Beato João Paulo II e São Luís Grignion de Montfort
Um texto clássico da espiritualidade mariana
Há 160 anos foi publicada uma obra destinada a tornar-se um clássico da espiritualidade mariana. São Luís Maria Grignion de Montfort compôs o Tratado sobre a verdadeira devoção à Virgem Santíssima no início de 1700, mas o manuscrito permaneceu praticamentedesconhecido por mais de um século. Quando finalmente, quase por acaso, em 1842 foi descoberto e em 1843 foi publicado, teve sucesso imediato, revelando-se uma obra de eficiência extraordinária para a difusão da “verdadeira devoção” à Virgem Santíssima. Eu próprio, nos anos da minha juventude, tirei grandes benefícios da leitura deste livro, no qual “encontrei a resposta às minhas perplexidades” devidas ao receio que o culto a Maria, “dilatando-se excessivamente, acabasse por comprometer a supremacia do culto devido a Cristo” (Dom e mistério, pág. 38). Sob a orientação sábia de São Luís Maria compreendi que, quando se vive o mistério de Maria em Cristo, esse risco não subsiste. O pensamento mariológico do Santo, de facto, “está radicado no Mistério trinitário e na verdade da Encarnação do Verbo de Deus (ibid.).
Obra Magna de São Luís Grignion de Montfort |
A Igreja, desde as suas origens, e sobretudo nos momentos mais difíceis, contemplou com particular intensidade um dos acontecimentos da Paixão de Jesus Cristo, referido a São João: “Junto à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe e a irmã de sua mãe, Maria, a mulher de Clopas, e Maria Madalena. Então, Jesus, ao ver ali de pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava, disse à mãe: “Mulher, eis o teu filho!”. Depois, disse ao discípulo: “Eis a tua mãe!”. E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a como sua” (Jo 19, 25-27). Ao longo da sua história, o Povo de Deus experimentou esta doação feita por Jesus crucificado: a doação da sua Mãe. Maria Santíssima é verdadeiramente a nossa Mãe, que nos acompanha na nossa peregrinação de fé, esperança e caridade rumo à união cada vez mais intensa com Cristo, único salvador e mediador da salvação (cf. Const. Lumen gentium, 60 e 62).
Como se sabe, no meu brasão episcopal, que é a ilustração simbólica do texto evangélico acima citado, o mote Totus tuus está inspirado na doutrina de São Luís Maria Grignion de Montfort (cf. Dom e mistério, págs. 38-39: Rosarium Virginis Mariae, 15). Estas duas palavras exprimem a pertença total a Jesus por meio de Maria: “Tuus totus ego sum, et omnia mea tua sunt”, escreve São Luís Maria; e traduz: “Eu sou todo teu, e tudo o que é meu te pertence, meu amável Jesus, por meio de Maria, tua Santa Mãe” (Tratado sobre a verdadeira devoção, 233). A doutrina deste Santo exerceu uma profunda influência sobre a devoção mariana de muitos fiéis e sobre a minha própria vida. Trata-se de uma doutrina vivida, de grande profundidade ascética e mística, expressa com um estilo vivo e fervoroso, que usa com frequência imagens e símbolos. A partir do tempo em que São Luís Maria viveu, a teologia mariana contudo desenvolveu-se muito, sobretudo mediante o contributo decisivo do Concílio Vaticano II. Por conseguinte, hoje, deve ser lida novamente e interpretada à luz do Concílio a doutrina monfortina, que conserva de igual modo a sua substancial validade.
Com esta Carta dos escritos de São Luís Maria, que nos ajudam nestes momentos difíceis a alimentar a nossa confiança na meditação da Mãe do Senhor.
Ad Iesum per Mariam
São Luís Maria propõe com singular eficiência a contemplação amorosa do mistério da Encarnação. A verdadeira devoção mariana é cristocêntrica. Com efeito, como recordou o Concílio Vaticano II, “a Igreja, meditando piedosamente na Virgem, e contemplando-a à luz doVerbo feito homem, penetra mais profundamente, cheia de respeito, no insondável mistério da Encarnação” (Const. Lumen gentium, 65).
Escudo Papal de João Paulo II |
O amor de Deus mediante a união a Jesus Cristo é a finalidade de qualquer devoção autêntica, porque como escreve São Luís Maria Cristo “é o nosso único mestre e deve instruir-nos, o nosso único Senhor do qual devemos depender, a nossa única Cabeça à qual devemos permanecer unidos, o nosso único modelo com o qual nos devemos conformar, o nosso único médico que nos deve curar, o nosso único pastor que nos deve alimentar, o nosso único caminho que nos deve vivificar e o nosso único tudo, em todas as coisas, que nos deve satisfazer” (Tratado sobre a verdadeira devoção, 61).
A devoção à Santa Virgem é um meio privilegiado “para encontrar Jesus Cristo, para o amar com ternura e para o servir com fidelidade” (Tratado sobre a verdadeira devoção, 62). Este desejo central de “amar com ternura” é imediatamente dilatado numa fervorosa oração a Jesus, pedindo a graça de participar na indizível comunhão de amor que existe entre Ele e a sua Mãe. A relatividade total de Maria a Cristo, e, n’Ele, à Santíssima Trindade, é antes de mais experimentada na observação: “Todas as vezes que pensas em Maria, Maria louva e honra contigo a Deus. Maria é toda relativa a Deus, e eu chamá-la-ia muito bem a relação de Deus,que existe unicamente em relação a Deus, o eco de Deus, que não diz e não repete a não ser Deus. Se dizes Maria, ela repete Deus. Santa Isabel louvou Maria e proclamou-a bem-aventurada porque acreditou. Maria o eco fiel de Deus entoou: Magnificat anima mea Dominum: a minha alma louva ao Senhor. Aquilo que Maria fez naquela ocasião, repete-o todos os dias. Quando é louvada, amada, honrada ou recebe algo, Deus é louvado, Deus é amado, Deus recebe pelas mãos de Maria e em Maria” (Tratado sobre a verdadeira devoção,225).
É ainda na oração à Mãe do Senhor que São Luís Maria exprime a dimensão trinitária da sua relação com Deus: “Saúdo-te Maria, Filha predileta do Pai eterno! Saúdo-te Maria, Mãe admirável do Filho! Saúdo-te Maria, Esposa fidelíssima do Espírito Santo!” (Segredo de Maria, 68). Esta tradicional expressão, já usada por São Francisco de Assis (cf. Fontes Franciscanas, 281), mesmo contendo níveis heterogéneos de analogia, é sem dúvida eficaz para exprimir de certa forma a peculiar participação de Nossa Senhora na vida da Santíssima Trindade.
São Luís Maria contempla todos os mistérios da Encarnação que se realizou no momento da Anunciação. Assim, no Tratado sobre a verdadeira devoção, Maria é apresentada como “o verdadeiro paraíso terrestre do Novo Adão”, a “terra virgem e imaculada” pela qual Ele foi plasmado (n. 261). Ela é também a Nova Eva, associada ao Novo Adão na obediência que repara a desobediência original do homem e da mulher (cf. ibid., 53; Santo Ireneu Adversus haereses, III 21, 10-22, 4). Por meio desta obediência, o Filho de Deus entra no mundo. A mesma Cruz já está misteriosamente presente no momento da Encarnação, no momento em que Jesus é concebido no seio de Maria. Com efeito, o ecce venio, da Carta aos Hebreus (cf. 10, 5-9) é o acto primordial da obediência do Filho ao Pai, aceitação do seu Sacrifício redentor “quando entra no mundo”.
“Toda a nossa perfeição escreve São Luís Maria Grignion de Montfort consiste em ser conformes, unidos e consagrados a Jesus Cristo. Por isso, a mais perfeita de todas as devoções é incontestavelmente a que nos conforma, une e consagra mais perfeitamente a Jesus Cristo. Mas, sendo Maria a criatura mais conforme a Jesus Cristo, tem-se como resultado que, entre todas as devoções, a que consagra e conforma mais uma alma a nosso Senhor é a devoção a Maria, sua Mãe santa, e que quanto mais uma alma estiver consagrada a Maria, tanto mais estará consagrada a Jesus Cristo” (Tratado sobre a verdadeira devoção, 120). Dirigindo-se a Jesus, São Luís Maria exprime como é maravilhosa a união entre o Filho e a Mãe: “Ela é de tal forma transformada em ti pela graça, que não vive mais, não existe mais: ésunicamente Tu, meu Jesus, que vives e reinas nela… Ah! se conhecêssemos a glória e o amor que tu recebes nesta maravilhosa criatura… Ela está tão intimamente unida… De facto, ela ama-te mais ardentemente e glorifica-te mais perfeitamente do que todas as outras criaturas juntas” (Ibid.,63).
São Luís Grignion de Montfort |
Maria, membro eminente do Corpo místico e Mãe da Igreja
Segundo as palavras do Concílio Vaticano II, Maria “é saudada como membro eminente e inteiramente singular da Igreja, seu tipo e exemplar perfeitíssimo na fé e na caridade” (Const.Lumen gentium, 53). A Mãe do Redentor é também redimida por ele, de maneira única na sua Imaculada Conceição, e precedeu-nos naquela escuta crente e cheia de amor da Palavra de Deus que nos torna bem-aventurados (cf. ibid., 58). Também por isso, Maria “está intimamente unida à Igreja: a Mãe de Deus é a figura (typus) da Igreja, como já ensinava Santo Ambrósio, isto é, na ordem da fé, da caridade e da união perfeita com Cristo. De facto, no mistério da Igreja, que é também chamada justamente mãe e virgem, a Bem-Aventurada Virgem Maria é a primeira, dando de modo eminente e singular o exemplo de virgem e de mãe” (Ibid., 63). O próprio Concílio contempla Maria como Mãe dos membros de Cristo (cf. ibid., 53; 62), e assim Paulo VI a proclamou Mãe da Igreja. A doutrina do Corpo místico, que exprime de maneira mais forte a união de Cristo com a Igreja, é também o fundamento bíblico desta afirmação. “A cabeça e os membros pertencem à mesma mãe” (Tratado sobre a verdadeira devoção, 32), recorda-nos São Luís Maria. Neste sentido, dizemos que, por obra do Espírito Santo, os membros estão unidos e conformados com Cristo Cabeça, Filho do Pai e de Maria, de tal modo que “qualquer verdadeiro filho da Igreja deve ter Deus como Pai e Maria como Mãe” (Segredo de Maria, 11).
Em Cristo, Filho unigénito, somos realmente filhos do Pai e, ao mesmo tempo, filhos de Maria e da Igreja. Com o nascimento virginal de Jesus, de certa forma é toda a humanidade que renasce. À Mãe do Senhor “podem ser aplicadas, de maneira mais verdadeira de quanto São Paulo as aplica a si mesmo, estas palavras: “Meus filhos, por quem sinto outra vez dores de parto, até que Cristo se forme entre vós” (Gl 4, 19). Dou à luz todos os dias os filhos de Deus, enquanto não estiver formado neles Jesus Cristo, meu Filho, na plenitude da sua idade”(Tratado sobre a verdadeira devoção, 33). Esta doutrina encontra a sua expressão mais bela na oração: “Oh! Espírito Santo, concede-me uma grande devoção e uma grande inclinação para Maria, um apoio sólido sobre o seu seio materno e um recurso assíduo à sua misericórdia, para que, nela, tu possas formar Jesus dentro de mim” (Segredo de Maria, 67).
Uma das expressões mais nobres da espiritualidade de São Luís Maria Grignion de Montfort refere-se à identificação do fiel com Maria no seu amor por Jesus, no seu serviço a Jesus.
Meditando o conhecido texto de Santo Ambrósio: A alma de Maria esteja em cada um para glorificar o Senhor, o espírito de Maria esteja em cada um para exultar em Deus (Expos. in Luc., 12, 26: PL 15, 1561), ele escreve: “Como é feliz uma alma quando… está totalmente arrebatada e guiada pelo espírito de Maria, que é um espírito doce e forte, zeloso e prudente, humilde e corajoso, puro e fecundo” (Tratado sobre a verdadeira devoção, 258). A identificação mística com Maria está totalmente dirigida para Jesus, como seexprime na oração: “Por fim, minha querida e amadíssima Mãe, se for possível, faz com que eu não tenha outro espírito a não ser o teu para conhecer Jesus Cristo e os seus desejos divinos; que não tenha outra alma a não ser a tua para louvar e glorificar o Senhor; que não tenha outro coração a não ser o teu para amar Deus com caridade pura e ardente como tu” (Segredo de Maria, 68).
A santidade perfeição da caridade
A Constituição Lumen gentium recita ainda: “Mas, ao passo que, na Santíssima Virgem, a Igreja alcançou já aquela perfeição sem mancha nem ruga que lhe é própria (cf. Ef 5, 27), os fiéis ainda têm de trabalhar por vencer o pecado e crescer na santidade; e por isso levantam os olhos para Maria, que brilha como modelo de virtudes sobre toda a família dos eleitos” (n. 65). A santidade é perfeição da caridade, daquele amor a Deus e ao próximo que é o objecto do maior mandamento de Jesus (cf. Mt 22, 38), e é também o maior dom do Espírito Santo (cf. 1 Cor 13, 13). Assim, nos seus Cânticos, São Luís Maria apresenta sucessivamente aos fiéis a excelência da caridade (Cântico 5), a luz da fé (Cântico 6) e a firmeza na esperança (Cântico7).
São Luís Grignion de Montfort |
Na espiritualidade monfortina, o dinamismo da caridade é expresso especialmente através do símbolo da escravidão do amor a Jesus a exemplo e com a ajuda materna de Maria. Trata-se da comunhão plena na kenosis de Cristo; comunhão vivida com Maria, intimamente presente nos mistérios da vida do Filho. “Não há nada entre os cristãos que faça pertencer de maneira mais absoluta a Jesus Cristo e à sua Santa Mãe como a escravidão da vontade, segundo o exemplo do próprio Jesus Cristo, que assumiu as condição de escravo por amor a nós formam servi accipiens e da Santa Virgem, que se considerou serva e escrava do Senhor. O apóstolo honra-se do título de servus Christi. Várias vezes, na Sagrada Escritura, os cristãos são chamados servi Christi” (Tratado sobre a verdadeira devoção, 72). De facto, o Filho de Deus, que veio ao mundo em obediência ao Pai na Encarnação (cf. Hb 10, 7), humilhou-se depois fazendo-se obediente até à morte, e morte de Cruz (cf. Fl 2, 7-8). Maria correspondeu à vontade de Deus com o dom total de si, corpo e alma, para sempre, desde a Anunciação até à Cruz, e da Cruz até à Assunção.
Certamente, entre a obediência de Cristo e a obediência de Maria existe uma assimetria determinada pela diferença ontológica entre a Pessoa divina do Filho e a pessoa humana de Maria, do que deriva também a exclusividade da eficiência salvífica fontal da obediência de Cristo, da qual a sua própria Mãe recebeu a graça para poder obedecer de modo total a Deus e assim colaborar com a missão do seu Filho.
Por conseguinte, a escravidão de amor deve ser interpretada à luz do admirável intercâmbio entre Deus e a humanidade no mistério do Verbo encarnado. É um verdadeiro intercâmbio de amor entre Deus e a sua criatura na reciprocidade da doação total de si. “O espírito desta devoção… é tornar a alma interiormente dependente e escrava da Santíssima Virgem e de Jesus por meio dela” (Segredo deMaria, 44). Paradoxalmente, este “vínculo de caridade”, esta “escravidão de amor” torna o homem plenamente livre, com a verdadeira liberdade dos filhos de Deus (cf. Tratado sobre a verdadeira devoção, 169). Trata-se de se entregar totalmente a Jesus, respondendo ao Amor com que Ele nos amou primeiro. Qualquer pessoa que viver neste amor pode dizer como São Paulo: “Já não sou eu que vivo, é Cristo que vive em mim” (Gl 2, 20).
A “peregrinação da fé”
Na Novo millennio ineunte escrevi que “se alcança Jesus unicamente pelo caminho da fé” (n. 19). Foi precisamente este o caminho seguido por Maria durante toda a sua vida terrena, e é o caminho da Igreja peregrina até ao fim dos tempos. O Concílio Vaticano II insistiu muito sobre a fé de Maria, misteriosamente partilhada pela Igreja, pondo em realce o itinerário de Nossa Senhora desde o momento da Anunciação até ao momento da Paixão redentora (cf. Const. Lumen gentium, 57 e 67; Carta enc. Redemptoris Mater, 25-27).
Beato João Paulo II: o Papa Mariano |
Nos escritos de São Luís Maria encontramos a mesma ênfase sobre a fé vivida pela Mãe de Jesus num caminho que vai da Encarnação até à Cruz, uma fé na qual Maria é modelo e tipo da Igreja. São Luís Maria expressa-o com riqueza de imagens quando expõe ao seu leitor os “efeitos maravilhosos” da perfeita devoção mariana: “Portanto, quanto mais ganhares a benevolência desta venerável Princesa e Virgem fiel, tanto mais o teu comportamento de vida estará inspirado pela fé pura. Uma fé pura, portanto não te preocuparás minimamente de quanto é sensível e extraordinária. Uma fé viva e animada pela caridade, que te fará agir unicamente com motivo do amor puro. Uma fé firme e inabalável como uma rocha, que te fará permanecer firme e constante no meio de furacões e de tempestades. Uma fé laboriosa e penetrante que, como misteriosa chave polivalente, te fará entrar em todos os mistérios de Jesus Cristo, nos fins últimos do homem e no coração do próprio Deus. Uma fé corajosa, que te fará empreender e concretizar sem hesitações coisas grandes para Deus e para a salvação das almas. Por fim, uma fé que será a tua chama ardente, a tua vida divina, o teu tesouro escondido da Sabedoria divina e a tua arma omnipotente, com a qual esclarecerás todos os que são tíbios e têm necessidade do ouro ardente da caridade, darás de novo vida aos que morreram por causa do pecado, comoverás e perturbarás com as tuas palavras suaves e fortes os corações de pedra e os cedros do Líbano e, por fim, resistirás ao demónio e a todos os inimigos da salvação”(Tratado sobre a verdadeira devoção, 214).
Como São João da Cruz, São Luís Maria insiste principalmente sobre a pureza da fé e sobre a sua essencial e muitas vezes dolorosa obscuridade (cf. Segredo de Maria, 51, 52). É a fé contemplativa que, renunciando às coisas sensíveis ou extraordinárias, penetra nas profundezas misteriosas de Cristo. Assim, na sua oração, São Luís Maria dirige-se à Mãe do Senhor dizendo: “Não te peço visões ou revelações, nem gostos ou delícias, mesmo só espirituais… Aqui na terra, eu quero que me pertença unicamente o que tu quiseres, isto é: crer com fé pura sem nada provar ou ver” (ibid., 69). A Cruz é o momento culminante da fé que Maria tem, como escrevi na Encíclica Redemptoris Mater: “Maria participa mediante a fé no mistério desconcertante desse despojamento… Isso constitui, talvez, a mais profunda “kenosis” da fé na história da humanidade” (n. 18).
Sinal de esperança certa
O Espírito Santo convida Maria a “reproduzir-se” nos seus eleitos, alargando até eles as raízes da sua “fé invencível”, mas também da sua “firme esperança” (cf. Tratado sobre a verdadeira devoção, 34). O Concílio Vaticano II recordou quanto segue: “A Mãe de Jesus, assim como, glorificada já em corpo e alma, é imagem e início da Igreja que se há-de consumar no século futuro, assim também, na terra, brilhacomo sinal de esperança segura e de consolação, para o Povo de Deus ainda peregrinante, até que chegue o dia do Senhor (Const.Lumen gentium, 68). Esta dimensão escatológica é contemplada por São Luís Maria sobretudo quando fala dos “santos dos últimos tempos”, formados pela Virgem Santa para levar à Igreja a vitória de Cristo sobre as forças do mal (cf. Tratado sobre a verdadeira devoção, 49-59). Não se trata de modo algum de uma forma de “milenarismo”, mas do sentido profundo da índole escatológica da Igreja, ligada à unicidade e universalidade salvífica de Jesus Cristo. A Igreja espera a vinda gloriosa de Jesus no fim dos tempos. Como Maria e com Maria, os santos são na Igreja e para a Igreja, para fazer resplandecer a sua santidade, para alargar até aos confins do mundo e até ao fim dos tempos a obra de Cristo, único Salvador.
Beato João Paulo II no santuário de Lourdes |
Na antífona Salve Regina, a Igreja chama a Mãe de Deus “nossa Esperança”. A mesma expressão é usada por São Luís Maria a partir de um texto de São João Damasceno, que aplica a Maria o símbolo bíblico da âncora (cf. Hom. 1ª in Dorm. B.V.M.: PG 96, 719): “Nós unimos as almas a ti, nossa esperança, como a uma âncora firme. A ela afeiçoaram-se em maior medida os santos que se salvaram e fizeram afeiçoar os outros, para que perseverassem na virtude. Portanto, bem-aventurados, infinitamente bem-aventurados os cristãos que hoje se mantêm unidos a ela fiel e totalmente como a uma âncora firme” (Tratado sobre a verdadeira devoção, 175). Através da devoção a Maria, o próprio Jesus “alarga o coração com uma santa confiança em Deus, fazendo com que ele seja visto como Pai e inspirando um amor terno e filial” (Ibid., 169).
Juntamente com a Virgem Santa, com o mesmo coração de mãe, a Igreja reza, espera e intercede pela salvação de todos os homens. São as últimas palavras da constituição Lumen gentium: “Dirijam todos os fiéis instantes súplicas à Mãe de Deus e mãe dos homens, para que ela, que assistiu com as suas orações aos começos da Igreja, também agora, exaltada sobre todos os anjos e bem-aventurados, interceda, junto de seu Filho, na comunhão de todos os santos, até que todos os povos, tanto os que ostentam o nome cristão, como os que ainda ignoram o Salvador, se reúnam felizmente, em paz e harmonia, no único Povo de Deus, para glória da santíssima e indivisa Trindade” (n. 69).
Fazendo de novo meus estes votos, que juntamente com os outros Padres Conciliares expressei há quase quarenta anos, envio a toda a Família monfortina uma especial Bênção apostólica.
CARTA DO PAPA JOÃO PAULO II ÀS FAMÍLIAS MONFORTINAS SOBRE A DOUTRINA DO SEU FUNDADOR
Vaticano, 8 de Dezembro de 2003, Solenidade da Imaculada Conceição da Bem-Aventurada Virgem Maria.
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