceis de passar por causa de seu tamanho e do tipo de tecido, em minutos ficam perfeitos, sem vincos e dobrados com esmero. O pesado ferro a carvão é manuseado com destreza. Apesar de magro, o homem é vigoroso, e para manter as brasas acesas, gira com energia o ferro em círculos completos. No final, sorri satisfeito ante a fisionomia surpresa das estrangeiras. “Sei fazer bem meu serviço, não?”, parece dizer com o olhar. Encerrado o trabalho, apresenta a conta: 20 rúpias, por um montão de roupa, ou seja, meio dólar.
Papel importante exerce no contato com esses vendedores todos a cozinheira e intérprete, Annie. Magra e ágil, de cor bem escura, com sorriso charmoso e discreto, desempenha sua função sentindo-se um pouco acima de seus sofridos compatriotas vendedores. Afinal, tem trabalho fixo, em uma casa, servindo estrangeiros. No entanto, trata-os com bondade cristã, procurando favorecê-los e voltar o coração das irmãs para eles. É bem quista por eles, que a saúdam com alegria.
E assim, todos os que se apresentam são como um caleidoscópio de tipos humanos, com alguns traços comuns: uma religiosidade latente, certo fundo melancólico, uma bondade ainda não inteiramente cultivada, um desejo de encontrar o que admirar para imitar ou para servir e uma necessidade de serem reconhecidos em suas qualidades.
Não é verdade que um povo assim atrai e forma um salutar contraste com o desgastado mundo ocidental, no qual a religiosidade foi substituída pelo materialismo mais crasso, a bondade sumiu no sorvedouro dos egoísmos e a admiração foi esmagada pela inveja? Rezemos para que esse povo possa preservar-se no meio desse torvelinho global, para as novas eras, previstas e desejadas por tantos santos, em que a bondade do Imaculado Coração de Maria se estenderá como um manto protetor sobre todas as nações.
Por Angela Tomé.
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